Um vidro
Uma papagaio mudo
Uma óca oca
Um pingo no céu
Uma lua no vão
Um córrego voa
Tem sangue nas entrelinhas
Tem uma carta no Tarô
Tem a cegueira nos dentes
A língua amordaçada no medo
Um frio corrói o aço
Um espelho vira gelo
O fogo vira farpa
Aveia vira pó
A morte vira vida
A ruína vira hoje
O mar morto sufoca
A criança parte
Uma canoa é miragem
Mergulho profundo no eco
Uma planta nasce
Um meteoro evapora
Um navio de carga se desloca
Emerge um berço
Leve não são os tempos
A vista piora
Era um soco no estômago
Aquela ameixa podre
E num profundo ar de dento
Respira numa bolha
Um tempo
Força aterisagem um avião
Cai a tarde o luto
O luto de uma nação
O fruto é mordido
A isca pesca
Um moeda é jogada
A sorte nunca foi nítida
As transparências desaparecem
Um estrondo vibra
Uma piscina lambe o chão
Tem uma noiva afogada na multidão
Um cadáver atravessa
A rua para sem sinal vermelho
Uma mulher vai a lua
Nenhuma estrela desce
Nuvens adormecem
Um vulto passa
A manicure desenha
Um carretel late
Uma oca parte
Um ruído rosna
Um luto
E veio a escuridão
No corrimão daquela louca escada
Onde nenhuma flor valia nada
Hora do churrasco
Há hipocrisia numa pérola
Um chumbo cai
Era pra matar
Mas salvou
Um morto atravessa...
Espumas borbulham
Há raiva na caixa de correspondência
Uma amaldiçoada pedra
Aquece a horta
Era pra ser uma caneta
Virou apenas um pênsil
Ossos removem o aparelho
De um mão
Tocou o chão
Um laço de fita suja
Arames num pão
Uma janela
Sem saída
Era tudo
Naquela avenida
Onde as minhocas
Fabricavam o verde
Dos musgos
Na linha de uma coleira
Enfeitada com seda
Dormiam os remendos
Até o amanhecer
O tremor
Tinha olfato
Relapso
Um canarinho
Preso
Voa menino
Ele não voa
Cresça menino
Ele não crescia
Nasça menino
Ele não pária
Escravos de jó
Jogavam cachimbo
Nenhuma praia a vista
Piratas de avenidas
Pediam um tostão
Mendigar a luz fosca
Era receita antiga
Um botão da camisa
Caiu
O relógio parou
Nem fim
Nem começo
Vazio e silêncio
Compunham a
valsa de partida
A ouro eram escritas
As partituras
Um raio de sol tocou a noite
Tinha arte na ardência do broto
Nas roseiras
Os espinhos sentiam fome
Os vômitos
Escorriam pelo esgoto
Nas veias
O sangue endureceu
E um branca de neve
Desapareceu
As fantasia adormecem
Era tarde pra deslocar os corvos
As aves já devoram as carniças
As picadas eram sentidas
A pele arrancada em vida
...
Carretel em fogo
Mel Inquieta / Melina Guterres
04/08/21