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No princípio tudo era mentira... Foi preciso o mundo com a sua teimosia infernal para imprimir em nós os caracteres de um fascínio que nos resgatasse da pobreza das ficções compulsivas entre as quais o medo se empareda, e foi quando aprendemos a retirar prazer desses destratos, a fintar o terror, que começou a emergir um sentido da arte, esse anseio exploratório que capturou o nosso génio colectivo, nos fez traficantes de lendas, dos relatos sobre seres que se embrulhavam com a vastidão, e traziam as marcas na pele, a estranheza nos gestos e os contornos algo delirantes de uma fábula que tanto nos cativava como um enredo inconstante, combativo, insatisfeito. A verdade era isso, uma história de que só ouvíamos os capítulos seguintes se a perseguíssemos como a uma presa. A verdade foge-nos, faz de nós caçadores, que vão enfebrecidos pela sua tão temperamental e esquiva canção. Mas o que a funda não é uma composição de factos indesmentíveis, e, sim, essa disposição daquele que a busca a movimentar-se, ir mais longe, querer dela algo mais. Com esse tumulto foi possível a alguns expandir a realidade noutras dimensões, com materiais do seu tempo e de outros, construindo essa força variante, capaz de acicatar o desejo. Pelo contrário, nos nossos dias encontramo-nos regredidos, mediaticamente embalsamados, arrastados para fantasias cada vez mais podres, reféns de um bando de mentirosos compulsivos, que, seja como for, de certeza medem o valor pelo efeito produzido. Convencidos dessa magia negra em que a vida não passa de uma cópia da imprensa, deram-nos o jornalismo como um ambientador e os modos reprodutivos do entretenimento como um vício que nos sedentariza, nos faz cair para dentro, ficarmos prisioneiros desses estímulos que se dirigem apenas ao que há de pior na nossa natureza. Estas coisas são explicadas nestes termos por Karl Kraus: "É que, na era dos que se deixam arrastar, o acto é mais forte do que a palavra, mas mais forte do que o acto é o eco. Vivemos do eco e, neste mundo às avessas, é o eco que desperta o grito. Na organização do eco, a fraqueza é capaz de uma metamorfose extraordinária..." Num regime de subalternos como o nosso, por entre todo o luto que passou a ser o verdadeiro desígnio deste país, somos este resto senil de tantos séculos que não distingue já os espasmos da sua memória do zumbido das moscas sobre o seu cadáver, consolando-se a forjar a fraude da sua posteridade, produzindo um testemunho cada vez mais patético, desligado da realidade, invertendo a lógica do sentido de sacríficio. Desde logo, é cada vez mais difícil acreditar no carácter glorioso de uma glória que circula num mundo cada vez mais empobrecido, mais desgostante, piolhoso, abandalhado, trazendo os louros numa pochete. Por estes dias, os promotores deste castigo fizeram bem o seu trabalho, elevando Balsemão à categoria de mito, alguém que nunca foi outra coisa além de um traficante de influências, um dealer de aparências, chulo dos egos, que investiu tudo na idolatria e no temor, sabendo bem que a submissão adora travestir-se de liberdade. Aqui, não há apenas encenação, mas uma coreografia perfeita que transforma a fraude em inevitabilidade. A rede de Balsemão passa mais por um confisco da realidade, entre golpes de sedução e anestesia, entretendo-nos com um conto de fadas do qual não conseguem arrancar o cheiro a morto... Em vez de informação, parecem estender-nos um suborno à consciência, uma realidade submetida aos efeitos da propaganda, já não de ordem ideológica, mas como puro efeito de marketing, em que importa sobretudo fazer fé em todo o tipo de parvoeiras, deixar-se levar, viver os dramas insossos de um país ausente de si mesmo. E o que nos leva à loucura é a forma como neste país qualquer figurante se converte em figura de primeiro plano, desde que se mostre disponível para prolongar a impostura, com aquela conversa de empata das colunas amestradas de jornais que deixam a época exangue, subordinando os fins da existência aos meios de subsistência, como é próprio de qualquer jagunço, papagueando todas as superficialidades, fortalecendo essa zona de saturação que se decompõe num enredo em que cada um só actua com procuração da falta de carácter... Neste episódio, fizemos de tudo para estender ainda mais essas badaladas de primeira página a anunciar e incensar o defunto, a retratar as suas infinitas proezas, a vir com coisas de ontem, de nada, como uma grande pré-história, um passado fundamental, mas tudo tão azucrinante, num cerimonial pomposo, com as criaditas enchendo de ranho os trapos enternecidas com o CEO da Família Ltd, o Ministro da Gravidade Doméstica, o Oráculo do Controle Remoto, Barão do Jornalismo de Aluguer, Patriarca das Migalhas de Glória, mas depois, sem conseguirem sacudir aquele estilo afectado, esse tesão de mijo da prosa assanhada dos sacripantas, enaltecendo o registo cavalheiresco daquele que podia simplesmente ser mais um patrão sobranceiro e castrador, já querem elevá-lo a visionário, mais que um Magnata do Papel Higiénico com Manchetes que não aquecem nem arrefecem, foi um grande maestro democrata, prodigalizando os seus dotes, a sua fortuna, amontoando numa pilha as liberdades todas (qual feijoeiro mágico!) que lhe ficamos a dever, e abafando, como de costume, a trama das conveniências, a intriga promocional de toda uma camorra de medíocres, o encobrimento e as distracções para apagar as tropelias de ratazanas e de sanguessugas sem as quais, afinal, não há história nenhuma para contar, nem há História de Portugal, país que se arrasta há séculos de desfalque em desfalque. Desta vez, e para comer o bolo rei, pedimos ajuda a dois maganões, que já tinham passado por cá antes, e que se puseram a escarafunchar aquilo em busca da fava e a cuspir a fruta cristalizada para os lustres da salinha onde também nós velámos esse cachalote bonançoso, com aquelas manápulas cruzadas sobre o peito, subindo a prumo, subindo sempre, no sentido da eternidade.
By Diogo Vaz Pinto e Fernando RamalhoNo princípio tudo era mentira... Foi preciso o mundo com a sua teimosia infernal para imprimir em nós os caracteres de um fascínio que nos resgatasse da pobreza das ficções compulsivas entre as quais o medo se empareda, e foi quando aprendemos a retirar prazer desses destratos, a fintar o terror, que começou a emergir um sentido da arte, esse anseio exploratório que capturou o nosso génio colectivo, nos fez traficantes de lendas, dos relatos sobre seres que se embrulhavam com a vastidão, e traziam as marcas na pele, a estranheza nos gestos e os contornos algo delirantes de uma fábula que tanto nos cativava como um enredo inconstante, combativo, insatisfeito. A verdade era isso, uma história de que só ouvíamos os capítulos seguintes se a perseguíssemos como a uma presa. A verdade foge-nos, faz de nós caçadores, que vão enfebrecidos pela sua tão temperamental e esquiva canção. Mas o que a funda não é uma composição de factos indesmentíveis, e, sim, essa disposição daquele que a busca a movimentar-se, ir mais longe, querer dela algo mais. Com esse tumulto foi possível a alguns expandir a realidade noutras dimensões, com materiais do seu tempo e de outros, construindo essa força variante, capaz de acicatar o desejo. Pelo contrário, nos nossos dias encontramo-nos regredidos, mediaticamente embalsamados, arrastados para fantasias cada vez mais podres, reféns de um bando de mentirosos compulsivos, que, seja como for, de certeza medem o valor pelo efeito produzido. Convencidos dessa magia negra em que a vida não passa de uma cópia da imprensa, deram-nos o jornalismo como um ambientador e os modos reprodutivos do entretenimento como um vício que nos sedentariza, nos faz cair para dentro, ficarmos prisioneiros desses estímulos que se dirigem apenas ao que há de pior na nossa natureza. Estas coisas são explicadas nestes termos por Karl Kraus: "É que, na era dos que se deixam arrastar, o acto é mais forte do que a palavra, mas mais forte do que o acto é o eco. Vivemos do eco e, neste mundo às avessas, é o eco que desperta o grito. Na organização do eco, a fraqueza é capaz de uma metamorfose extraordinária..." Num regime de subalternos como o nosso, por entre todo o luto que passou a ser o verdadeiro desígnio deste país, somos este resto senil de tantos séculos que não distingue já os espasmos da sua memória do zumbido das moscas sobre o seu cadáver, consolando-se a forjar a fraude da sua posteridade, produzindo um testemunho cada vez mais patético, desligado da realidade, invertendo a lógica do sentido de sacríficio. Desde logo, é cada vez mais difícil acreditar no carácter glorioso de uma glória que circula num mundo cada vez mais empobrecido, mais desgostante, piolhoso, abandalhado, trazendo os louros numa pochete. Por estes dias, os promotores deste castigo fizeram bem o seu trabalho, elevando Balsemão à categoria de mito, alguém que nunca foi outra coisa além de um traficante de influências, um dealer de aparências, chulo dos egos, que investiu tudo na idolatria e no temor, sabendo bem que a submissão adora travestir-se de liberdade. Aqui, não há apenas encenação, mas uma coreografia perfeita que transforma a fraude em inevitabilidade. A rede de Balsemão passa mais por um confisco da realidade, entre golpes de sedução e anestesia, entretendo-nos com um conto de fadas do qual não conseguem arrancar o cheiro a morto... Em vez de informação, parecem estender-nos um suborno à consciência, uma realidade submetida aos efeitos da propaganda, já não de ordem ideológica, mas como puro efeito de marketing, em que importa sobretudo fazer fé em todo o tipo de parvoeiras, deixar-se levar, viver os dramas insossos de um país ausente de si mesmo. E o que nos leva à loucura é a forma como neste país qualquer figurante se converte em figura de primeiro plano, desde que se mostre disponível para prolongar a impostura, com aquela conversa de empata das colunas amestradas de jornais que deixam a época exangue, subordinando os fins da existência aos meios de subsistência, como é próprio de qualquer jagunço, papagueando todas as superficialidades, fortalecendo essa zona de saturação que se decompõe num enredo em que cada um só actua com procuração da falta de carácter... Neste episódio, fizemos de tudo para estender ainda mais essas badaladas de primeira página a anunciar e incensar o defunto, a retratar as suas infinitas proezas, a vir com coisas de ontem, de nada, como uma grande pré-história, um passado fundamental, mas tudo tão azucrinante, num cerimonial pomposo, com as criaditas enchendo de ranho os trapos enternecidas com o CEO da Família Ltd, o Ministro da Gravidade Doméstica, o Oráculo do Controle Remoto, Barão do Jornalismo de Aluguer, Patriarca das Migalhas de Glória, mas depois, sem conseguirem sacudir aquele estilo afectado, esse tesão de mijo da prosa assanhada dos sacripantas, enaltecendo o registo cavalheiresco daquele que podia simplesmente ser mais um patrão sobranceiro e castrador, já querem elevá-lo a visionário, mais que um Magnata do Papel Higiénico com Manchetes que não aquecem nem arrefecem, foi um grande maestro democrata, prodigalizando os seus dotes, a sua fortuna, amontoando numa pilha as liberdades todas (qual feijoeiro mágico!) que lhe ficamos a dever, e abafando, como de costume, a trama das conveniências, a intriga promocional de toda uma camorra de medíocres, o encobrimento e as distracções para apagar as tropelias de ratazanas e de sanguessugas sem as quais, afinal, não há história nenhuma para contar, nem há História de Portugal, país que se arrasta há séculos de desfalque em desfalque. Desta vez, e para comer o bolo rei, pedimos ajuda a dois maganões, que já tinham passado por cá antes, e que se puseram a escarafunchar aquilo em busca da fava e a cuspir a fruta cristalizada para os lustres da salinha onde também nós velámos esse cachalote bonançoso, com aquelas manápulas cruzadas sobre o peito, subindo a prumo, subindo sempre, no sentido da eternidade.

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![Fundação (FFMS) - [IN] Pertinente by Fundação Francisco Manuel dos Santos](https://podcast-api-images.s3.amazonaws.com/corona/show/2108484/logo_300x300.jpeg)
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