A violência de gênero contra a mulher configura-se como uma das violações mais recorrentes dos Direitos Humanos no mundo (Piatti, 2013), tendo sido reconhecida oficialmente como tal apenas em 1993. Em termos históricos, esse reconhecimento representou um marco tardio no qual as mulheres passaram a ser consideradas plenamente humanas pelo Direito Internacional (Facio, 2011). No Brasil, estima-se que cerca de 30% das mulheres já tenham sofrido algum tipo de violência de gênero praticada por homens. Dentre essas, 76% relataram violência física, sendo esse índice diretamente afetado por recortes de classe: enquanto 64% das mulheres com renda acima de seis salários mínimos afirmam ter vivenciado esse tipo de violência, esse número sobe para 79% entre aquelas com renda de até dois salários mínimos. Em 2023, foram registrados 2.694 feminicídios no Brasil, conforme dados do Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB).Além da expressividade desses dados, é importante destacar que mulheres negras são desproporcionalmente afetadas pelas diversas formas de violência. Já na Argentina, uma pesquisa da Iniciativa Spotlight revelou que cerca de 45% das mulheres relataram ter vivenciado violência doméstica ao longo da vida ou no último ano (Ministério de Mulheres, Gêneros e Diversidade da Argentina, 2024).Diante desse cenário, desde os anos 1990, diferentes Estados têm desenvolvido políticas públicas e legislações com o objetivo de enfrentar a violência de gênero. A maior parte dessas ações surge em contextos de redemocratização, o que permitiu avanços na incorporação da perspectiva de gênero nas políticas públicas. O direito à vida, à saúde e à segurança — compreendidos como direitos fundamentais e deveres do Estado — evidenciam a centralidade da atuação estatal no enfrentamento à violência de gênero.Entretanto, apesar dos avanços normativos, ainda são escassos os estudos que se aprofundam nas experiências de enfrentamento vivenciadas pelas mulheres vítimas de violência, especialmente no que se refere à saúde mental e à garantia de direitos. Assim, torna-se essencial investigar os efeitos das violências na saúde mental das mulheres, a percepção de suporte social, as estratégias de cuidado e os fluxos de acolhimento existentes. Tal investigação deve considerar, de forma interseccional, os marcadores sociais como gênero, raça e classe, os quais incidem diretamente na vivência e no enfrentamento da violência. Operar interseccionalmente, como propõe Crenshaw (2002), significa compreender que as desigualdades não se apresentam de forma isolada, mas articulada, e que a análise de suas intersecções permite acessar dimensões pouco exploradas da experiência de grupos historicamente subordinados.Neste sentido, é fundamental compreender como diferentes grupos de mulheres – aquelas que não vivenciaram violências, as que sofreram um tipo específico e as que sofreram múltiplas formas – experienciam os avanços sociais relacionados à garantia de direitos, à saúde mental, à qualidade de vida e ao suporte social. Além disso, é necessário investigar quais estratégias têm sido utilizadas por essas mulheres como formas de cuidado e enfrentamento, e como essas práticas podem subsidiar a formulação de um fluxo de acolhimento integrado entre os equipamentos de saúde e justiça. Por fim, este fluxo será também adaptado ao contexto argentino, considerando as especificidades socioculturais daquele país.