O sonho iniciado 60 anos atrás pelos Beatles, ou personificado pelos Beatles, era na prática a concretização do romantismo. Tudo que já se havia escrito sobre harmonização estética, filosófica e comportamental das sociedades passara a ter uma experiência viva, concreta, sentida por todos. Não uma uniformização, muito menos uma padronização. Ao contrário: o que unia todos era a lei não escrita de que todos podiam ser como quisessem – e haveria espaço para todas as diferenças. Espaço, não: respeito, valorização, afirmação. Afirmação, não: o bom da coisa era que não carecia afirmar nada, declarar nada, estipular nada. Estava escrito, ou melhor, não estava, que a lei era respeitar tudo que fosse diferente, porque era dali que viria provavelmente a sua próxima inspiração — não a sua próxima desavença.
Foi um belo sonho. E ele foi real. Por que acabou? Porque John Lennon pronunciou “o sonho acabou” ao final dos Beatles, vocalizando o fim do romantismo? Não, não foi por isso. O que acabou foi o pacto de liberdade. A tentação de industrializar a liberdade foi mais forte. O espírito era tão bom, tão fértil que logo proliferaram os vendedores de sonho. O espírito livre vê florescer a diferença e se guia por ela, ou a ignora; o vendedor simula a diferença para tentar vendê-la pelos olhos da cara ou para patrulhar os não aderentes.
O sonho acabou porque tentaram adestrar a espontaneidade. Estão tentando até hoje. A experiência do amor ao próximo sem catequese, ou seja, a comunhão gratuita, a propensão ao exercício da irmandade pelo respeito/amor à diferença, é algo tão sublime que obviamente iriam aparecer os intermediários providenciais. Eles abrem suas pastinhas de produtos românticos e te oferecem uma ética humanitária novinha em folha – que te habilita instantaneamente a patrulhar o freguês ao lado que não adquiriu o mesmo serviço.