Em um episódio recente do Kanal Marx, transmitido também pela TV Boitempo, sobre o método materialista histórico de Marx no livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, alguns comentários sobre o vídeo nos chamaram a atenção. Curiosamente, eles não se referiam a nenhuma dúvida ou questionamento com relação ao denso conteúdo de mais de 30 minutos discutindo dialética hegeliana, idealismo alemão, materialismo ou luta de classes, mas aos primeiros dois segundos do vídeo em que a Ana Paula cumprimenta a tod@s com um simpático “Olá a todos, todas e todes”.
Um dos comentários indignados lia: “Todes, sério mesmo”. Outro tentava justificar o seu descontentamento com um argumento naturalista frequentemente repetido por quem se opõe ao uso “artificial” do gênero neutro em português: “[...] a lingua (sic) é como um rio que não deve ser represado ou alterado no seu curso. Vamos deixa-la livre e viva. Não gosto desse artificionalismo ‘WOKE’ (detesto essa palavra)”.
Nos saltou aos olhos alguém adotar um argumento naturalista em uma aula sobre materialismo histórico. Ao assumir que a língua desenvolve-se “naturalmente” de forma puramente espontânea e que ela é “livre” deixa-se de lado completamente o fato de que qualquer língua é um produto sociocultural. Ignora-se ainda que, pelo menos desde a formação dos Estados-Nação, as línguas nacionais são governadas por regras rígidas muitas vezes impostas como lei. Também faz-se vista grossa para o uso imperialista da língua durante, por exemplo, a brutal expansão neocolonial francesa no século XIX, quando a imposição de um idioma oficial e a proibição do uso das línguas nativas foi utilizado como meio de dominação e etnocídio (cf. Pierre Clastres).
Quanto ao primeiro ponto, se a língua é um produto sociocultural, ela só pode ser “livre” se a sociedade que a produz for igualmente “livre”. Se acreditamos, com Marx, que nos encontramos sob o jugo do Capitalismo e do Estado burguês, logo, esta não é uma sociedade livre e, consequentemente, a sua língua tão pouco o é. Neste sentido, a iniciativa de adotar um uso da língua diferente da norma imposta é, em si, um ato revolucionário e justificado (pelo menos por aqueles que acreditam na possibilidade de emancipação humana).
Quanto ao segundo ponto, a análise histórica mostra que as línguas não se desenvolvem livremente, mas são produto do seu contexto histórico e social. Por ex., a revolução científica no século XVII serviu de pretexto para que figuras como Galileu e Descartes deixassem de utilizar o latim e passassem a usar as novas línguas nacionais em seus textos “científicos”, com a desculpa de que seriam “mais adequadas” para tal tipo de texto.
Quanto ao último ponto, gostaríamos de lembrar das palavras de Frantz Fanon a respeito da colonização francesa da Martinica:
"Um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito[...] existe na posse da linguagem uma extraordinária potência[...]."
Fanon, filósofo e médico psiquiatra, notara com excepcional clareza que o nosso mundo e o nosso pensamento estão limitados à nossa língua, a nossa expressão da linguagem. Portanto, o esforço de nos forçarmos a ver o mundo de outra forma e reformar o nosso pensamento passa necessariamente por um esforço que não prescinde o de reformarmos como nós falamos deste mundo.