Share Enterrados no Jardim
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By Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho
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Falar-se da vida por estes dias é como falar da corda na casa de um enforcado. Onde é que isso nos pode levar? A frase é do Vaneigem, mas cintilou mais numa das primeiras críticas sobre os Joy Division, alguém que se soube muito cedo condenado ao dar com aquele som de ressaca de anfetaminas de uma cultura que teve o pressentimento de que a vida, na sua totalidade, ficara suspensa numa negatividade que a corrói e a define formalmente. "O mundo e o homem, enquanto representação, cheiram mal como carniça e já não há nenhum deus por perto para transformar os cemitérios em canteiros de lírios", continua Vaneigem. Continuamos pelos mesmos lugares, arrastando alguma melodia ou uns versos como senha para outro mundo. Mas "desde que se perdeu a chave da vontade de viver, deambulamos pelos corredores de um mausoléu sem fim. O diálogo do acaso e o lance de dados já não bastam para justificar a nossa lassidão; aqueles que ainda aceitam viver num cansaço bem mobilado imaginam-se a si próprios como tendo uma existência indolente, sem notar em cada um dos seus gestos quotidianos uma negação viva do seu desespero, uma negação que deveria antes fazê-los desesperar apenas pela pobreza da sua imaginação". Alguns julgam que nos seus apontamentos trazem algum deus desmembrado e que um dia irão ser capazes de lhe recompor os fragmentos, mas outros habituaram-se ao jogo das palavras, a mudar de lados, a gozar a variação... "Espero que os meus auditores compreendam que não sou um erudito nem um filósofo, mas, sim, um longo diálogo", vincava António Maria Lisboa. Depois daquelas pretensões básicas dos jovens idiotas que sonharam apresentar-se a concurso, carregar alguma fita, ser celebrados como misses, e depois de chegarmos à conclusão de que a matéria se acabou, de que não vale a pena exigir mais nenhuma extensão, resta a sensação de se ter o hálito contaminado de fantasmas, de que devemos abrir o espaço entre as zonas ínfimas e desatendidas. Tem-se a ocupação de uma frase para habituar o juízo a expandir a pulsação, criar um remanso de lentura num tempo obcecado com a velocidade. A vantagem do verso é que este se inclina à entoação de tal modo que nos recorda sempre que esta foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda-nos que foi um canto. Foi esse bando de homens misturados na profunda consciência homérica e que insistem que "os deuses tecem as desventuras aos homens para que as gerações vindouras tenham alguma coisa que cantar". E esse canto traduzia a própria fibra da experiência, esta valentia dos que não se importam demasiado com a canalhice da vida, uma vez que se reconhecem feitos para outra medida, outro alcance, outra entoação... Fomos feitos para a memória, para a poesia, ou, em alternativa, para o esquecimento. Se ainda persiste na leitura que se faz de forma solitária, silenciosa, alguma vertigem, essa está no fazer acompanhar-se dessas outras vozes que nos emergem nos lábios, as variações que fazem desse foco uma via para a insubordinação, para uma transformação do mundo. Hoje, a nossa própria natureza torna-se-nos estranha, como se desgostada diante de todo este retraimento, dessa incapacidade "de focar o nosso próprio presente, como se nos tivéssemos tornado incapazes de obter representações estéticas da nossa própria experiência actual", vinca Fredric Jameson, empenhadíssimo e exaltante crítico literário que desapareceu há dias e que nunca se cansou de assinalar como o capitalismo de consumo estava a programar "uma sociedade incapaz de lidar com o tempo e a história". Outro que tocou com a língua o céu da boca e se foi daqui há umas horas, Armando Freitas Filho, poeta que vencia a gaguez apercebendo-se do lucro que nasce com cada dificuldade e que foi passando a limpo toda a desteridade de uma fala mil vezes composta na cabeça antes de se atirar ao mundo, ter-se-á dado conta de que dizer, falar, cantar, ao contrário do que a maioria pensa, não é um modo de expelir algo, mas é sobretudo uma forma de ingestão. Fazemos sons para descobrir os vocábulos que possam fazer o que a saxifraga faz à pedra. É um modo de encantar o mundo e decompô-lo em porções digeríveis. Mesmo o corpo é só uma colher para trazê-lo à boca. E este poeta brasileiro ocupava-se dessas comunicações... "assim, numa transmissão de/ sustos e rangidos,/ veia e voz, ao vivo, sob tanto/ sangue: pantera escarlate/ que passa e pisa// e se espatifa nesse chão:/ pata de lacre,/ grito, pingo/ sobre o alvo/ tão tátil da minha carne,/ nos panos// repentinos do meu espanto,/ nas janelas/ onde me debruço sucessivo/ e vário, sequência de mim,/ em fotonovelas// me desdobro — quadro por quadro,/ nos desenhos/ de dentro do que sou e projeto,/ aos poucos — plano e pausa —/ para fora// com a vida que me veste/ pelo avesso:/ — filmes de sêmen onde publico/ figuras de suor e celulóide,/ numa lâmina// de velocidade e de lembrança,/ em fotogramas/ de esperas e procuras — falha,/ folha de slides-células, sopro/ e pulso,// página de pele em que escrevo/ o uso,/ a articulada letra do meu gesto,/ o rascunho de unhas & rasuras/ feito à unha// nas nuas marcas/ do meu corpo/ no espaço/ e nos lençóis da claridade,/ monograma, silhueta, cadência,/ e a fala// que se imprime nesta fita,/ neste sulco:/ — a linguagem como um fim,/ — a linguagem por um fio,/ e a morte em morse." Fica aqui assim esta frágil lembrança de um irmão que Carlos de Oliveira deixou do outro lado do Atlântico quando se mudou. Quanto a nós, depois de um hiato que se estendeu mais do que queríamos, estamos de volta ao diálogo a três, e pudemos contar desta vez com a orientação de Joana Lima, que escreveu uma das raras monografias dedicadas a António Maria Lisboa ("Eterno Amoroso", Edições Colibri), mas que nos ofereceu sobretudo um pacto de leitura e descodificação cúmplice e encantada da sua tão exígua quanto fulgurante obra. Pedimos-lhe algumas pistas para reiniciar o tal projecto de sucessão.
Antes de partirmos, todos entendemos que as férias poderão elevar a um estatuto lendário as nossas existências neuróticas. Faz parte das fantasias pequeno-burguesas ir tracejando nalgum canhenho as metas secretas da vaga peregrinação que cada um se promete. Para não desiludirmos o quadro que nos envolve, também fomos ver essa coisa do verão, esse negócio familiar que impinge desde há décadas, e com indesmentível sucesso, retratos e molduras que, passados anos, têm essa capacidade de apanhar-nos tão maltratados que nos pomos a remexer no passado e acabamos embevecidos diante de um tempo que se fixou nas leves linhas de um desenho, servindo estas à composição de uma elegante melancolia heráldica. Fomos ver o mar, que não quis engolir-nos, sentindo que o enjoo que trazíamos era demasiado pesado até para ele. Regressamos, assim, a estas lides maldosas como dois enjeitados, com a fenda ou a racha do carácter ainda mais pronunciada. E vimos a fazer aquela fita de quem virara costas, com o desejo de se reformar, limpar a sujeira debaixo das unhas da alma, recolher-se nalgum grupo de canto coral, e logo quando queríamos deixar a carreira de perversidade para trás, eles puxam-nos de volta. Se pensarmos nisso, é curioso como as Histórias da Literatura nos seus anais quase sempre passam ao lado das formas de corrupção mundana que marcam cada um dos períodos, quase nem se acham registos da maledicência, da bisbilhotice, da pretensão ou do calculozinho, não há compêndios que nos permitam relativizar o desgosto diante do ranço que caracteriza estes dias permitindo-nos colher antecedentes escabrosos, exemplos da desonestidade, do fanatismo estúpido ou vingativo de outras épocas. Como assinalou Max Aub, “nos documentos nunca há filhos da puta. E Deus sabe que eles são incontáveis". Por cá, tudo se confunde. Vivemos cercados de uma gente que põe e dispõe segundo as suas conveniências. Já traficam indistintamente a realidade e as superstições, promovem juízos absurdos, sempre subjugados às lógicas do consumo. Qualquer agremiação de nabos tem o seu quartel, e em vez de manter em estado de anarquia o âmbito dos seus desejos, deliram com hierarquias, com esses títulos sempre infinitamente insignificantes. A mesquinhez toma conta das suas performances, entregando-se a uns dramas caricatos na ânsia de se representarem como altas dignidades. Se em tempos podia contar-se com um número apreciável de escribas que não queriam nada com as distinções ou os snobismos bacocos que caracterizam o campo cultural e quem lá anda, que lançavam o seu desafio e se borrifavam nas corridas de lebres, rindo dos que buscam por todos os meios entronizar-se, hoje são estes que se vêem denunciados e sujeitos a isolamento. Certa vez, Pierre Bourdieu exprimiu da forma mais eloquente a sua desilusão diante dos chamados intelectuais... “Quando disse, no início, que esperava que o senhor [Günther Grass] fosse 'abrir a boca', é porque penso que as pessoas consagradas são as únicas capazes, em certo sentido, de 'romper o círculo'. Mas, infelizmente, consagram-nas porque estão quietas e silenciosas e para que assim permaneçam — e há muito poucas que utilizem o capital simbólico conferido pela consagração para falar, falar simplesmente, e também para fazer ouvir as vozes daqueles que não a têm.” Estamos conversados em relação a esses que adoram vir para este território para exibir a exemplaridade dos seus princípios e valores éticos. Na outra margem, está essa ideia da poesia que traz com ela uma forma de sermos compensados das misérias que sofremos. Se durante uns tempos a burguesia estabelecia em favor dos artistas de vanguarda uma procuração no sentido de exprimirem um protesto neste ou naquele sentido, delegando neles essas tarefas de subversão formal, também para se desobrigar de qualquer alteração das regras do jogo, hoje, o mercado tornou-se essa terrível abstracção que permite a qualquer um redigir páginas de argumentação caótica para justificar seja o que for. Em tempos chegou a exigir-se da poesia que viesse decretar o fim do dinheiro. Mas esse tipo de audácias foram perdendo a vez, e introduziu-se essa forma de suspeita automática diante de tudo o que possa vir a cambalear por aí com aquele cheiro das naturezas implausíveis. Chegava a altura de cada um dizer adeus às selecções absurdas, sonhos de abismo, rivalidades, paciências exaustivas, galope das estações, ordem artificial das ideias. Serviram-se de um século inteiro como exemplo para que abdicássemos da rampa do perigo, da ideia de haver tempo para tudo. "Dêem-se ao menos ao trabalho de pôr a poesia em prática", clamava Breton. Acrescentando: "a nós, que vivemos dela, cabe-nos fazer prevalecer o seu mais amplo relato". Mas, entretanto, mesmo o surrealismo já parece ter sido inteiramente neutralizado, sendo alvo das maiores suspeitas, denunciado pela moral dos nossos sindicatos do pragmatismo. Agora, também se espera que o Estado seja transformado numa gigantesca estrutura de cuidados paliativos, uma vez que os espíritos já nascem reformados, tendo abdicado de todas as pretensões de transformar o mundo, mudar de vida. Hoje, todos defendem os apoios à cultura, os subsídios à criação, as verbas para alargar esse imenso cemitério em que a literatura se viu transformada. E, no entanto, esses mesmos que fazem as suas vidas depender de uma suposta resistência aos humores dos mercados, depois nunca reconhecem o fracasso generalizado da cultura que se produz, que prefere entreter a abalar uma vida social cada vez mais imóvel e sem saídas, refocilando nesse dogmatismo das comunidades pequenas, reforçando os mecanismos de vigilância, as repressões, transmitindo apenas amargura e desconforto, responsabilizando os outros por esse inferno que resulta da insuficiência da acção (ou seja, da própria poesia em apontar um caminho) de forma a confrontar uma determinada situação.
Antes de vos darmos férias por tempo indeterminado, e de nós mesmos irmos por aí fazer figuras nas estâncias balneares ou, simplesmente, como ursos polares que, por serem incapazes de saltar das placas de gelo, desenvolvem essa forma de camuflagem que passa por se disfarçarem de turistas de modo a colherem este ou aquele benefício fiscal, atiramos mais uma vez o bote para vasculhar com os remos a superfície de um naufrágio de tal modo vasto que tem sabido passar desapercebido. E, porque somos teimosos, voltamos às questões da língua, e com a orientação de Hugo Maia, tradutor a partir do árabe, vamos tentar admirar as subtilezas nas diferenças ou semelhanças entre o lado de cá e o de lá, assinalando alguns aspectos perniciosos no movimento de tradução, em que tantas vezes um texto invade o original, decompondo-o em partes lexicais, gramaticais, num regime de dissecação que traz riscos óbvios, desde logo porque há tradutores que, mesmo cheios de boas intenções, acabam por ferir de morte aqueles textos que procuram verter para outro idioma. Mas há outros perigos, como assinala George Steiner, desde logo essa ideia de ir buscar alguma coisa ao estrangeiro e logo regressar a casa: "o trazer de volta do sentido 'capturado' para a língua e solo nativos". "São Jerónimo, um grande tradutor, refere-se precisamente à tradução quando fala do significado caputrado e levado para casa numa espécie de triunfo romano", adianta Steiner. Tantas vezes a língua é essa arma disfarçada, e à medida que esta se alimenta de significados que lhe são estranhos não é raro que produza uma adaptação que funciona como uma carcaça para consumo pela matilha. De resto, como vinca Pascal Quignard, "com-preender é aprender com outros". "Ora, a predação com outros é a matilha. Deste modo, se compreender nunca é mais do que matar, se perceber nunca é mais do que diferenciar silhuetas que dão medo, toda a praedatio é um transporte de morte, todo o narrador é um regressado do mundo dos mortos, toda a narração impõem uma gramática do passado (é um retorno que não pode dizer o ir senão porque o re-torno teve lugar)." Este mesmo autor esclarece como os homens tão raras vezes têm consciência dos seus processos de predação no que toca ao esforço de traduzir de forma compreensiva uma ideia, uma imagem ou uma narrativa que lhes é alheia, sobretudo se a sua estranheza lhes provocar vertigens. "Os homens raramente abrem os olhos para a anarquia aterradora da crónica humana. Qualquer catástrofe se torna aos olhos humanos, isto é, no fundo da sua memória inevitavelmente linguística, uma prova que tem um sentido. Esse sentido é o de uma saciedade, ou seja, uma paz. O narrador social (o mito) defende sempre a reprodução da ordem social que ele inscreve violentamente no lugar contra o 'parasita' que daí desaloja através do sangue e de quem devora a morte violenta e a aparência e até a recordação. Cada povo distribui a si mesmo os seus feitos orientados, as suas associações a posteriori, as suas mentiras, os seus 'facta falsa', de língua para língua, ou seja, de comunidade para comunidade." Tendo isto em conta, e se são evidentes os benefícios em termos de comunicação e até num plano nutritivo para um idioma absorver os recursos de outro, é preciso também reconhecer como a tradução deve ser exercida como uma tarefa crítica, e não apenas norteada segundo princípios de ordem filológica, uma vez que este transporte de um significado acaba por trair algum do ânimo, seja na forma ou no conteúdo, do texto invadido. Nos séculos das grandes explorações marítimas, as manipulações intermináveis a que foram sujeitas as representações ou narrativas míticas de cada povo iam no sentido de servir os interesses de expansão dos poderes europeus. Estes competiam uns com os outros para conquistar ou controlar faixas de terra cada vez maiores, a fim de poderem explorar e monopolizar os valiosos recursos naturais e mercados das outras nações. Mas e o que ocorreu na forma como se operou o trânsito de ordem cultural e linguístico? Sabemos como naquele processo, tantos povos indígenas foram subjugados e destruídos, tantas lendas apropriadas e e reviradas de forma a servirem os impiedosos interesses ou as narrativas heróicas dos descobridores. Não se trata de propor novas grelhas de revisionismo, mas de não encarar a tradução meramente como um processo técnico, e antes reconhecer que as traduções só se fazem tão impunentemente quando não é tido em conta a diferença de perspectiva e de olhar, até de mundos a que corresponde este ou aquele texto. Quignard compara a tradução a esse processo que passa por dar morte, para depois ingerir, digerir e por fim excretar o original: "o mito transporta o seu conteúdo como o caçador carrega ao ombro um transportado que está ligado a um assassínio anterior ao seu próprio retorno, pois é o assassínio do caçado que permite o seu retorno ao grupo que vai trinchar o corpo, distribuir os pedaços, banquetear, por fim". Se cada língua gera e articula uma visão do mundo, uma narrativa do destino humano, não houve incidente mais fortuito para a recreação e a libertação dos homens do que a catástrofe de Babel, que impediu a união e produziu uma manta de retalhos de aproximações, de erros de interpretação, mentiras que nos impedem de existirmpos nois confins de um só idioma unificador que tudo abarque. Steiner incita-nos a encarar aquela catástrofe como uma inaudita promessa. "Fascinado pelo jogo e maravilha das língua, já em criança eu tinha a impressão que a história de Babel era um 'disfarce', que invertia um significado mais antigo e verdadeiro. Querendo celebrar a monarquia cósmica de Deus, as tribos tinham-se juntado para construir um sublime arranha-céus, uma espiral que aproximasse ainda mais o seu culta da omnipotência celestial. Para recompensar este labor religioso, o Senhor tinha, ainda que de uns modos um pouco bruscos e camuflados, concedido ao homem o presente incalculável das várias línguas. Oferecera aos homens e mulheres a luz, a riqueza inesgotável do Pentecostes. Ao invés de uma maldição, a cornucópia das diferentes línguas derramadas sobre a humanidade constituía uma bênção inigualável."
Hoje o mundo não sabe estar quieto. Em vez de o trânsito ser de ordem cultural, o regime da competição introduziu um elemento de constante disputa, conflitos de influência e poder. As nações procuram extravasar e invadir-se, e é próprio desse quadro a ideia do revisionismo, a forma como o esforço de subsumir o passado leva a que os nossos juízos procurem consumir toda a história anterior. Talvez pior do que o roubo de bens culturais de outras culturas e povos é essa forma de traficar os objectos culturais, sejam eles a iconografia religiosa, a pornografia ou Das Kapital, submetidos a um sistema de equivalência, organizando tudo segundo valores monetários. Aos poucos toda a ideia de cultura reverte para a ideia de museu. Como nos diz Mark Fisher, "se percorrermos o British Museum, onde é possível vermos objectos arrancados aos seus mundos da vida e reunidos como se no convés de uma nave espacial do Predador, ficaremos com uma imagem desse processo em curso". "Com a conversão de práticas e rituais em objectos meramente estéticos, as crenças de culturas anteriores vêem-se objectivamente ironizadas, transformadas em artefactos." Em seu entender, a grande potência do capitalismo é ser essa entidade monstruosa e infinitamente plástica, capaz de metabolizar e absorver tudo com que entre em contacto. Este efeito aplicado à história leva a um tal grau de saturação desses elementos que uma época assume "um perigoso espírito de ironia em relação a si mesma", como escreveu Nietzsche, "e subsequentemente ao espírito ainda mais perigoso do cinismo", no qual, "a palpação cosmopolita", um espectadorismo distante, na formulação de Fisher, vem substituir o empenhamento e o envolvimento. Demasiada realidade adoece-nos os sentidos, uma vez que já não somos capazes de reconhecer as diferenças e as propriedades que conferem autonomia e respeitam a estranheza de umas peças de um puzzle face às de outro. É como se em vez de montar um puzzle de forma paciente, respeitando a integridade da sua vizão e a ordem que lhe é própria, fôssemos usar cola ou argamassa, sem ter em atenção cada uma das peças. Mais valia sentir diante dessas realidades distantes um vago fascínio, apenas impressões algo desconexas, peças desirmanadas, que não nos confortam com a ilusão de uma perspectiva clara e unitária. Mais vale ter aquele sentimento do aldeão de Tonino Guerra, que, no segundo canto do extraordinário álbum de lembranças a que ele chamou "Mel", nos diz isto: "Deitei fogo a páginas de livros, a calendários/ e mapas. Para mim a América/ já não existe, a Austrália igualmente,/ a China na minha cabeça é uma fragrância,/ a Rússia uma alva teia de aranha/ e a África o sonho de um copo com água." Mais vale uma ignorância humilde e respeitosa, do que presumir que se sabe alguma coisa, que se viaja e viu fosse o que fosse porque um tipo se meteu num avião e aterrou lá ansioso, integrando uma dessas expedições famintas por pedaços da História, que vão por ali disparando a objectiva sobre uns quantos monumentos de forma a provarem a si mesmos e, sobretudo, aos outros que estiveram lá. Como nos lembra Pascal Quignard, em latim, vigiar do alto de um lugar um qualquer sinal de morte para até ele se precipitar como uma ave necrófaga diz-se especular. No fundo, é só isso o que servimos aos turistas que nos assediam nestas cidades exaustas: sinais de morte. Cumprimos o nosso papel como parte de um cenário moribundo. Em vez da arrogância de absorver totalidades, mais vale encantar-se por um elemento de composição qualquer, animar-se com esses cacos que nunca nos poderiam servir como indicações para a plenitude seja do que for. Seria mais útil escrever-se uma história apócrifa da porcelana, como fez Ivan Krustev, em lugar de depredar a agonia daqueles que apenas surgem ao fundo, nos postais dos turistas. "A paixão pela porcelana, Europa do século XIX./ Serviços, elefantes e copos./ O mundo é vasto e bom,/ Distinto, frágil, aristocrático./ E há algo para além disto,/ O horizonte ergue-se transparente./ A América é só uma costa./ E a China um gato preto./ Montesquieu continua a redigir/ As suas cartas sobre filósofos./ Os eruditos usam perucas/ E as senhoras - flores./ Os soberanos não são dementes/ E, no entanto, não são grandes inteligências./ Nenhum fantasma persegue a Europa/ E o amor é fantasmagórico./ Infelizmente os poetas são de salão,/ Felizmente os seus poemas não./ E a liberdade, como um jarro,/ Está no centro do pensamento./ A nova história começa/ Com fragmentos de porcelana./ Enterrada em pequenos elefantes brancos/ Deixamos a idade da Razão para trás." Neste episódio fomos beber o que podíamos à experiência de Tiago Nabais, investigador e tradutor de autores chineses como Yu Hua e Yan Lianke, alguém que passou uma década na China, a ensinar português em várias universidades, e que, sem poder levar-nos lá, deu-nos antes uma boleia e fez de guia para nos permitir compreender melhor esse teatro de sombras chinesas que persiste nas suas memórias.
São demasiadas palavras. Parece que nos barricamos atrás delas. E a relação que mantemos com os textos parece cada vez mais da ordem da frieza, do distanciamento, uma forma de se prometer a certas causas e ideias, adiando o momento de deflagração. Escrever não passa assim de integração, legitimação, reconhecimento, academização nos palácios, glória na memória, como nos diz Quignard. Se parece haver mais erudição do que nunca e o nível geral dos literatos até revela uma certa elevação, depois as inspirações revelam-se vazias. A cultura não parece apostada em assumir uma determinação combativa. As figuras que por ela respondem acoitaram-se “numa sageza triste que interioriza como uma tara um saber inutilizável para o ataque”. Como vinca Sloterdijk, “o mal-estar na civilização adquiriu uma nova qualidade: aparece como um cinismo difuso e universal”. Este filósofo alemão nota como o humor crítico por estes dias se volta nostalgicamente para o interior num jardinzinho filológico onde se cultivam as íris benjaminianas, as flores do mal pasolinianas e as beladonas freudianas. “A crítica, em todos os sentidos do termo, vive tempos enfadonhos. Começa de novo uma época da crítica mascarada em que as atitudes críticas estão subordinadas às funções profissionais. Criticismo de responsabilidade limitada, Iluminismo de fancaria como factor de êxito – atitude no ponto de intersecção de novos conformismos e de antigas ambições." Ele aponta para esse vazio de uma crítica que quer cobrir com o seu ruído a própria desilusão. Neste sentido, a escrita torna-se uma ocupação diletante, a transmissão de saberes faz-se sem um empenho sério, sem uma correspondência entre as posições defendidas e as atitudes assumidas na própria vida. Ficamos diante de um teatro de desertores, e toda a representação não passa de uma forma de impostura. Quignard dá-nos o exemplo de Agrippa d’Aubigné, para quem escrever “significava anacorese religiosa face à religião comum, deserto face às cidades, vingança dos seus íntimos que haviam sido executados, fidelidade aos vencidos, aventura, esquecimento”. “É o letrado concebido como o porta-voz dos mortos, desalinhado com a História, malfadado nos dias, engolido pelo silêncio anterior às línguas", acrescenta o escritor francês. Nada disto poderia estar mais distante dessa postura lacónica e enfadada dos escritores contemporâneos, que parecem só sentir algum entusiasmo por ver as suas obrinhas, apesar de tudo singrarem, triunfarem neste ambiente de desagregação. Por toda a parte, vemos as instituições de ensino serem cooptadas pela engenharia da miséria programada, e a cultura e os saberes parecem troçar dessas liturgias que se organizam em seu nome, essa imensa festa sensaborona, entre o tipo de gente que não pretende desencadear qualquer tipo de mudança. Num episódio em que quisemos deter-nos sobre a crise do ensino, da transmissão dos saberes, Steiner serviu-nos algumas pistas… “A maior parte da literatura ocidental, que durante mais de dois mil anos se abriu deliberadamente a uma interacção, na qual a obra ecoava, espelhava, aludia a obras anteriores, pertencentes à tradição, está a afastar-se com uma rapidez cada vez maior do alcance do leitor. Como as galáxias remotas que se estendem para lá do horizonte visível, o núcleo da poesia inglesa do Ovídio de Caxton a Sweeney among the Nightingales, está hoje a passar da presença activa à inércia da conservação universitária. Assentando firmemente numa profunda e ramificada anatomia de referências clássicas e bíblicas, expressando-se numa sintaxe e num vocabulário peculiares, o arco completo da poesia inglesa, do diálogo mútuo que liga Chaucer e Spenser a Tennyson e a Eliot, ultrapassa rapidamente a capacidade de apreensão da leitura natural. Há uma vibração de fundo da consciência e da linguagem que se transforma hoje em material de arquivo.”
“Se a estupidez não se assemelhasse, a ponto de se confundir, com o progresso, o talento, a esperança ou o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser estúpido”, isto foi notado por Musil, mas adiantaríamos que a característica que distingue a estupidez produzida pelo nosso tempo é esta: a sua adequação às próprias noções de sucesso. Afinal, este é um tempo que se destinou ao desastre, e, assim sendo, é natural que as hierarquias nos ponham diante de autênticas conspirações de estúpidos. Só se afirmam esses seres incapazes de uma consciência clara do ridículo das suas existências. Triunfo é uma forma de fanatismo de si mesmo. Essa é a única promessa que o homem contemporâneo é capaz de se fazer, a de que, se o mundo o contrariar, está legitimado para dar cabo dele. Nas promessas que o homem se faz, o mundo foi-se tornando cada vez mais um empecilho, algo inconveniente, e daí que os estúpidos se tenham encarregado de triturá-lo aos poucos, obtendo um lucro fabuloso nessa operação. Olhamos ao nosso redor e toda a existência humana parece estar prometida a este projecto, e todos se mostram imensamente confiantes com o progresso da operação. Na verdade, esta completa falta de noção do ridículo é aquilo que garante que qualquer esforço de crítica seja visto como uma forma de pretensiosismo, uma atitude própria de quem está apostado em perturbar o curso da evolução histórica. No fundo, os estúpidos somos nós. E esta inversão extraordinária garante, pelo caminho, que já ninguém possa ser chamado à razão. O efeito de intimidação é de tal ordem que são cada vez mais escassos os pensamentos que respondem a esta conspiração através da recusa das suas orientações, até porque a linguagem mesma tornou-se imensamente pantanosa, os termos e os conceitos viram-se apropriados pela estupidez, pelos seus valores contagiosos, por essa inversão do sentido, de tal modo que quem questionar seja o que for obriga-se a um exame de tal modo implicante que a maioria se perde, distraindo-se com outra coisa. Qualquer letrado, ao introduzir a suspeita e afastar-se do idiolecto imbecilizante e inteiramente recamado na forma de frases feitas, transforma-se de imediato num ser incómodo, e é ele que atrai sobre si a rejeição dos demais. Hoje, cada escritor que viole esse circuito de noções desastradas vê-se transformado no artista da fome, recusando esse venenoso sustento, apresentando-se na figura do protagonista de um conto de Kafka que exibe como espectáculo o seu jejum prolongado, e que tem de fazer um esforço absurdo para que o público não escolha outro entretenimento. É o próprio destino horroroso que temos diante de nós aquilo que estranhamente nos hipnotiza e atrai. Não conseguimos recusá-lo, pois isso significaria travar uma luta apenas para adiar algo que parece estar inscrito nos sonhos da espécie. Há um desejo cada vez mais desinibido pelo desastre. Como nos diz Pascal Quignard, “matar-se é a paixão específica da espécie homo, fazendo jorrar o seu sangue negro, o seu vírus, a sua virtus, opondo-se às outras feras, nas quais a predação é simplesmente suscitada pela presa que as saciará, e também imediatamente saciada na medida em que a sua fome fora rigorosamente suscitada”. Arrancámo-nos à natureza, e esta dissolveu-se dentro de nós. Agora estamos cativos de uma irresolução permanente, de uma fome insaciável. “As centenas de milhões de ecrãs que cobrem o planeta transformaram-se no novo órgão fascinante, substituindo sacrifícios e ritos, multidões peregrinas, massas espezinhantes. É a sedentarização final. É o progrom tornado imóvel. Se o espectáculo não apazigua inteiramente a fruição horrorizada que este suscita, pelo menos crava no lugar o espectador que examina o sangue a escorrer. Faz daqueles que sidera presas com moradas, documentos de identificação, cartões bancários, vítimas numeradas, corpos sentados e petrificados susceptíveis a todas as extorsões e a todas as pilhagens. (…) O ódio, uma vez tornado imóvel a esse ponto, transforma-se em medo. O medo, esse companheiro único do desejo, confinado na sedentariedade e na propriedade fundiária, é reformulado como angústia. Essa angústia procura protecção junto do poder que ela mesma delegou ao pavor para conter o seu assombro, no qual consente como se não lhe pertencesse sob a forma de obediência, de liberdade mortificada, de imobilidade psíquica, de indolência social. Aquilo a que as democracias chamam política, desde o início deste século, olvidando o horror do século que precedeu este novo século, está a cometer o erro de criminalizar a contestação que as fundamenta e que deveria agitá-las até ao tumulto para as manter vivas.”
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