O Segredo da Fascinação.A fascinação residia em sobradinho antigo, já com a pintura sofrida pelo efeito inevitável do tempo.Estava encarnada em pele e osso, vestida sempre em seus vestidinhos esvoaçantes, de tecido fino. “Europeu!” – dizia ela.
Aquele olhar, de quem vislumbrara todas as novidades vindas do Velho Mundo, era o retrato exato da fascinação.
Ela olhava o mundo como se o tempo tivesse parado, como se ainda sonhasse em viajar num dirigível, como se causasse o mesmo furor de seus 15 anos de idade, com suas canelas finas à mostra – “Que abuso” – diziam quando ela passava.
Era a fascinação. E a fascinação era abusada!
A menina de cabelos curtos e ondas na franja, por algum motivo, havia parado no tempo.
Aos 85 anos de idade, ainda era a menina das canelas de fora, das ondas no cabelo, do rouge europeu e do pó de arroz, cheirando a talco e alfazema.
Aos 85 anos de idade, Dona Amábile não sabia em que ano estávamos, nem percebera a mudança do mundo que avistava do seu quarto, por entre os balaústres de sua varanda.
Aos 85 anos de idade, ela tinha o olhar mais doce e fascinante do meu mundo. Envolto em pregas de pele flácida, fina, porém sem manchas senis.
E eu? Eu me perdia em pensamentos só de olhá-la. Ali. Parada. Parada como se emoldurada pelo madeiramento velho das portas de duas folhas que davam praquela varanda.
Portas altas, estreitas, com vidros decorados e coloridos.
Minha mãe dizia que, se eu não me casasse quando crescesse, iria terminar como Amábile… Sozinha. Vendo a vida passar pela janela.
E eu?
Eu achava que terminar como Amábile era melhor do que terminar como minha mãe, que vivia vendo a vida passar pela televisão.
Amábile passava os dias escrevendo, contando botões que guardava em potes de vidro, colando coisas em álbuns, costurando as bonecas de pano que pendurava nas árvores do jardim e que pereciam com a ação do tempo e das tempestades. As pessoas diziam que aquilo havia de ser bruxaria, e que as bonecas estavam enforcadas. Não, as pessoas não são capazes de entender pessoas como ela...
Minha avó contava que Amábile nunca fora certa da cabeça, que queria comer o mundo com os olhos, estava sempre um passo à frente, sempre antenada com todas as novidades europeias, que tinha sempre os tecidos mais inusitados, que tinha sempre as bijuterias mais diferentes, que sempre dizia coisas sobre as coisas que lia, sobre os livros que recebia, os artistas e pensadores com quem se correspondia.Amábile fora uma intelectual precoce.Tocava piano, lia sobre psicanálise, amava aquela efervescência toda: cinema e rádio e carros e aviões e dirigíveis.
O que haveria prendido ela em um porta-retrato?
O que a teria feito parar no tempo?
E em que tempo ela estava?
Minha avó, com suas definições precisas, um dia disse que Amábile fora uma locomotiva a vapor que, repentinamente... saíra dos trilhos.
O que haveria acontecido com Amábile?
Eu nunca soube. Só sei dizer que, Amábile me despertou a fascinação.
Me fez do outro lado da rua, parar o tempo para observá-la. Para observar, por entre os balaústres carcomidos, aquele doce intervalo de vida congelado no tempo, impresso naquela varanda de forma tão fascinante.
Eu a observava. Descia duas quadras, atravessava duas ruas, torcendo para que Amábile estivesse na janela, só – para – poder – vê-la.
Ainda que em pensamentos, eu gostava de falar com ela. E mesmo que ela nunca me respondesse e jamais me ouvisse, eu continuava falando e falando e falando.Ela me fascinava.E me fascinava pensar que ela podia estar esperando por mim.Imaginando o que aquela menina tanto fazia, sentada naquela bicicletinha vermelha, por tanto tempo do outro lado da rua, olhando para sua janela.Um dia Amábile me viu. Me viu e sorriu. Sorriu para mim. Fez um sinal com a mão. Eu deixei a bicicleta no chão, atravessei a rua e, debaixo da varanda, a imagem não era tão interessante.Às vezes a gente enxerga melhor de longe.De perto, não dava pra ver quase nada. Não dava pra ver a penteadeira, não dava pra ver os potes de botões, nem dava pra ver ela direito.
Ela me deu algo que só depois de muito tempo fui capaz de compreender.
Um bauzinho de lata, antigo, com umas coisas dentro. Uns papéis de carta, um caderno, uns envelopes, umas fotos e uma bússola.Uma bússola!Amábile me deu uma bússola.Uma bússola antiga, tão antiga quanto os sonhos de Amábile pareciam ser.
Isto que estou contando estivera, até então, enterrado em algum lugar da minha mente. E quanto mais fundo você enterra, mais você preserva.Soterrado sob escombros de anos e anos de desgraças e desventuras, de alegrias e outras doçuras.
Esteve o baú.
Na minha última mudança, reencontrei.
Abri… e entendi.
Amábile estava perdida.
Sua bússola estava quebrada.A menina que queria andar numa máquina voadora estava desnorteada.Entre os papéis, encontrei uma partitura, enfiada em um dos envelopes.Partitura antiga e carcomida, assim como a varanda e tudo que emoldurava aquela figura que me fascinava.Levei para um amigo tocar... para descobrir o que Amábile escutava.
E ele disse: “É uma música linda, de amor.”
Embora ele não tenha tocado no piano, mas em um teclado moderninho, deu pra entender.
Há alguns anos, voltei à minha cidade natal e resolvi saber de Amábile.
Depois do dia em que ela me deu o baú, acho que guardei os olhos com os quais a olhava em algum lugar protegido do mundo, do tempo, das pessoas.Nunca mais desci as duas quadras, nunca mais atravessei as duas ruas, nem fiquei horas e horas olhando para aquela varanda.Acho que guardei aqueles olhos até que me fosse seguro… usá-los novamente.
Em minha busca por Amábile, esperava encontrar algum velhinho que morasse por perto, que contasse uma história emocionante sobre ela, que fosse me dizer que ela fora apaixonada por um oficial alemão, casado, com quem se correspondia mas nunca havia se encontrado, e que, vindo ao seu encontro, havia falecido naquela viagem do Hindenburg.Ou que talvez tivesse se apaixonado por um piloto de avião, ou por alguém que lhe dera a tal bússola e lhe enviara as tais cartas, das quais ela só guardara os envelopes, pois era algo tão secreto que tinha que ler e rasgar as cartas em seguida, para que ninguém descobrisse nada sobre seu amor proibido.Eu queria ouvir qualquer história mirabolante que me fizesse viajar no tempo e desvendar o segredo da fascinação.
Mas só escutei uma história triste de como ela morreu sozinha,como um bebê, sem ninguém da família e abandonada num abrigo, usando fraldas e recebendo alimentação por uma sonda.
Tudo em volta de onde a fascinação residiu um dia se tornou comércio.O sobradinho, que deve ter ficado de herança para algum sobrinho, fora invadido, depredado por moradores de rua e usuários de crack.E agora se encontra lacrado com tábuas.Os balaústres da varanda estão quebrados.Não apenas carcomidos… quebrados.E naquela porta que dava para a varanda – porta alta, estreita, com vidros decorados e coloridos – há uma placa de “Vende-se”.
E eu gostaria de poder dizer que, se fechasse os olhos, ainda podia ver Amábile observando a rua.Fechei meus olhos, mas o barulho da rua, agora tão movimentada, quase me enlouqueceu.
Amábile morreu.
Eu não resido mais no mesmo lugar, mas continuo querendo desvendar os mistérios de Amábile.
O segredo da fascinação.
É… Talvez a beleza disto seja entender que algumas perguntas ficam mais bonitas sem respostas.É algo divino nas entrelinhas. Apenas o último observador sabe a verdade.E a minha verdade é esta:Tenho um baú, de lata, velho, com cartas, fotos, envelopes, papéis de carta e um caderninho….E uma bússola quebrada.
O que faz de mim, também, uma desnorteada.E quer saber?... Eu vejo beleza nisto.
A fascinação residia em sobradinho antigo, já com a pintura sofrida pelo efeito inevitável do tempo.Estava encarnada em pele e osso, vestida sempre em seus vestidinhos esvoaçantes.
E agora… eu tenho que fechar a minha janela.
Crônica publicada na edição comemorativa pelos 158 anos da cidade de Jahu. Gravada para o Festival Literário Hilda Hilst.Musicada por Renato Di Giorgio, para o projeto Cabrazen.
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