Enterrados no Jardim

A caderneta de cromos da cultura portuguesa. Outra conversa com Vítor Belanciano


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No dia em que a Sonae cortar a benemérita linha de vida que estende ao jornalismo português e o Público deixar de ir para as bancas, o Ípsilon ainda poderá fazer o pitch à Panini, safando-se de forrar o túmulo do jornalismo cultural, e com aquele sebo de rodízios que lhe é característico ser-lhe-á dada a oportunidade de produzir as várias temporadas do álbum de família da enxofrada cena cultural a que vamos tendo direito. Irradiando por meio de um sinal cada vez mais débil e para uma comunidade desintegrada ou submetida às lógicas de reprodução acríticas do consumo de massas, este suplemento vive graças à lógica de agenciamento das “figuras, figurantes e figurões” que compõem esse quadro, e o sistema agradece-lhe pela forma como consegue estabilizar tudo a um mesmo nível, naquela linha flutuante e deambulatória com que se ligam os dias e os juízos, segundo uma pretensão cosmopolita, fornecendo as fantasias em regime prêt-à-porter para a afectação de uma pose nos adros do nosso pequeno recreio social onde essas coisas contam. A propósito daquele número especial, que não deixou de nos fornecer matéria para algumas facécias, o que se mostra mais persistente nestas iniciativas é a jactância triunfalista. Dá a sensação que sempre que há a necessidade de corresponder a uma efeméride, nestas ocasiões só arregaçam as mangas para melhor se porem a cheirar a merda acumulada nas cavalariças. O que impressiona acima de tudo, e particularmente nos artigos que encenam uma panorâmica retrospectiva sobre o percurso do suplemento e o colam à própria evolução da cultura portuguesa no primeiro quartel deste século, que nunca chega a ser alvo de qualquer análise ou interrogação, é esse triunfalismo implicitamente e inutilmente publicitário. Aquilo que parecem ignorar estes promotores, tão habituados a despejar tinta sobre tudo o que prometa farra, é que o poder não precisa de propagandistas. “Se é poder”, assinala Alfonso Berardinelli, “impõe-se por si e, de facto, cada um já dele tomou nota”. “Alinhar-se com aquilo que se impõe é uma forma vácua ou perversa de moralismo”, adianta o crítico italiano. Em vez de uma capacidade de produzir um agenciamento de enunciados, de propostas que desafiem as expectativas, demasiadas vezes este suplemento parece resignar-se a uma postulação face ao que já se sabe. Daí a propensão para se auto-congratular por uma série de “apostas ganhas”, formulando mais umas quantas para seguir com esta lógica de casino. Se David Pontes reconhece que há hoje “sectores inteiros da cultura que correm o risco de desaparecer no silêncio”, e reforça que “sem eco não há cultura que, por falta de impacto, sobreviva”, depois, reclama para aquele suplemento um papel de enorme relevância no esforço de “relatar, descobrir e criticar expressões artísticas minoritárias, porque sabe que elas fazem parte da expressão máxima da diversidade humana”. Assim, é só por este suplemento desempenhar o seu trabalho de forma “quase solitária” que vimos retrocedendo, vendo a dificuldade de abrir o campo de possibilidades actuais de repensar este tempo, escapar do mundo que existe, criando as condições para a expressão de outros mundos possíveis. Com uma única excepção entre os textos que integram este volume, não há qualquer sinal de uma autocrítica, e mesmo o tom de certos artigos, quando parece neutro, é sempre promissor, tranquilizador e moderadamente profético. Só António Guerreiro abre um parêntesis em que vem denunciar que “o jornalismo cultural implodiu”: “pôs-se à mercê da publicidade cultural, com a qual passou a confundir-se” (…); “cúmplice da indústria cultural (dirá mesmo, com toda a convicção, que é impossível conquistar um lugar exterior a ela) e, por conseguinte, inscreve-se na sua lógica”. Ainda acrescenta que este género quase deixou de ser nomeado porque perdeu o seu antigo poder de irradiação, acabando por se submeter: “A ele sobrepôs-se a divulgação cultural, num contexto em que os objectos e os acontecimentos culturais aspiram sobretudo a ser divulgados, publicitados, recomendados.” Quanto às restantes análises, as poucas vezes que mantêm um compromisso de leitura das convulsões da época, acabam por reconhecer que o novo milénio não trouxe verdadeiramente descobertas novas, nem produziu obras que pareçam características de uma nova época. A maior e mais sintomática novidade é quantitativa: há muitíssimos produtores, “novos criadores” que se limitam a recombinar ou retocar velhas fórmulas, de forma cada vez mais contingente. Assim, os actores culturais, mais prolíficos do que nunca, são coagidos a dar provas de vida e submeterem-se aos protocolos do espectáculo de modo a obterem o selo e o género de aclamações que significam uma extensão do crédito a essa espécie de agonia em que vão resistindo as práticas artísticas. Mas se há algum autor verdadeiramente digno desse título, alguém capaz de causar verdadeira perturbação na matéria já dada, este é convenientemente negligenciado. Tudo o que não se sagra segundo as dinâmicas do mercado fica dependente destes processos de homologação, e acaba a mendigar os apoios de inserção destes técnicos sociais da cultura. Tudo isto apenas intensifica o regime das indústrias culturais, com a produção em série de conteúdos de consciência, informação, entretenimento, publicidade e propaganda. Neste episódio, e para andarmos de volta destas questões, voltámos a importunar Vítor Belanciano, que esteve presente em 23 dos 25 anos do Ípsilon, e que reconheceu que, depois de um convite para ser co-editor, acabou por perceber que “um agitador com sentido de independência, muito mais do que um pacificador do colectivo”, nunca seria o perfil adequado para gerir um elenco em que cada um escreve em nome próprio, competindo apenas pelo espaço. No fundo, e para se tentar fazer um balanço dos fracassos das nossas propostas culturais, talvez seja necessário reconhecer que vai continuar tudo por fazer, na medida em que o público não está dado, pois se a gente está aí, e há uma ânsia de reconhecer sinais e propostas que a unam, lhe dêem ficções cativantes, e que a agenciem como comunidade, como colectividade ou como classe, falta um jornalismo crítico que esteja em condições de forjar enunciados, esses que “são como os germes do povo que virá e cujo alcance político é imediato e inevitável” (Deleuze).

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Enterrados no JardimBy Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho


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