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80 anos de Hiroshima: O apelo por estabilidade global


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O mundo assinala nesta quarta-feira, 6 de Agosto, os 80 anos do bombardeamento nuclear norte-americano sobre a cidade de Hiroshima que precipitou a rendição do Japão e o fim da guerra no Pacífico. Um acontecimento trágico - com mais de 100 mil mortos e impactos duradouros na saúde e no ambiente - que mudou para sempre a História. Num contexto de apelos ao abandono das armas nucleares e das guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, António Sá Fonseca, especialista em Física Nuclear, denuncia o "abuso perpetrado pelos países que possuem armamento nuclear" e alerta para a necessidade de se estabelecer uma “ordem mundial mais estável”.

 

Em 6 de Agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram uma bomba atómica sobre a cidade de Hiroshima, matando cerca de 140 mil pessoas. Três dias depois, uma bomba idêntica atingiu Nagasaki e matou mais 74 mil. Oitenta anos depois, que memória resta desta tragédia nuclear?

É uma memória trágica. Quem visita o museu de Hiroshima percebe que foi uma tragédia imensa. Corpos derretidos, queimados, uma área enorme dizimada pela explosão da bomba nuclear. Essa realidade está bem patente no museu. Acho que é uma visita que todos os líderes mundiais deviam fazer, para terem noção do sofrimento e da desgraça que esse acontecimento representou.

É uma bomba que atinge todos. Atinge os socorristas, os médicos, a população, os militares... É algo indiscriminado que paralisa completamente uma cidade, num raio que depende agora da potência da bomba. Pode ir dos cinco quilómetros aos 20, ou mesmo 50, conforme a potência. Hoje em dia, é algo perfeitamente devastador.

Um acontecimento trágico que mudou para sempre a face do mundo. Este episódio acabou por determinar as futuras relações internacionais?

Sim, para o bem e para o mal. As bombas nucleares são dissuasoras. De certa maneira, quem as possui consegue dissuadir os seus opositores de atacar, porque sabe que pode responder com armamento nuclear. Por outro lado, cria uma certa dose de impunidade para quem as tem. Isso está bem patente na guerra entre a Ucrânia e a Rússia, ou mesmo nas tensões entre Israel e Teerão. Na realidade, o Irão sabe que só será respeitado se tiver armas nucleares, e Israel não quer que o Irão as tenha - quando, na verdade, Israel já possui várias. Isto torna o mundo aparentemente instável e, de certa forma, perigoso.

Oitenta anos depois do bombardeamento nuclear de Hiroshima e Nagasaki, o mundo parece fazer tábua rasa deste acontecimento, com vários países a modernizarem o seu armamento nuclear. A guerra da Rússia contra a Ucrânia contribuiu também para esta escalada?

Acho que sim. Quem tem armas nucleares acha que tem poucas. A China, por exemplo, resolveu aumentar o seu arsenal. A Coreia do Norte fez o mesmo, porque sente necessidade de proteger o seu regime. E os países que não têm perguntam-se se também não deviam ter.

Durante a governação de Biden, notou-se algum receio em escalar o apoio à Ucrânia, justamente por medo de que a Rússia pudesse usar armas nucleares e desencadear uma catástrofe global.

Ainda recentemente se voltou a falar dessa escalada com o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o antigo chefe de Estado russo, Dmitri Medvedev...

Entre Donald Trump e Dmitri Medvedev, trata-se de golpes de teatro - e nem sempre se percebe bem onde começa o teatro e onde acaba. Mas sim, o mundo está cada vez mais complicado.

Há ainda as tensões no Indo-Pacífico - Taiwan, Mar do Sul da China - que colocam os Estados Unidos e a China em rota de colisão. O risco de um conflito nuclear é hoje uma realidade?

Eu não gostaria de pensar nisso, porque essa possibilidade representa o fim da humanidade. Se, por acaso, os Estados Unidos, a China ou a Rússia começarem a lançar bombas nucleares, a civilização poderá ficar altamente comprometida. Depois de se lançarem várias bombas nucleares, gera-se um inverno nuclear -durante meses, ou até anos, a Terra deixa de receber luz solar, porque uma nuvem de poeira bloqueia o Sol. Isso impossibilita a produção de alimentos e o cultivo da terra.

Há ainda a questão radioactiva, que afecta as populações que forem alvo dos ataques. É urgente estabelecer-se um novo acordo para eliminar totalmente as armas nucleares ou, pelo menos, criar uma ordem mundial mais estável. Porém, vejo uma certa instabilidade, com países a abusarem do facto de possuírem armamento nuclear, acreditando que não podem ser atacados. Há aqui uma guerra de medo e de contenção.

Estas ambições desafiam também o regime da não-proliferação de armas nucleares?

Sim, o regime de não-proliferação pode ficar cada vez mais comprometido. O Paquistão, por exemplo, foi em tempos acusado de ajudar a Coreia do Norte a desenvolver armas nucleares. Esta regra da não-proliferação pode ser contestada por alguns países. O Irão, desde sempre, defende o seu direito a possuir a bomba nuclear. Apesar de as autoridades iranianas negarem, sabe-se que tinham um programa que poderia conduzir à construção de uma arma.

Há também o equilíbrio nuclear entre a Índia e o Paquistão, que continua frágil, especialmente com os episódios de violência na Caxemira. Como se define o direito a possuir armamento nuclear? Porque é que uns países podem tê-lo e outros não?

É uma situação instável. Quem tem a bomba nuclear não quer que outros tenham. Mas como impedir o uso do nuclear para fins pacíficos - por exemplo, na medicina ou na produção de energia? Quem tem centrais nucleares precisa de combustível. Esse combustível é enriquecido a 3 ou 4%. Já para armamento nuclear, é necessário enriquecê-lo acima dos 90%. O processo exige uma estrutura tecnológica complexa, com centrifugadoras para atingir concentrações elevadas de urânio-235 e, eventualmente, alcançar a "críticalidade" necessária para produzir uma bomba.

Mas essa é uma decisão que deveria ser tomada ao nível das Nações Unidas - embora, depois, possa ser quebrada por acordos bilaterais, secretos ou oficiosos. No mundo em que vivemos, não sei como se atinge um novo equilíbrio. Seria preciso muito bom senso, uma nova ordem na Rússia, eventualmente no Irão e também nos Estados Unidos.

Com a emergência de eliminar os combustíveis fósseis, alguns países estão a retomar os planos para investir em energia nuclear - como a França, a Dinamarca e até o Japão. Os acidentes de Chernobyl (1986) e Fukushima (2011) mostraram os riscos. Os países estão conscientes desses perigos ou a energia nuclear é, de facto, uma opção viável?

É uma opção viável para países grandes, com elevadas necessidades energéticas e que querem descarbonizar. No Japão, seria complicado apostar apenas em energia eólica ou solar, por causa da geografia e das convicções ambientalistas - o país tem uma grande ligação à natureza. Assim, as centrais nucleares surgem como uma hipótese. O Japão está, de facto, a reabrir algumas que foram encerradas após Fukushima. As autoridades estão a rever todos os sistemas e protocolos de segurança, tal como se fez na Europa e na América, com os chamados testes de stress a eventos externos súbitos. O objectivo é aumentar a segurança e a robustez das centrais.

Mas ainda recentemente vimos um sismo, com alerta de tsunami, a ameaçar novamente o Japão.

Sim, mas hoje em dia as centrais nucleares têm suficiente robustez para resistirem a certos fenómenos. Construíram-se muros mais altos, para que os sistemas de arrefecimento não fiquem vulneráveis a inundações -que foi, precisamente, o que causou o desastre de Fukushima. Na altura, a barreira construída era demasiado baixa, por razões financeiras, e mesmo assim a central recebeu autorização para funcionar. O problema não foi provocado pelas ondas em si, mas a falha no sistema de arrefecimento. Foi, claramente, uma falha do órgão regulador japonês.

Hoje, as centrais são mais robustas, e as futuras ainda mais - com sistemas que impedem o sobreaquecimento, ou que desligam automaticamente, garantindo segurança mesmo em caso de falhas.

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