Especialista belga ouvido pela CPI britânica no caso da empresa Cambridge Analytica, que pirateou dados do Facebook, explica como são criados os modelos matemáticos para influenciar eleitores e marcas
O escândalo envolvendo a campanha de Donald Trump e a Cambridge Analytica, empresa criada pelo engenheiro de computação Robert Mercer e o ex-conselheiro do presidente americano, Steve Bannon, lançou o debate sobre a utilização de dados de internautas para influenciar os eleitores.
No início do ano, Christopher Wylie, diretor do grupo britânico, revelou que a Cambridge Analytica pirateou dados pessoais de cerca de 87 milhões de usuários do Facebook, a maioria americanos. O objetivo: influenciar a votação na eleição presidencial dos EUA que levou à vitoria de Trump.
No Brasil, a recente denúncia sobre o financiamento ilegal da campanha de Bolsonaro - empresários que teriam bancado disparos em massa contra o PT no aplicativo WhatsApp- trouxe novamente à tona a discussão sobre a utilização dos dados dos internautas que circulam na web para influenciar o resultado nas urnas.
A RFI Brasil entrevistou com exclusividade o matemático belga Paul-Olivier Delaye, fundador da empresa PersonalDataIo e especialista na proteção de dados. Ele foi consultado como expert na CPI aberta pelo Parlamento britânico em março de 2018, sobre o caso Cambridge Analytica.
RFI - Uma das técnicas usadas na manipulação dos dados é a Psicometria, que ajuda a construir a personalidade dos indivíduos a partir dos traços que deixam na web quando estão conectados. Como podemos defini-la?
Paul-Olivier Delaye - A Psicometria é uma teoria em Psicologia que não é aceita por todo mundo. Segundo essa teoria, podemos medir o perfil psicológico de alguém. A pessoa pode ser aberta, meticulosa, extrovertida, agradável ou neurótica. Essas cinco características por si só já definem um perfil psicológico. Num contexto político, emocional, elas têm um valor preditivo. Podemos prever como as pessoas vão reagir.
RFI – Esse ainda é o método usado hoje atingir eleitores potenciais em uma campanha politica, por exemplo?
POD - Novas técnicas emergiram, permitindo a criação do perfil de um indivíduo através da interação coletada de maneira massiva na Web, como, por exemplo, os “likes” no Facebook. A partir de um “like” podemos construir o perfil psicológico de um indivíduo. A vantagem, em relação a um questionário de Psicologia, como no caso da Psicometria, é a escala. A segunda vantagem é que podemos, usando Facebook, atingir pessoas com características psicológicas específicas que buscamos.
RFI - Como surgiu essa técnica?
POD - A principal delas foi desenvolvida na universidade de Cambridge. Os pesquisadores usaram questionários padrões de Psicologia para avaliar as pessoas. Em seguida, consultaram o perfil Facebook dos participantes dos estudos. A observação dos “likes” possibilitou um ajuste do questionário. Esse modelo também pode ser usado no outro sentido: construir o perfil psicológico de uma pessoa a partir dos “likes”. Os pesquisadores demonstraram que, a partir de 170 “likes”, o modelo criado é mais preditivo, ou seja, mais fiel à verdadeira personalidade do indivíduo do que seria a descrição do próprio parceiro em um casal. Em princípio, o algoritmo conhece você melhor do que seu marido ou esposa!
RFI - Os “likes”devem ser públicos?
POD - Os “likes” foram retirados do acesso público. Com o passar do tempo, foi necessário o uso de técnicas mais sutis para ter acesso a esses “likes”. Usamos diferentes técnicas. Seus amigos, por exemplo, podem ver seus “ likes” no Facebook. Se você integra um grupo, por exemplo, você expõe seus “likes” ao administrador do grupo.
RFI - A conclusão é que não existe privacidade nas redes sociais.
POD - As redes sociais ganham dinheiro encorajando as pessoas a compartilharem o máximo de informações possíveis sobre elas mesmas e entre seus amigos. Em seguida observam esse compartilhamento para manipular os dados que são coletados para fins publicitários.
RFI - E no WhatsApp, os dados podem ser coletados da mesma forma?
POD - Há uma diferença entre o Messenger do Facebook e o WhatsApp. Os dois pertencem ao Facebook, mas, pelo menos por enquanto, o conteúdo do WhatsApp é criptografado. Facebook pode ler uma mensagem no Messenger, mas não pode ler uma mensagem WhatsApp. Por outro lado, pode coletar os metadados associados à rede para uso publicitário. Facebook sabe, graças ao WhatsApp, quem é seu marido, sua família, sua empresa, o esporte que você pratica, etc.
RFI - Como essas técnicas podem ser usadas em campanhas eleitorais?
POD - Essas técnicas são usadas para incitar à viralização nas redes sociais e encorajar as pessoas a reagirem de uma certa maneira, compartilhando conteúdos que não correspondem necessariamente à verdade. E, graças a isso, dirigir o debate, ou a discussão pública, sobre temas bem específicos. Trata-se de uma ferramenta de manipulação da informação em grande escala. Além das cinco noções da Psicometria que defini antes usadas na construções de perfis influenciadores, há outras noções importantes: o que chamamos de locus of control (quem você responsabiliza pelas mudanças em sua vida? Você mesmo ou o destino?), need for cognition (a necessidade de pensar antes de tomar uma decisão) e need for affection (necessidade de sentir emocionalmente essa decisão antes de toma-la). Na construção dos algoritmos, podemos caracterizar as pessoas usando dados, e se percebemos que se alguém esta mais próximo do perfil need for affection, por exemplo, estamos diante de uma pessoa que pode ser facilmente influenciada pela emoção, sem nenhuma, ou pouca reflexão. Desta forma, se compartilharmos com esse indivíduo um conteúdo político, que tem bastante ressonância, isso vai encorajá-lo a compartilhar esse conteúdo sem pensar. Os efeitos podem ser muito surpreendentes em termos de feedback no Facebook. Esse pequeno grupo compartilhará o conteúdo entre si, e isso, por conta da natureza comercial da rede, levará o algoritmo de Facebook a buscar outras pessoas com as mesmas características. Isso levará naturalmente a uma viralização com pouca reflexão sobre o que foi compartilhado. O problema é quando focamos apenas nessas pessoas.
RFI - E o chamado “dark post”?
POD - É uma outra ferramenta. Podemos fazer circular uma mensagem dentro de uma comunidade, sem que outras pessoas, como jornalistas ou ONGs, possam acessar os conteúdos que circulam nesse grupo. Isso impede a visão de um debate aberto e democrático em um contexto de eleições. Há pessoas que se deixam influenciar, não sabemos como, com falsas informações que circulam, mas sem feedback crítico sobre essas informações.
RFI - Podemos comparar o que acontece no Brasil com a campanha eleitoral americana?
POD - Observamos uma esfera política cada vez mais complexa para os jornalistas, que têm dificuldade em acompanhar essa dinâmica. Foi o que aconteceu na campanha americana. Os jornalistas tinham problemas para explicar o que estava acontecendo, justamente porque havia informações que circulavam em redes nas quais eles não tinham acesso. O paralelo entre o Brasil e os EUA é esse: alguns atores conseguem manipular as redes eletrônicas de maneira mais eficaz que os jornalistas conseguem cobrir os eventos. Para mim, há um problema de base muito importante: o papel dessas redes na difusão do conteúdo jornalístico. Os jornalistas se tornaram muito dependentes delas e isso faz com que a cobertura sobre as redes sociais não tenha sido suficientemente crítica no passado.