O primeiro áudio do LEIO de 2021. Muito obrigada a você que está aqui e a você que está chegando! A arte faz companhia. E neste primeiro áudio do ano, um texto tão simbólico quanto rico, de tudo o que há de Vinícius. Destaco trechos do post especial no Blog da Companhia das Letras sobre este poema.
"Em tempos de isolamento, é comum a gente pensar na própria vida como quem faz em abstrato um balanço geral. Toma-se nota — no pensamento — do que se fez e daquilo que desde sempre se desfaz. E, de tudo, se deduz aquela diferença que substancia a subjetividade predisposta ao “vir-a-ser”. Neste cenário, faz-se lancinante a poesia retirada da “tristeza diante do cotidiano”, da “cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido” e, quanto mais, desse “heroísmo estático”, desse “medo de ferir tocando”. “O haver” seria um dos carros-chefes de O deve e o haver, anunciado mas inconcluso volume poético de Vinicius de Moraes. O poeta apresentou a ideia de seu livro do seguinte modo, em entrevista ao Estado de São Paulo, em 1979: 'Trata das coisas que foram feitas e das que me escaparam. É uma autocobrança das coisas que a vida me ofereceu e que eu deixei fugir'.
Para quem não sabe, “deve” e “haver” são termos típicos da contabilidade de pequenas empresas. A partir dos valores anotados e calculados nas duas variáveis, tem-se o saldo, isto é, a diferença, o que Resta — daí a palavra-refrão de “O haver”. Concorre ao significado amplo do poema, por sua vez, algo que aponta para um possível porvir, em que pese o infinitivo: o verbo “haver” deu origem na língua portuguesa à própria flexão do tempo futuro (acontecer há > acontecerá).
Toca-se ali, em dado momento, nos propósitos da poesia: “essa imensa/ Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil”. Não nos deparamos, então, com a suposta utilidade debatida nas cátedras — o prazer estético, a expansão da linguagem, o sustento do espírito... —, mas outra, ou melhor, a falta de utilidade na tentativa de fazer com que ela sirva como um agente estabilizador: do “coração queimando como um círio/ Numa catedral em ruínas”; da “tristeza”; da “súbita alegria”; da “vontade de chorar diante da beleza”; da “piedade de si mesmo”. A inutilidade a que Vinicius se refere diz respeito à incapacidade de o ato da escrita ser um alento para as dores advindas de sua “capacidade de ternura”, essa mesma que o arrasta à poesia. A resultante do ofício dentro de si é aparentemente diversa daquela auferida pelos leitores, os quais, em algum grau ressarcidos da inquietude compartilhada, não questionam em absoluto a contribuição."