A Sombra e o Samurai
Ailton Krenak – curador
Nagakura-san é um samurai. Sua espada é uma câmera que ele maneja com a
segurança de quem já passou por campos de refugiados e esteve no centro das
praças de guerra, por lugares como África do Sul, Palestina, El Salvador e
Afeganistão.
No Afeganistão, antes da chegada do Talibã, registrou a entrada vitoriosa do grande
líder popular Massoud em Cabul. Massoud, aquele chefe tribal que organizou a
resistência nacional para expulsar os russos na década de 1990 e que foi
assassinado pelos Estados Unidos da América 2 dias antes do atentado de 11 de
setembro de 2001.
Nagakura-san acompanhou na África do Sul desde a libertação de Mandela até a
derrubada do apartheid com reportagens que eternizaram a década de 1990 como
um divisor de épocas.
Depois desse mergulho no inferno global, quando sentiu de perto a loucura dos
seres humanos, o samurai da câmera descobriu a floresta amazônica e seus povos
nativos.
Fui seu guia nessa entrada na floresta, um presente que a vida nos concedeu. Nós
dois tínhamos a mesma idade, assim como nosso amigo Massoud. Nagakura-san
tomou isso como motivo para criar um projeto de documentários simultâneos em
três continentes: América Latina, África e Ásia.
Entrava abrindo caminhos com sua câmera, e nas viagens de fechamento dos
documentários trazia com ele um diretor e um cameraman da emissora de televisão
japonesa NHK que faziam matérias de apresentação temática para o público
japonês.
Seres Humanos foi o título de seu primeiro livro publicado no Japão com a série de
reportagens feitas entre 1994 e 1996, antecedido de publicações nos jornais e
revistas, com repercussão em todo o país, claro. Pois Nagakura-san é fotógrafo de
um continente, como nosso Sebastião Salgado. Pois não encontro melhor
semelhança para indicar a importância de seu trabalho além desta comparação
simplista entre as duas personalidades engajadas, sempre surfando na crista do
perigo e antenadas com as questões mais vibrantes do planeta: seres humanos e
natureza.
Esses dois assuntos são um mesmo e eterno problema na lente desse samurai que
aceitou ser minha sombra por 4 anos seguidos, em sete viagens pela Amazônia,
algumas durando até 40 dias. Passando por lugares onde somente os indígenas
andaram antes dele, cobrindo conflitos de terra, garimpagem clandestina, invasões.
Além de acompanhar festas e rituais nas aldeias do Acre, Mato Grosso, Maranhão,
Roraima e Amazonas.
Eliza-san, este é o nome de nosso anjo nissei que fez as vezes de intérprete para
todas as nossas entrevistas, dezenas de horas em barcos, canoas, beiras de rios,
barrancos e terreiros das aldeias. Lá na fronteira do Brasil com a Guiana Inglesa, no
alto rio Juruá, divisa com o Peru, no cerradão do Mato Grosso, nas aldeias Xavante,
além do rio das Mortes. Por todos esses lugares, juntos, nunca dispensamos essa
valente e discreta companhia sempre pronta para uma conversa com pelo menos
três falantes de línguas estranhas entre si. Eu não falo nem entendo japonês.
Nagakura-san, nada de português. Eliza Otsuka foi a nossa salvação.
Nossas viagens foram registradas em livros, exposições e documentários para a
NHK, canal aberto para milhões de pessoas. O livro Seres Humanos – Amazônia,
lançado em 1998 em Tóquio, teve enorme repercussão e foi seguido de duas
exposições e exibição em programas na TV com muita mídia voluntária, abrindo
espaço para o reconhecimento do Brasil, Amazônia e povos indígenas por 2
semanas seguidas no Japão. Acompanhei, como convidado especial, Hiromi
Nagakura em programas ao vivo na TV em horário nobre, antecedido por fala de fim
de ano do imperador. Não foi pouca coisa o impacto dessas exposições e
livros-reportagens para a formação de uma opinião pública esclarecida sobre a
realidade dos Yanomami e Xavante, e da Amazônia mesma. Afinal, nós andamos
por dezenas de aldeias nas cabeceiras dos rios Juruá, Negro e Demeni, Tarauacá e
rio Gregório, além de cortar estradas pelo cerrado e regiões de florestas onde a vida
continua vibrante como nos primórdios da criação.
E os Seres Humanos ainda dançam para o sol do meio-dia, cantam para encerrar o
dia e brincam na chuva como crianças felizes com a vida.
Subimos por rios indígenas, seguindo de canoa, a pé pelas trilhas ou em voos de
pequenos aviões que descem e decolam de clareiras na floresta menores que uma
quadra de futebol.
Nagakura-san foi a minha “sombra que anda” por quase 5 anos, de 1993 a 1998,
em duas viagens por ano, visitando mais de uma vez todas as aldeias de nossos
amigos que viveram junto com a gente esses tempos de aventura e coragem.
Aventura que começamos numa conversa, sentados em esteiras, na sede da
Aliança dos Povos da Floresta, no bairro do Butantã, em São Paulo, onde Eliza-san
me apresentou o plano de viagens do samurai Nagakura e resumiu com estas
palavras o conceito todo do projeto para alguns anos dali pra frente: “ele vai ser a
sua sombra por onde você for, quando estiver dormindo e quando estiver
acordado...”.
Fiquei um pouco incomodado, mas vi que era coisa de samurai e topei. Esta história
toda está reunida em um dos livros que mais aprecio sem nunca ter conseguido ler
uma única linha, escrito em nihongo e publicado pela editora Tokuma, de Tóquio,
em 1998, intitulado Como um pássaro, como um rio, que assumi como minha
biografia feita por Hiromi Nagakura.
Nagakura-san, assim como eu, teve duras travessias ao longo das décadas que
separam o nosso último encontro, no final da década de 1990, e estes anos 20 do
século XXI, com perdas incalculáveis para o mundo que compartilhamos, quando os
human beings se afastaram do cuidado com as florestas que tanto amamos.
Ficamos também mais velhos e calejados com a luta por um mundo possível, de
convivência entre humanos e não humanos, adentrando a realidade das mudanças
climáticas, exigindo de cada um de nós mais coragem e disposição para lutar.
Este ano conseguimos, enfim, reunir esforços para fazer uma celebração em torno
dessa amizade alimentada pelo sonho e beleza da obra do fotógrafo Hiromi
Nagakura, que segue viajando por regiões fora da cartografia ocidental, como
Vietnã, Tailândia, Madagascar e Sibéria, lugares de sentido profundo para a
continuidade de seu trabalho dedicado à infância em convívio com espaços onde a
natureza em transformação ainda oferta visões do paraíso na Terra.
A exposição Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak, no Instituto Tomie
Ohtake, traz algumas das belas imagens que nossas viagens às aldeias e
comunidades na Amazônia brasileira, entre 1993 e 1997, permitiram registrar.
Momentos de intimidade e contentamento entre “amigos para sempre” que
inspiraram esta mostra fotográfica mediada por encontros com algumas das
pessoas queridas que nos receberam em suas cozinhas e canoas, suas praias de
rios e nas aldeias: Ashaninka, Xavante, Krikati, Gavião, Yawanawá, Huni Kuin, o
povo Guarani de São Paulo e comunidades ribeirinhas no Rio Juruá e região do
lavrado em Roraima.
Será uma oportunidade de compartilhar memórias afetivas de encontros dos povos
da floresta com o samurai da fotografia Hiromi Nagakura.