Memória Capixaba de Fábio Pirajá

Lata d'água na Cabeça (As Carregadeiras de Água)


Listen Later

Lata d'água na Cabeça (As Carregadeiras de Água)


Nos morros, onde as casas se empilhavam em um equilíbrio precário, a água encanada era um sonho inalcançável. As carregadeiras de água se tornavam a ponte entre a necessidade e a sobrevivência, descendo às fontes, poços e rios para buscar o que era vital. Não carregavam apenas para suas casas; muitas vezes, o destino era a residência dos patrões, onde o luxo das torneiras dependia do esforço silencioso de quem subia e descia as ladeiras sem descanso.Os caminhos eram desafiadores. Escadas de pedra gastas pelo tempo, ladeiras de terra que viravam lama na chuva, e trilhas sinuosas marcavam o trajeto. Descer com os baldes ou latas vazios era o início de uma tarefa que não admitia falhas. Na volta, com a água equilibrada na cabeça, cada passo precisava ser medido; um deslize significava perder tudo e começar de novo.As fontes eram discretas, quase escondidas, mas indispensáveis. Os rios, sempre lá, ofereciam suas águas, mas exigiam esforço para serem alcançados. Nos poços, o som das cordas rangendo enquanto os baldes subiam trazia um cansaço ancestral. A cada viagem, mais do que água, era a força da persistência que subia com elas.Nas casas dos patrões, a água era deixada nos reservatórios, enchendo tanques que muitas vezes não pertenciam às carregadeiras. Em silêncio, retornavam para abastecer seus próprios lares, sempre no mesmo trajeto, repetindo o ciclo sem reconhecimento ou alívio.O cotidiano dessas mulheres era marcado pela constância da labuta. Não havia heroísmo nas subidas nem poesia nas descidas — havia apenas o peso literal e simbólico do que carregavam. Nas latas equilibradas na cabeça, sustentavam a vida de dois mundos: o delas e o dos que nunca precisaram subir um morro em busca de água.FP.


...more
View all episodesView all episodes
Download on the App Store

Memória Capixaba de Fábio PirajáBy Memória Capixaba