Um começo é um ritual. Prepara-se um espaço, uma pessoa, a si próprio, para receber, praticar, experimentar a novidade. A audição apura-se, o tacto parece mais sensível, os olhos prescrutam os espaços em volta. O novo tem o dom de nos colocar alerta e este estado de vigília aprofunda o conhecimento de si. É também como uma reza: ritualizo o começo para que dali venha a continuação, o estabelecimento, o hábito.
Todos os anos começamos: não apenas o próprio ano, mas novos eus. Fazemos resoluções, acreditamos na possibilidade da renovação do corpo e da mente; e para quê? Penso que seja um estádio de luto: idealizamos um futuro melhor para aceitarmos o fim do ano que termina. Ao desenharmos promessas para o ano que se inicia, acreditamos na possibilidade de melhoria do eu, aproveitando a renovação artificial do tempo como motivação colectiva. Novo ano, novo eu.
As ideias têm um efeito semelhante em mim. Quando me surge o esqueleto de um projecto ou ideia na cabeça, o peito e o pensamento atravessam-se à frente, comandando o espírito. As possibilidades são múltiplas, infinitas, pode-se tudo e podem ser tudo. Dá-se o início e o mais certo é perder-se o gás ali a meio e a coisa ficar por fazer, por completar. A ideia fica a meio e queria-se tanto no começo! É esse o alarido.
Alarido dos Começos. Pesquisa no Google (com aspas) e vê o que aparece. Há quase catorze anos (tinha eu dezoito) ganhei um prémio com um conto que assinei com esse pseudónimo. Pediam sempre um pseudónimo para assinar os textos com que se concorriam para concursos e prémios, e eu nunca soube bem o que colocar. Na verdade, nunca percebi muito bem o que queriam dizer por pseudónimo e, mesmo que soubesse que era um nome que não fosse o meu nome verdadeiro, por alguma razão, achava que tinha de ser um nome que fosse obviamente falso. Fiz como fazia com muitos dos textos que escrevia, coloquei algo que me soou bem, sem pensar muito no sentido. Alarido dos Começos tinha o seu quê de português dos velhos, como se fosse um senhor nos seus setenta e tal anos. Há a Maria das Dores, o Olímpio dos Santos e o Alarido dos Começos.
Quando recebi a notícia que tinha ganho o prémio, vi os pseudónimos dos vencedores de outros prémios do mesmo festival e corei. Eram nomes normais e o meu era parvo. Quando me chamaram para receber o prémio e disseram o nome ao microfone, ouvi risos abafados dos senhores escritores que estavam presentes enquanto me dirigia ao palco e fiquei envergonhado. Podia ter sido o Jorge Pires, ou o António Soares, ou o Pedro Filipe. Mas não — fui ao palco ser o Alarido dos Começos. A certa altura reflecti sobre esse nome. Um Jorge Pires ou outro qualquer não dizem nada sobre mim. O pseudónimo que escolhi sem pensar muito diz. Era a suma perfeita das dezenas de documentos com duas ou três páginas que ficaram por terminar, espalhadas em pastas no meu computador, dos cinco ou seis blogs que nunca passaram de cinco ou seis posts, dos cadernos que só conheceram tinta nas primeiras folhas. O alarido da minha cabeça sempre que começava algo e que ficava por terminar.
Daquela vez, o Alarido dos Começos tinha terminado a história. Foi o primeiro e único texto que assinou (e também fez um alarido com o prémio, diga-se). Nunca me esqueci desse nome, e, na tentativa de dar um a esta “newsletter”, surgiu-me novamente no pensamento. Novos começos, novos alaridos. Mesmo no início do ano.
O que é isto, então? Tecnicamente, o alarido é uma newsletter. Na prática, não vou dar notícias nenhumas, por isso não acho muito correcto estar a dizer isso. Por outro lado, gosto da terminação dessa palavra: letter. Vamos então assumir que o alarido é uma série de cartas. Não é propriamente uma correspondência, porque não corresponde a um sujeito fechado, nem pressupõe resposta. Cartas abertas. Abertas ao mundo.
Vou escrever aqui sobre muita coisa e coisa nenhuma. Não existe um planeamento, nem periodicidade definida. Na minha cabeça, defini que não quero que passe demasiado tempo entre cartas para não instilar um certo terror de que nunca mais irás ouvir de mim (na verdade, o terror é meu e sobretudo sobre a minha incapacidade de criar hábitos e ter disciplina — quando era miúdo pintava sempre fora das linhas, por isso nunca fui rapaz de disciplina; o Foucault fala disso e talvez seja útil voltar a ele) onde é que eu ia? digamos que, pelo menos, uma publicação por mês acontecerá.
Não me vou apresentar, porque provavelmente conheces-me. Se não me conheces, prefiro que vás percebendo quem sou através destas cartas. Sabes o meu nome e, por agora, é suficiente. Vou aproveitar esta correspondência para também escrever sobre os livros que ando a ler, os filmes que ando a ver, as coisas que aprendi ou descobri. Poderei falar dos meus gatos, da minha vida ou dos objectos que criei.
Com esta carta ficaste a saber que, uma vez, ganhei um prémio. Que humilde da minha parte! Gastei parte dele num iPod nano laranja, no qual pedi para gravar, no verso, we’ll go to the hidden place, um verso da música da Björk pela qual andava apaixonado. O nós dessa frase não relatava a ninguém em específico para além de mim, o que também demonstra a minha capacidade de fazer filmes na minha cabeça e do arrebatador poder do sonho do príncipe encantado. Ah, a adolescência! Não deixas saudades.
Um abraço.Miguel
música da leitura desta carta: closing — machinefabriek & gareth davis
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