AS RENDEIRAS, TEXTO DE ISABEL SERRANO PARA A REVISTA O CRUZEIRO - 29/03/1952
A história da origem da renda é repleta de lendas encantadoras, em cujo enredo o amor é quase sempre o motivo central. Ora é o caso de uma jovem camponesa que, encontrando-se em situação desesperadora, promete à Virgem Maria renunciar ao noivado caso Ela venha em seu auxílio; e a Virgem, atendendo à súplica, faz surgir, estampado no avental da jovem, o modelo da primeira renda.
A moça, executando tão fino modelo, aufere, com a venda do trabalho, abundantes meios de subsistência. Ora é o caso daquele marinheiro que, tendo trazido de longínquas paragens um lindo coral para sua noiva, esta, ao vê-lo partir para a guerra, toma a resolução de reproduzir a imagem da preciosa dádiva em delicada renda.
Imitando o trabalho das aranhas, a inconsolável noiva do filho de poderoso cacique executa a primeira renda “nhanduti”, tomando por modelo a teia que as aranhas haviam tecido na caveira de um valente caçador, morto por um jaguar na espessura da floresta. E, de muitas outras maneiras, a imaginação das pessoas simples procura explicar a origem da renda, esse delicado trabalho que adorna a indumentária feminina e que outrora também ornava as ricas vestes dos cavalheiros, em tempos em que os punhos de renda dos uniformes e as lâminas de aço das espadas não apresentavam antagonismo ou contradição.
A renda de bilro, ou de almofada, é mais conhecida no Brasil pelo nome de "renda do Norte", muito embora seja executada em várias partes do país. No Estado do Espírito Santo, a sua confecção é assaz comum. Em algumas fazendas, havia escravas ou servas especializadas nessa indústria doméstica. Nesse tempo, as senhoras vestiam roupas largamente enfeitadas com rendas e bordados. Nas várias saias, usavam babados com adornos de renda fina. As roupas de cama, de mesa e até as toalhas de rosto apresentavam barras de renda. Qualquer família tradicional de nossa terra ainda conserva alguma toalha adornada de renda, crochê ou crivo. E talvez ainda existam pessoas que se recordem de vê-las, alvas como neve, admiravelmente bem engomadas, colocadas no porta-toalhas dos quartos de dormir, junto à bacia e ao jarro de porcelana colorida.
Quando cheguei a Guarapari e entrei em contato com a vida da cidade, logo observei que ali ainda havia muitas rendeiras. Como quase todas as casas são térreas e sem jardim à frente, não é necessário ser indiscreto para que se tenha uma visão perfeita do interior da sala de visitas. Aliás, quase todas as rendeiras preferem trabalhar junto à janela ou à porta, provavelmente para aproveitar a melhor iluminação. Segundo as rendeiras mais antigas do lugar, desde épocas remotas esse gênero de indústria doméstica é executado em Guarapari.
Expressou-se assim uma delas sobre o assunto: “Parece que a renda, aqui, nasceu com a localidade. Na minha família, por exemplo, até a geração de que tenho notícia, todas as mulheres faziam renda. Desde os seis anos de idade, as meninas começam a aprender essa arte."
Em 1949, faleceu em Guarapari uma rendeira com 120 anos de idade. Tinha três irmãs, e todas trabalharam até morrerem, cada qual com mais de 100 anos. Chamavam-nas “as Tijorge”. Diziam elas que sua mãe fora exímia rendeira. Guarapari foi outrora conhecida como o lugar das rendas. De fato, não havia casa onde não fossem vistas uma ou mais rendeiras trabalhando, muitas vezes até à noite, à escassa luz do lampião, quando não havia eletricidade.