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Ceticismo


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“É um bom exercício matutino para um cientista pesquisador” dizia Konrad Lorenz “descartar uma hipótese de estimação todos os dias antes do café da manhã”. Mas por que restringir o exercício aos cientistas? Acaso o espetáculo de mentiras no mundo e em nosso coração não nos impõe o dever diário de adicionar um tanto de ceticismo à nossa vida? Não será o melhor antídoto contra as incoerências em nossa mente e as inconsistências em nossa conduta?
O ceticismo é popularmente associado à descrença e ao pessimismo. Tecnicamente, porém, é antes uma filosofia da dúvida ou da incerteza. O termo grego “scepsis” significa originalmente “exame”, “indagação”, “ponderação”. Na concepção radical dos céticos pirrônicos antigos, para termos alguma certeza absoluta seria preciso ao menos uma dentre três coisas: compreender o todo para compreender as partes; separar nessa compreensão o que vem do sujeito e o que vem do objeto; e um critério para solucionar as antíteses entre nossas ideias e sentimentos, ideias e ideias e sentimentos e sentimentos. Dessas incertezas aparentemente insuperáveis, vêm a pluralidade de leis, mitologias, costumes e crenças, ante as quais o filósofo deve suspender seus juízos e seguir interrogando em busca de um olhar lúcido e um coração imperturbável. O espírito cético é ilustrado pelo lema de Montaigne, “Que sei eu?” e pela resposta de Lagrange “Não sei”. Nesse sentido, parece mesmo uma filosofia da humildade; do reconhecimento da nossa falibilidade; da razão em luta contra o racionalismo. Para David Hume o ceticismo nada mais é que “o senso comum submetido ao método e à correção.”
Curiosamente, nos tempos modernos, o ceticismo seria associado ao libertinismo, ao niilismo, ao anarquismo, e logo visto como um fator de perturbação social. As críticas filosóficas mais contundentes, porém, acusam na sua irresolução resoluta precisamente o contrário: a letargia moral e o quietismo político. Mas é um fato que ao questionar tradições obsoletas e crenças ossificadas o ceticismo foi um lubrificante inestimável para o progresso da ciência e da democracia. Mas não será igualmente inestimável quando a própria modernidade adotar seus dogmas de estimação, cercados de mitos e ritos, como o “Progresso”, a “Ciência” e a “Democracia”? E mesmo quanto ao maior dos lugares comuns em torno ao ceticismo, o que o antagoniza à religião, não será necessário suspender o juízo? O próprio Montaigne, um magistrado católico, resumia assim o valor do pirronismo:
Não há nada entre as invenções do homem que tenha tanta plausibilidade e utilidade: ele apresenta o homem nu e vazio; reconhecendo sua fraqueza natural, pronto a receber do alto alguma força exterior; despido do conhecimento humano, e tanto mais apto a alojar em si o divino; aniquilando seu juízo para dar mais espaço para a fé; nem desacreditando nem estabelecendo qualquer dogma contra os usos comuns; humilde, obediente, disciplinável, zeloso; um inimigo jurado da heresia, e consequentemente livre das opiniões vãs e irreligiosas introduzidas por falsas seitas. Ele é um papel em branco preparado para tomar do dedo de Deus as formas que ele quiser gravar.
Convidados
Adriano Machado Ribeiro: professor de língua e literatura grega da Universidade de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos.
Luiz Eva: professor de filosofia da Universidade Federal do ABC e autor de Ceticismo e Subjetividade em Montaigne.
Roberto Bolzani: professor de História da Filosofia da Universidade de São Paulo e autor de Acadêmicos versus Pirrônicos.
oferecimento

Fontes em O Grande Teatro do Mundo
No Acervo Café Filosófico – Instituto CPFL 
http://www.institutocpfl.org.br/2017/04/27/cafefilosoficocplf-de-abril-novos-horizontes-da-responsabilidade/
http://www.institutocpfl.org.br/2011/10/18/filosofia-e-saber/
http://www.institutocpfl.org.
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