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A Ficção como História - este é o título e a premissa do livro de Dorothée Boulanger agora publicado em português, depois de uma primeira edição em inglês. A académica francesa analisou mais de 20 romances de autores angolanos como Pepetela, Manuel dos Santos Lima, Ondjaki, José Eduardo Agualusa ou Sousa Jamba, todos publicados no período pós-colonial. O objectivo era tentar perceber o papel da literatura na formação da identidade nacional nos primeiros anos da independência.
O trabalho é o resultado de uma investigação durante o doutoramento na Universidade de Oxford, onde continua como professora. O que levou a Dorothée a viver e a trabalhar em Angola e como é que esse período influenciou esta investigação?
Eu morei em Angola de 2009 a 2011, na cidade de Lobito. Foi, primeiro, uma oportunidade pessoal e familiar, mas, anteriormente, tinha-me formado em relações internacionais e estudos de género, especializando-me no assunto dos conflitos armados em África e em assuntos de pós-conflito, reconstrução, reconciliação. Por isso, o contexto angolano era muito interessante para mim. A guerra civil parou menos de uma década antes da minha chegada em Lobito. Morar mais de dois anos nessa cidade foi uma oportunidade preciosa para o meu trabalho, porque eu quero pensar a literatura como uma intervenção estética e política num contexto específico. A minha leitura das obras fez-se a partir da situação do país. Deu-me a possibilidade de ver a especificidade do discurso literário angolano e os desafios que a população enfrentava acerca da liberdade de expressão e da memória da guerra.
O que faz de Angola especial para que a literatura de ficção seja útil como fonte da história do país?
O papel de muitos escritores angolanos durante a guerra anticolonial, a sua participação na luta armada e dentro do MPLA, tornou-os atores políticos importantes e também testemunhas privilegiadas deste período. Por isso, as narrativas que eles fizeram têm um valor histórico. Também gozavam de um grande prestígio social. O primeiro presidente, Agostinho Neto, era chamado presidente-poeta. E a União dos Escritores Angolanos foi a primeira associação criada pelo Estado independente. Dentro do primeiro governo Neto, havia muitos escritores com função de ministros na saúde, como o Uanhenga Xitu, na cultura, como o António Jacinto. Então, realmente, os escritores estavam dentro do aparelho do poder.
O que é que os romances de ficção angolanos ensinam sobre Angola que não está nos manuais de história?
Uma das contribuições da literatura angolana é de oferecer um discurso angolano sobre a história do país. Um discurso angolano que se distancia do discurso oficial do regime, que fala das tensões dentro do MPLA, do oportunismo das elites pós-coloniais, das purgas. É importante ter vozes angolanas para contar esta história, centrando perspectivas autóctonas e referências culturais e linguísticas angolanas. Os escritores nem sempre concordam na sua maneira de contar ou analisar certos eventos históricos. Ver estes desacordos e estes conflitos é importante para deixar a história aberta e evitar mistificações. A literatura de ficção permite também transmitir de maneira clara, muito pedagógica, trajetórias históricas complexas, influências múltiplas que construíram a sociedade angolana desde o período da escravidão até hoje. A literatura torna-se um arquivo precioso do período revolucionário angolano. Estou pensando nas histórias de infância do Ondjaki, em Luanda, nos anos 1980, quando a cidade e o país eram fechados ao mundo. O romance de Pepetela, "O Planalto e a Estepe", por exemplo, fala das redes revolucionárias dos anos 1960 e 1970, de Cuba à Argélia e à União Soviética.
Por outro lado, às vezes, é nos seus silêncios que a literatura angolana nos ensina muito sobre o papel dos intelectuais. A dificuldade, por exemplo, de falar da tentativa de golpe de Estado do 27 de maio de 1977 por parte dos escritores mais próximos do poder, mostra a dificuldade dos intelectuais em pensar também na sua cumplicidade com a violência do Estado.
O que é que descobriu que não estava à espera?
Tive várias surpresas. Eu acho que a primeira surpresa foi durante a minha primeira leitura dos romances, num contexto em que a população angolana não se sentia à vontade para falar da guerra ou do governo. Pelo contrário, os escritores contavam histórias difíceis, complexas, faziam acusações a propósito do papel das elites, também sobre a herança da escravidão, a falta de integridade ideológica e ética de muitos líderes políticos ou religiosos. Havia esta liberdade de tom dentro da literatura.
A segunda surpresa foi realizar, mais tarde, após ler muitos romances, a centralidade das perspectivas masculinas e a falta de substância de muitos personagens femininos, sobretudo com os escritores da geração da independência. Os seus romances eram anticoloniais, anti-racistas, que denunciam a dominação portuguesa e a propaganda do Estado Novo. Por isto, não pensava que adotariam com tamanha facilidade estereotipos sexistas. Ademais, o MPLA tinha um discurso de inclusão das mulheres na luta. Mas era só isso, discurso. Os romances angolanos revelam que a emancipação das mulheres e o privilégio masculino são pontos cegos para estes autores, todos homens. Estou pensando em "Sim Camarada!", de Manuel Rui, ou "Mayombe", de Pepetela, que são obras sexistas. Mas o que é muito interessante é que parece que estes autores depois tentaram corrigir um pouco esta propensão. "Lueji: O Nascimento de um Império", de Pepetela, "Rioseco", de Manuel Rui, tentam celebrar o papel das mulheres nas lutas e nas guerras em Angola. Mas até hoje há muito pouco mulheres escritoras no país, o que sublinha, eu acho, a persistência de uma atmosfera masculina acerca da literatura.
Há aqui um modelo para analisar a história de outros países da África lusófona da perspetiva da literatura?
Sim, a literatura africana sempre teve essa vontade de responder ao discurso colonial, de contar a história na perspectiva dos africanos e das africanas. Um dos aspectos do discurso colonial era negar a história africana, dizendo que a sua história começou com a chegada dos europeus. Muitos escritores africanos - Yvonne Vera, Ngugi wa Thiong’o, Assia Djebar e muitos outros - escreveram para contar a sua própria história e revelar a violência e a regressão histórica que constituiu a ocupação europeia do continente africano. Isto sendo dito, eu acho que o caso angolano tem as suas especificidades. No contexto do Estado Novo, a censura política, a propaganda portuguesa deram à literatura um papel importante para fazer ressoar o discurso anticolonial e nacionalista. Daqui, os escritores angolanos, que por razões sociais, familiares, tinham laços fortes com o MPLA, participaram fortemente na luta anticolonial, como escritores e como militantes, às vezes como guerreiros. Esta proximidade com a luta e depois com o aparelho de Estado dá este valor histórico à literatura angolana e à sua especificidade.
Analisou a literatura pós-colonial, de 1960 a 2010. A literatura angolana, ou africana em geral, é hoje menos ativista politica e socialmente?
É uma pergunta interessante, mas é uma pergunta difícil, porque, como eu expliquei, a literatura africana, de forma geral, tem esta dimensão política. Não se reduz a este discurso político, mas tem essas preocupações com o poder, as desigualdades, a dominação histórica. Eu acho que hoje esta dimensão combativa da literatura africana pode encarnar-se em outras lutas de género ou ambientais. Mas, no caso da literatura angolana, acho que é verdade que não encontramos o mesmo dinamismo, a mesma criatividade que há 30 anos. Angola teve uma geração excepcional de escritores desde os anos 60. É indisputável. Hoje em dia, não são tantos, e a luta encarna-se em outras formas de arte, como o hip-hop, por exemplo. A expressão crítica e criativa faz-se através das redes sociais. E temos também que dizer que a negligência do Estado angolano com a educação e a cultura não permitiu um forte desenvolvimento da leitura e da literatura dentro das gerações mais jovens.
O livro "A Ficção como História - Resistência e Cumplicidades na Literatura Angolana Pós-Colonial" publicado pela editora Mercado de Letras vai estar à venda em Angola a partir de Março e vai ficar disponível mais tarde em versão digital graças a uma parceria com a editora francesa Africae.
A Ficção como História - este é o título e a premissa do livro de Dorothée Boulanger agora publicado em português, depois de uma primeira edição em inglês. A académica francesa analisou mais de 20 romances de autores angolanos como Pepetela, Manuel dos Santos Lima, Ondjaki, José Eduardo Agualusa ou Sousa Jamba, todos publicados no período pós-colonial. O objectivo era tentar perceber o papel da literatura na formação da identidade nacional nos primeiros anos da independência.
O trabalho é o resultado de uma investigação durante o doutoramento na Universidade de Oxford, onde continua como professora. O que levou a Dorothée a viver e a trabalhar em Angola e como é que esse período influenciou esta investigação?
Eu morei em Angola de 2009 a 2011, na cidade de Lobito. Foi, primeiro, uma oportunidade pessoal e familiar, mas, anteriormente, tinha-me formado em relações internacionais e estudos de género, especializando-me no assunto dos conflitos armados em África e em assuntos de pós-conflito, reconstrução, reconciliação. Por isso, o contexto angolano era muito interessante para mim. A guerra civil parou menos de uma década antes da minha chegada em Lobito. Morar mais de dois anos nessa cidade foi uma oportunidade preciosa para o meu trabalho, porque eu quero pensar a literatura como uma intervenção estética e política num contexto específico. A minha leitura das obras fez-se a partir da situação do país. Deu-me a possibilidade de ver a especificidade do discurso literário angolano e os desafios que a população enfrentava acerca da liberdade de expressão e da memória da guerra.
O que faz de Angola especial para que a literatura de ficção seja útil como fonte da história do país?
O papel de muitos escritores angolanos durante a guerra anticolonial, a sua participação na luta armada e dentro do MPLA, tornou-os atores políticos importantes e também testemunhas privilegiadas deste período. Por isso, as narrativas que eles fizeram têm um valor histórico. Também gozavam de um grande prestígio social. O primeiro presidente, Agostinho Neto, era chamado presidente-poeta. E a União dos Escritores Angolanos foi a primeira associação criada pelo Estado independente. Dentro do primeiro governo Neto, havia muitos escritores com função de ministros na saúde, como o Uanhenga Xitu, na cultura, como o António Jacinto. Então, realmente, os escritores estavam dentro do aparelho do poder.
O que é que os romances de ficção angolanos ensinam sobre Angola que não está nos manuais de história?
Uma das contribuições da literatura angolana é de oferecer um discurso angolano sobre a história do país. Um discurso angolano que se distancia do discurso oficial do regime, que fala das tensões dentro do MPLA, do oportunismo das elites pós-coloniais, das purgas. É importante ter vozes angolanas para contar esta história, centrando perspectivas autóctonas e referências culturais e linguísticas angolanas. Os escritores nem sempre concordam na sua maneira de contar ou analisar certos eventos históricos. Ver estes desacordos e estes conflitos é importante para deixar a história aberta e evitar mistificações. A literatura de ficção permite também transmitir de maneira clara, muito pedagógica, trajetórias históricas complexas, influências múltiplas que construíram a sociedade angolana desde o período da escravidão até hoje. A literatura torna-se um arquivo precioso do período revolucionário angolano. Estou pensando nas histórias de infância do Ondjaki, em Luanda, nos anos 1980, quando a cidade e o país eram fechados ao mundo. O romance de Pepetela, "O Planalto e a Estepe", por exemplo, fala das redes revolucionárias dos anos 1960 e 1970, de Cuba à Argélia e à União Soviética.
Por outro lado, às vezes, é nos seus silêncios que a literatura angolana nos ensina muito sobre o papel dos intelectuais. A dificuldade, por exemplo, de falar da tentativa de golpe de Estado do 27 de maio de 1977 por parte dos escritores mais próximos do poder, mostra a dificuldade dos intelectuais em pensar também na sua cumplicidade com a violência do Estado.
O que é que descobriu que não estava à espera?
Tive várias surpresas. Eu acho que a primeira surpresa foi durante a minha primeira leitura dos romances, num contexto em que a população angolana não se sentia à vontade para falar da guerra ou do governo. Pelo contrário, os escritores contavam histórias difíceis, complexas, faziam acusações a propósito do papel das elites, também sobre a herança da escravidão, a falta de integridade ideológica e ética de muitos líderes políticos ou religiosos. Havia esta liberdade de tom dentro da literatura.
A segunda surpresa foi realizar, mais tarde, após ler muitos romances, a centralidade das perspectivas masculinas e a falta de substância de muitos personagens femininos, sobretudo com os escritores da geração da independência. Os seus romances eram anticoloniais, anti-racistas, que denunciam a dominação portuguesa e a propaganda do Estado Novo. Por isto, não pensava que adotariam com tamanha facilidade estereotipos sexistas. Ademais, o MPLA tinha um discurso de inclusão das mulheres na luta. Mas era só isso, discurso. Os romances angolanos revelam que a emancipação das mulheres e o privilégio masculino são pontos cegos para estes autores, todos homens. Estou pensando em "Sim Camarada!", de Manuel Rui, ou "Mayombe", de Pepetela, que são obras sexistas. Mas o que é muito interessante é que parece que estes autores depois tentaram corrigir um pouco esta propensão. "Lueji: O Nascimento de um Império", de Pepetela, "Rioseco", de Manuel Rui, tentam celebrar o papel das mulheres nas lutas e nas guerras em Angola. Mas até hoje há muito pouco mulheres escritoras no país, o que sublinha, eu acho, a persistência de uma atmosfera masculina acerca da literatura.
Há aqui um modelo para analisar a história de outros países da África lusófona da perspetiva da literatura?
Sim, a literatura africana sempre teve essa vontade de responder ao discurso colonial, de contar a história na perspectiva dos africanos e das africanas. Um dos aspectos do discurso colonial era negar a história africana, dizendo que a sua história começou com a chegada dos europeus. Muitos escritores africanos - Yvonne Vera, Ngugi wa Thiong’o, Assia Djebar e muitos outros - escreveram para contar a sua própria história e revelar a violência e a regressão histórica que constituiu a ocupação europeia do continente africano. Isto sendo dito, eu acho que o caso angolano tem as suas especificidades. No contexto do Estado Novo, a censura política, a propaganda portuguesa deram à literatura um papel importante para fazer ressoar o discurso anticolonial e nacionalista. Daqui, os escritores angolanos, que por razões sociais, familiares, tinham laços fortes com o MPLA, participaram fortemente na luta anticolonial, como escritores e como militantes, às vezes como guerreiros. Esta proximidade com a luta e depois com o aparelho de Estado dá este valor histórico à literatura angolana e à sua especificidade.
Analisou a literatura pós-colonial, de 1960 a 2010. A literatura angolana, ou africana em geral, é hoje menos ativista politica e socialmente?
É uma pergunta interessante, mas é uma pergunta difícil, porque, como eu expliquei, a literatura africana, de forma geral, tem esta dimensão política. Não se reduz a este discurso político, mas tem essas preocupações com o poder, as desigualdades, a dominação histórica. Eu acho que hoje esta dimensão combativa da literatura africana pode encarnar-se em outras lutas de género ou ambientais. Mas, no caso da literatura angolana, acho que é verdade que não encontramos o mesmo dinamismo, a mesma criatividade que há 30 anos. Angola teve uma geração excepcional de escritores desde os anos 60. É indisputável. Hoje em dia, não são tantos, e a luta encarna-se em outras formas de arte, como o hip-hop, por exemplo. A expressão crítica e criativa faz-se através das redes sociais. E temos também que dizer que a negligência do Estado angolano com a educação e a cultura não permitiu um forte desenvolvimento da leitura e da literatura dentro das gerações mais jovens.
O livro "A Ficção como História - Resistência e Cumplicidades na Literatura Angolana Pós-Colonial" publicado pela editora Mercado de Letras vai estar à venda em Angola a partir de Março e vai ficar disponível mais tarde em versão digital graças a uma parceria com a editora francesa Africae.
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