Poesia Quase Todo Dia

pantera comum


Listen Later

certa vez (você se lembra?)

nós dois estávamos na mata

perto da roça onde morava seu pai

e avistamos ali a primeira onça da

nossa infância e ela meu deus era bela

e terrível mas ninguém nos acreditou

não te vejo mais

não lembro mais do seu nome (perdoa)

eu era apenas isso mesmo um menino e

continuo sendo exatamente um homem

burro como meus outros homens

meus pés se parecem e muito

com os pés dos que vieram antes

porque pisam suas estradas

porque minas é agora uma memória distante

e quando lembro de mim é como se olhasse

um mapa onde não houvesse nortes

escrevo cada vez mais sobre

o que deixei para trás e isso parece

uma tentativa de arrancar fora a culpa

por ter fugido de tudo e abandonado

todo mundo num estado da federação

onde nada mais voltará a ser sólido

onde a física serve para dispor

no espaço todos e tantos corpos

(eu matei muita gente me desculpe

mas matei porque quis então

talvez não tenha culpa mas sim

um monte de mérito por ter saído

vivo impune e fabulosamente colorido)

rezo toda as noites a nossa senhora

na esperança de que ela ouça melhor do que lê

porque o que escrevo é prece para outro deus

e não deve castigar os olhos de uma mãe

o que escrevo é um grande felino

prestes a desaprender as jaulas

a onça teria sido tão terrível se

eu não amasse a vida mais do que

amo quinze pares de dentes?

hoje eu diria que entre a boca e a vida

há pouca ou nenhuma diferença

e certamente a desafiaria mas não por

imprudência ou coragem nem por

ter assistido a todos aqueles

programas dublados do animal planet

hoje me enfiaria em sua boca

do mesmo modo que enfio na minha

tanta gente que igualmente me mete medo

só pelo desejo de provar seu gosto

e pela vontade de saber se um dia

haverá quem sacie minha fome sem que

com isso eu me condene ao comê-lo



This is a public episode. If you would like to discuss this with other subscribers or get access to bonus episodes, visit newsletter.eduardofurbino.com
...more
View all episodesView all episodes
Download on the App Store

Poesia Quase Todo DiaBy Eduardo Furbino