Raduan Nassan é um escritor nascido no interior de São Paulo, na cidade de Pindorama. Publicou grandes romances como Um copo de cólera e Lavoura arcaica. O conto narrado de hoje conheceremos um pouco de sua escrita apaixonante, uma excelente porta de entrada para os romances. AÍ pelas três da tarde: NESTA SALA ATULHADA de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis
escreventes dividiram entre si o bom-senso do mundo, aplicando-se em ideias claras
apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que
afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta
um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares à sua volta, componha uma
cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais
severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida,
surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram
em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era
conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por
instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem
demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do
corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas,
quem sabe até em pelo, mas sem ferir o pudor (o seu pudor, bem entendido), e aceitando
ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento.
Feito um banhista incerto, assome depois com sua nudez no trampolim do patamar e
avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto
abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por
degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a
boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule
pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de
louco ainda não precipitado), e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede
languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga
na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um
impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de de sentir embalado pelo
mundo. - Raduan Nassan. #literaturabrasileira #contos #raduannassan