Enterrados no Jardim

A época que roeu a juventude até ao osso. Uma conversa com António Guerreiro


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A cultura hoje é essa espelunca onde o espírito entra e sai como e quando quer, ficando sempre incólume. É mais um dos tantos instrumentos de prostituição ao dispor. Mas cada vez fica mais difícil ir da medida à desmesura, ou do cálculo ao delírio. A coragem, naquele sentido de uma forte declinação do nosso nome, há muito que se perdeu. Ninguém exige novas formas de sentir, novas formas de pensar, e não podíamos estar mais longe de cumprir o projecto de Nietzsche, que passava por fazer da cultura (fosse só isto de ler, ou mesmo escrever, tocar, cantar, pintar, desenhar, viver) uma experiência radical. Já ninguém toma por porcos esses que abdicaram do esforço de dizer o essencial, sem hesitações, sem desculpas. Cada um para seu lado busca patentear algum drama insosso que lhe sirva de ingresso.  Mais valia que aparecesse por aí uma geração sem esta ganância de delimitar fosse o que fosse, antes preferisse servir-se da escrita para misturar tudo, focando-se nesse labor contínuo de nos misturarmos mais e mais, criando um caos pela primeira vez sem medo, como propôs alguém. Edmond Jabès admite que qualquer palavra dita em voz alta se mostra subversiva em relação àquelas que são silenciadas. A nossa época pouco mais tem inventado além de ruídos, sendo que só na gestão dos seus silêncios se mostra verdadeiramente estratégica. Em vez de uma recusa, apenas cautelosas retiradas. Incapaz de fazer verdadeiras escolhas, limita-se a resignar-se face ao estado de coisas, tentando tirar dali algum proveito. è um tempo de algemas, em que a toda a hora nos cruzamos com seres que morreram prematuramente. Tudo são mostradores, folhas de calendários, ampulhetas, medidores de toda a espécie. O relógio é quem dá aulas de música e ritma o sangue. A ter uma especialidade, aquilo que este tempo sabe como fazer melhor que qualquer outro é criar ausências, como notou Ailton Krenak, alimenta as ilusões apenas para desgastar e mastigar cada um,  para depois vir pregar o fim do mundo. Mesmo entre os que insistem em falar de poesia, há sempre aquele esforço de degradar o elemento de paixão que esta comporta. Pronunciam-se e escrevem sobre poesia como se esta fosse uma tarefa, vinca Borges. "Todas as vezes que mergulhei em livros de estética tive a sensação desconfortável de ter estado a ler livros de astrónomos que nunca olharam para as estrelas." Se em tempos os poetas lembravam que deve esperar-se de tudo por parte do futuro, hoje, há um género particularmente sinistro de tipos que, em vez de repudiar esses entusiasmos, se dedica a escrever versos, numa espécie de excreção que, de tanto se publicitar como poesia, dá uma péssima ideia da coisa. Também uma certa ideia de juventude que se empenhava em realizar uma redenção da cultura moderna, e tinha uma aspiração anarquista e romântica, se vê por estes dias alvo de constantes campanhas de desmoralização e de bloqueio por parte dessa mesma categoria de usurpadores. Nestas figuras ilustradas, tudo é adiposidade, que lhes dá aquela convicção daqueles que se limitam a prever o pior. Ora, nada é mais fácil, como assinala Canetti, pois quanto mais terrível for a previsão, tanto mais será verdadeira. Mas admirável seria prever algo positivo, uma vez que só isso é que se mostra improvável. Nada pior do que dar por si em minoria face a este tipo de canalhas. A partir de um certo ponto, nem são realistas nem sequer pessimistas, tendo começado a apostar no pior resultado com uma convicção tal que o seu orgulho passa a depender disso. Rapidamente se colocam ao serviço desses cenários paranóicos, e tudo fazem no sentido de impossibilitar a alternativa. Imaginam-se dotados de uma frieza que lhes permite desmascarar todos esses subversores que ameaçam levar mais fundo a infecção delirante, e, no entanto, eles é que impõem um final para o qual não há saída. Querem extirpar e perseguir até ao último cada um dos mitos românticos de outros tempos, esta gente que morreu velha sem alguma vez ter beijado nos lábios qualquer reflexo da sua juventude, e, assim, servem-nos os velhos trastes do costume, como para justificar o seu reinado de múmias. Depois de uma certa idade, para eles ler Rimbaud é como saltar um muro ao fim-de-semana para cheirar linhas de coca nos lavabos do nosso antigo liceu. Já Artaud é simplesmente uma tremenda falta de educação, como quem coça a alma com a mesma mão com que pouco antes coçara o rabo. Nem se vê como possa a literatura ser mais que uma justificação airosa para passar a vida sentado, e só um louco para colocar em cima do escritor, do poeta, algum tipo de dever. Pois Artaud garantia que não lhe cabe ir encerrar-se cobardemente num texto, num livro, numa revista de onde nunca mais sairá, mas, pelo contrário, deve sair, andar cá fora, para agitar, para atacar o espírito público... Mas os nossos intelectuais que só saem de casa para ir ao restaurante ou aos festivais, nem estão bem a ver o que possa querer dizer isso de "cá fora". Neste episódio, quisemos confrontar os modos dessa ideologia reactiva e atávica que tem dominado os processos culturais, e para este exercício contámos com o navio fantasma do nosso Oh-captain-my-captain, António Guerreiro, durante décadas crítico de plantão nas urgências literárias, e uma referência de todos os que saíram à rua empunhando uma caneta e desejosos de realizar cirurgias estéticas com os pacientes deitados em cima das páginas de jornais, e hoje controlador áereo numa torre com vista para as zonas de baixa pressão, onde vai traçando diagnósticos selvagens sem perder de vista as patologias principais da época.

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Enterrados no JardimBy Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho


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