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Como eu, um homem tão defeituoso,
consigo escrever linhas tão lindas,
às vezes eu queria
que a vida fosse como um papel em branco,
sem todas as cicatrizes,
as rugas,
os amassados,
as marcas que me monstrificam,
assim seria leve como uma pluma,
como as pétalas duma flor,
arrancadas uma a uma
numa brincadeira de bem-me-quer,
flutuando no ar,
poderia voltar a ser criança
e ser o que eu quiser;
saudoso tempo
em que eu era o dono do mundo,
era eu que tingia seus contornos,
tudo tinha o significado que a minha mente quisesse dar,
eu construía
carros e caminhões,
helicópteros e aviões,
criava máquinas,
que até hoje o homem desconhece,
com madeira e papelões
As portas foram se fechando para aquele menino,
a batida mais seca
foi na entrada da felicidade,
ela se fechou antes mesmo que ele pudesse tocar a maçaneta,
tamanha maldade,
antes que outra passagem se abrisse
o chão desapareceu
e o garoto caiu num buraco negro,
foi lançado em águas nebulosas
e viu espicharem seus braços e pernas,
nadando num mar de perversidade
Talvez o menino ainda esteja vivo,
feito sua morada num coração de pedras,
onde o xisto não deixa brotar nem uma tiririca,
mas ele transforma as rochas em sonhos,
o músculo venoso palpita pondo pedregulhos para voar;
o toque desse menino tem poderes
que dispensam a gravidade
e todas as coerções da realidade,
o infante caminha por infinitas escadarias,
vagaroso,
observador,
contempla borboletas e paisagens
que só os seus olhos são capazes de ver;
saem saltitantes de sua boca,
as letras que ele inventa,
que nunca deixou de criar,
os seus universos erguidos
para se abstrair do próprio olhar,
que ressoam muito além dos ouvidos
e do que podem as conchas marítimas captar,
a doçura dos odores e das delícias
que não passam pelas narinas
e tampouco se entregam ao paladar;
inúmeros são os seus truques,
seus segredos de encantar,
o garoto dispensa as mãos
e não pára de desenhar,
sua voz é luminosa
e ele nunca esqueceu de cantarolar
O monstro anda penoso,
carrega os dias nas costas
até o encontro de seu fim,
quando se apagarão todas as mazelas
no efeito da luz branca
que me cegará,
chegado o momento em que me parto
como todos, um dia eu irei,
mas o menino ficará
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By Felipe SimãoComo eu, um homem tão defeituoso,
consigo escrever linhas tão lindas,
às vezes eu queria
que a vida fosse como um papel em branco,
sem todas as cicatrizes,
as rugas,
os amassados,
as marcas que me monstrificam,
assim seria leve como uma pluma,
como as pétalas duma flor,
arrancadas uma a uma
numa brincadeira de bem-me-quer,
flutuando no ar,
poderia voltar a ser criança
e ser o que eu quiser;
saudoso tempo
em que eu era o dono do mundo,
era eu que tingia seus contornos,
tudo tinha o significado que a minha mente quisesse dar,
eu construía
carros e caminhões,
helicópteros e aviões,
criava máquinas,
que até hoje o homem desconhece,
com madeira e papelões
As portas foram se fechando para aquele menino,
a batida mais seca
foi na entrada da felicidade,
ela se fechou antes mesmo que ele pudesse tocar a maçaneta,
tamanha maldade,
antes que outra passagem se abrisse
o chão desapareceu
e o garoto caiu num buraco negro,
foi lançado em águas nebulosas
e viu espicharem seus braços e pernas,
nadando num mar de perversidade
Talvez o menino ainda esteja vivo,
feito sua morada num coração de pedras,
onde o xisto não deixa brotar nem uma tiririca,
mas ele transforma as rochas em sonhos,
o músculo venoso palpita pondo pedregulhos para voar;
o toque desse menino tem poderes
que dispensam a gravidade
e todas as coerções da realidade,
o infante caminha por infinitas escadarias,
vagaroso,
observador,
contempla borboletas e paisagens
que só os seus olhos são capazes de ver;
saem saltitantes de sua boca,
as letras que ele inventa,
que nunca deixou de criar,
os seus universos erguidos
para se abstrair do próprio olhar,
que ressoam muito além dos ouvidos
e do que podem as conchas marítimas captar,
a doçura dos odores e das delícias
que não passam pelas narinas
e tampouco se entregam ao paladar;
inúmeros são os seus truques,
seus segredos de encantar,
o garoto dispensa as mãos
e não pára de desenhar,
sua voz é luminosa
e ele nunca esqueceu de cantarolar
O monstro anda penoso,
carrega os dias nas costas
até o encontro de seu fim,
quando se apagarão todas as mazelas
no efeito da luz branca
que me cegará,
chegado o momento em que me parto
como todos, um dia eu irei,
mas o menino ficará
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