Estamos pelo menos 100% mais fascistas do que há duas semanas. E a tendência é que a curva se acelere se nada for feito para barrar as ações do bolsonarismo ativo, da reação leniente dos autoproclamados “defensores das instituições” ou mesmo dos arrependidos de última hora, que agora se esgrimam para atacar com mais virulência o horror que elevaram ao poder. Imprensa corporativa aí incluída.
A pandemia criou uma realidade paralela, que divide o mundo em dois, como numa ficção científica destinada ao final infeliz da distopia que nos espera em 2022. No primeiro mundo, convive-se com um governo autoritário, entreguista e incompetente. No segundo, com um conchavo mesclado de racionalidade e desvario, que ainda chancela o poder em nome de alguns valores materiais e ideológicos, capazes de valer por seus defeitos indisfarçáveis.
A doença parece dar a chave. Se no primeiro momento da covid-19 havia um pânico acerca da ameaçadora democratização do vírus, que chegou com os turistas de classe média e afetou a zona sul em primeiro lugar, com o tempo, a naturalização da desigualdade brasileira passou a dominar o cenário. O fato de adoecerem gravemente e morrerem, sobretudo, pobres, velhos e os já doentes parece apenas um corolário do nosso darwinismo social. Nada mais exemplar que festas em praias de luxo e mortes em hospitais de periferia.
O cenário de desprezo com o sofrimento por parte do governo federal, manifestado em repetidos momentos horríveis (“gripezinha”, “não sou coveiro”, “e daí?”) deu a dimensão do mal que habita o coração do atual governo. Há a maldade que se manifesta pelo egoísmo. Há a ruindade que é patrocinada por interesses que desprezam o outro em favor da defesa de uma visão de mundo, seja ela religiosa, ideológica ou psicopatologicamente orientada. Tem ainda a incapacidade do sentimento de compaixão.
Mas existe uma forma de mal que se alimenta de certa satisfação com a dor de quem sofre. Há um termo alemão para isso, schadenfreunde, que pode ser traduzido com alegria com a perda do outro. Sua derrota é meu consolo, sua dor meu prêmio, sua lágrima minha alegria. Nesse nível, que pode ser considerado o marco zero da maldade humana, além de infligir dor, derrota, sofrimento, prejuízo e desvalor, a pessoa exibe o gozo pela infelicidade alheia.
Quem não se lembra de Bolsonaro, durante uma solenidade pública, vomitar: “Lamento. Todo mundo morre, né, Serjão?”, disse, dirigindo-se à plateia, seguido de um esgar que imitava um sorriso malicioso. A alegria macabra, em meio à despersonalização da morte das pessoas num pantanoso vocativo afetivo, é um signo do coração sujo, do mau espírito, do mal em sua pureza. Da incapacidade de empatia. Bolsonaro, além de comandar um mau governo, é um homem mau.
Tudo isso leva a pensar numa crescente de descaminhos que há muito já rompeu com o limite da racionalidade, da civilidade e da democracia. Não se trata mais de uma questão de escala, a partir da qual o presidente teria ultrapassado o tolerável e estaria a exigir uma ação mais determinada das forças sociais e políticas. O fascismo – a palavra é exata, por mais que os puristas tentem se desvincular dela para afastar o constrangimento pelo que fizera no verão passado – não descreve um momento quantitativo de abusos, mas uma mudança de patamar. Da quantidade para a qualidade, como receita a boa dialética.