Sozinha de si

#2 - O banho sujo -


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Para mim tinha sido uma tarde linda, alegre, em companhia dos nossos melhores amigos, onde rimos, cantamos, brindamos e nos abraçamos. Momentos necessários, que dão leveza ao dia a dia.

De repente ele me arranca desse ambiente e me leva para o carro. 

O carro tinha regras bem definidas: as dele. Essa era a dinâmica das últimas duas décadas: eu ligava o rádio e ele desligava, e só me deixava ouvir música quando ele já tivesse cansado de falar. Mas nesse dia não teve conversa, e muito menos música. 

Assim que entramos no carro, ele se transformou. 

Ele gritava, enlouquecido:

- “Você não parou de beber, rir e se divertir, se expondo, todo mundo viu, me matou de vergonha!”

Num primeiro momento eu murchei, triste, tentando entender o que tinha feito de errado. Aliás, por muito tempo da nossa vida eu me questionei se precisaria amá-lo mais, para quem sabe consertar esse buraco. 

Mas, voltemos ao carro. Já num segundo momento de maior consciência, entendi que estava em risco, fiquei muito nervosa e também enjoada, enquanto ele não parava de gritar e a me empurrar, ainda enquanto dirigia.

Então, eu vomitei dentro do carro. O que já estava ruim, ficou muito pior: ele perdeu o controle e começou a me xingar, e acelerar o carro para me deixar apavorada. 

Eu não sabia se ia apanhar e pensei em me jogar do carro em movimento. 

Ao chegar em casa, fui tomar um banho. Tento lembrar da roupa que eu estava usando, mas não a encontro em lugar nenhum da minha memória. Se eu procurar, tenho sim fotos e filme desse dia, da festa com nossos amigos. Mas aquelas primeiras fotos não ilustram o que foi vivido naquela tarde.

Começa então a segunda sessão de fotos, a que ninguém quer ver.

Ele com o celular começou a me registrar vomitando no banheiro, deitada no box, com a pressão baixa, arrasada e nua. Eternizar esse momento era redefinir o conceito de covardia. 

E ele seguia gritando: 

- “Vou registrar o estado que você fica e mostrar pros seus filhos e pra sua mãe, você é um horror de exemplo, não sabe se divertir, só me traz desgosto, só me dá vergonha!” 

Eu me vi sentada no chuveiro, tentando me refazer da ressaca moral e da violência verbal a que me submetia frequentemente. Eu olhava para a canaleta do box e via a água fluindo para o ralo… Parecia que eu estava derretendo junto com aquele fluxo. Humilhada, não imaginava como fugir do meu sequestrador de almas. 

O que eu queria mesmo era voltar lá, naquela cena do banho, para secar aquela mulher. 

Eu me colocaria para dormir em segurança, longe dele e de todos os opressores que já me fizeram sentir vergonha de ser autêntica. Longe dos que tentaram me enfraquecer, fazendo com que eu duvidasse de mim. 

Eu me abraçaria forte e diria que ninguém no mundo vai me impedir de cantar. 

Diria a ele que, em algum momento, se atraiu exatamente por essa espontaneidade e espírito alegre, porque é o que ele não consegue ser. 

Que é uma falha dele, e não minha. 

E que sim, eu precisaria levantar desse banho - que a cada dia me deixava mais suja - para nunca mais voltar.

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Lembrando que esse é um projeto de acolhimento através de histórias anônimas, manda a sua história pra mim: [email protected]


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Sozinha de siBy Mayra Abbondanza - Ghostwriter