É difícil definir um gênero para o livro de Martin. Ainda que tenha começado como um diário de campo, sua sublime elaboração o coloca mais perto da literatura, ou talvez algo entre etnografia, literatura e relato autobiográfico. Essa mistura faz dele uma bela e sensível peça de reflexão, deleite e agonia na tentativa de compreender as trajetórias dos mundos que se entrelaçam, não sem se chocar, quando a antropóloga francesa é atacada por um urso siberiano na Floresta de Tvaián, nas montanhas de Kamtchátca.
É na descida do vulcão Kámien, no maciço de Kliútchevskoi, que o encontro se consuma. É uma luta, ninguém ganha, mas também ninguém morre, cada um, urso e mulher, perdeu um pouco de si e ficou com um tanto do outro. O combate foi uma troca simétrica não apenas de ferimentos, mas de olhares espelhados e mútuos reconhecimentos. Do ponto de vista nativo, ao ver os olhos da Nastassja, o urso viu o reflexo da sua própria alma, é por isso que ursos não suportam ver os olhos dos humanos. Naquele beijo que lhe fraturou o osso do maxilar, a antropóloga é marcada pelo urso. E na defesa, o urso é ferido pela mulher com um golpe de picareta. Ela também foi a fera do urso. Então ela devém miêdka, o que significa que daí para frente ela é metade humana, metade urso, e que os sonhos dela passaram a ser também os sonhos do urso.
Nastassja Martin nasceu em Grenoble, na França, em 1986. Estudou antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, onde se tornou doutora em 2014, sob a orientação de Philippe Descola, com uma tese sobre os gwich’in do Alasca. Publicada sob o título de Les âmes sauvages (La Découverte, 2016), a tese recebeu o prêmio Louis Castex da Académie Française. Seu livro seguinte, Escute as feras, publicado originalmente sob o título de Croire aux fauves (Gallimard, 2019), revisita experiências de 2015, quando Martin realizava pesquisas de campo junto aos even da península de Kamtchátka, na Sibéria. O livro recebeu o prêmio François Sommer de 2020 por sua contribuição à reflexão sobre as relações entre o homem e a natureza. Nastassja Martin é membro do Laboratório de Antropologia Social e desde 2020 participa de um comitê contra a degradação turística em La Grave e no maciço dos Écrins, nos Alpes franceses.