Convidado

Aumenta número de mortos devido à violência policial em São Paulo, no Brasil


Listen Later

No Brasil, o Estado de São Paulo, o mais populoso do país, enfrenta uma vaga sem precedentes de homicídios cometidos por agentes da autoridade. Em apenas dois anos, o número de mortes provocadas pela polícia aumentou 150%. Este fenómeno coincide com a chegada ao governo estadual de Tarcísio de Freitas, que tem mantido um discurso de linha dura no combate ao crime. Este político conservador é também apontado como o sucessor mais provável de Jair Bolsonaro, actualmente inelegível por um período de oito anos.

Foi neste contexto que a RFI falou com Leonardo Carvalho, investigador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor de um relatório sobre a actuação policial no Estado de São Paulo.

RFI: Como explica o aumento de homicídios cometidos por agentes policiais?

Leonardo Carvalho: Historicamente, a letalidade em São Paulo ficava em níveis de 700 a 600 pessoas mortas pelas polícias por ano. A polícia militar é responsável pela maior parte dessas mortes. O que aconteceu foi que, a partir de 2020, algumas medidas começaram a ser adoptadas pela Polícia Militar, justamente para refrear essa letalidade e para ter maiores mecanismos de controlo do uso da força.

Dentre elas, a implementação das câmaras corporais nas fardas dos polícias e comissões de mitigação de risco, que eram procedimentos instaurados no âmbito interno da polícia militar, toda vez que tinha uma ocorrência com resultado morte, justamente para apurar. Se aquilo foi um erro de procedimento, um não cumprimento dos protocolos, se houve algum crime, era uma instância de apuração e de análise dos casos. E também um maior investimento da polícia em armas de incapacitação neuromuscular, os tasers.

A polícia estava investindo em equipamento menos letal para refrear a letalidade. O resultado da implementação dessas ferramentas que eu comentei foram, a partir de 2020, o início de uma redução, porque aqui foi implementado ao longo desse ano. 2021 e 2022 foram anos em que essas medidas se consolidaram, vimos uma redução muito grande da letalidade policial em São Paulo. O que que acontece em 2022 no Brasil, como um todo? A gente teve eleições para governador. Aqui, o então candidato, Tarcísio de Freitas, no campo da segurança pública, colocava muito em xeque a eficiência desses mecanismos, ele falava em algumas ocasiões que ia acabar com o programa de câmaras, em outras oportunidades ele colocava em xeque a eficiência desses mecanismos.

O que aconteceu foi que a partir de 2023, quando ele é eleito governador, vimos o início de um aumento, muito em função desse discurso do Tarcísio de que ele não iria endossar a consolidação dessas práticas instaladas pela Polícia Militar. Quando o governador e o secretário de segurança estão a dizer que vão acabar com políticas de controlo do uso da força e eles pregam nos seus discursos uma polícia violenta, é óbvio que a tropa vai entender essa mensagem e vai agir de acordo com ela. Então esse é o resultado.

RFI: E na prática, esta política traduziu-se em operações policiais extremamente letais, sobretudo no litoral do Estado de São Paulo. Pode elaborar ?

Leonardo Carvalho: Esses anos aqui, 2023 e 2024, foram os anos da 'Operação Escudo' e da 'Operação Verão', que foram operações realizadas ao longo de alguns meses, em reacção à morte de um polícia, que aconteceu na Baixada Santista. A partir daí, a polícia militar adoptou uma série de procedimentos, deslocou policias de outras áreas para realizar essa operação, que acabou com um número ainda não determinado de mortes, mas é a operação mais letal da história da Polícia de São Paulo depois do Carandiru, onde a Polícia Militar entrou no complexo do Carandiru com a intenção de controlar uma rebelião e provocou a morte de 111 presos.

RFI: No que diz respeito a essas operações 'Escudo' e 'Verão', as estimativas mais optimistas apontam para cerca de 80 mortos. Essa violência afecta todas as camadas da população da mesma forma?

Leonardo Carvalho: Não, claro que não. A letalidade policial tem um perfil muito delimitado das suas vítimas, seja a violência policial letal ou não letal. Aqui em São Paulo, a gente observa, através das pesquisas, através dos trabalhos científicos que já foram feitos, que o perfil das pessoas mortas, vítimas das mortes decorrentes de intervenção policial, são homens, negros, jovens. Essas ocorrências geralmente dão-se em áreas periféricas. Então a gente tem um perfil sociodemográfico e um perfil demográfico bem delimitado sobre a violência policial letal em São Paulo.

RFI: No seu relatório, destaca o papel central das câmaras corporais na redução dos homicídios policiais, graças a um programa denominado 'Olho Vivo'. Pode entrar em pormenores?

Leonardo Carvalho: O programa "Olho Vivo" foi lançado em 2020. Ele é fruto de muito estudo, de muito amadurecimento interno da própria Polícia Militar. E ele traz alguns elementos inéditos até então aos programas de câmaras corporais que existiam no mundo. O principal ponto que destaco era a gravação ininterrupta de imagens, diferente de outros programas onde o polícia usa a câmara e aperta o botão de ligar e desligar, por todo o turno de serviço. O que o polícia faz é que todas as vezes que ele vai para uma ocorrência, todas as vezes que ele acha necessidade, ele aperta um botão na câmara e a gravação passa a ser o que a gente chama de vídeo intencional. A gravação melhora a qualidade do vídeo e tem captação de áudio. Se ele não aperta o botão, a câmara grava no que se chama de modo de rotina. A câmara está a gravar numa resolução de vídeo menor, mas que ainda assim é bem legível e sem captação de áudio. Quando ele aperta o botão, ele grava com qualidade melhor e com áudio. Esse era o modelo que foi implementado em 2020 e que é o responsável pela redução de letalidade.

RFI: E este programa sofreu alterações desde a chegada do novo governador?

Leonardo Carvalho: Ao longo de 2024 foi lançado um novo edital que nos preocupa muito. Porque esse novo edital mexe com algumas características que havia no programa. Ele acaba com o modo de interrupto de gravação. Então, agora o polícia liga e desliga a câmara. Esse acionamento pode ser feito em modo remoto, via o centro de 190, o COPOM, mas ele acaba com a gravação em interrupto, tal como a gente tinha. Ele também garante novas funcionalidades para as câmaras. Dentre elas, a integração com ferramentas de reconhecimento facial, o que nos preocupa, porque uma vez que a câmara está numa base móvel, que é a farda, o corpo do polícia, em constante movimento, ela não está estabilizada, estamos preocupados com qual será o resultado de um reconhecimento facial feito nessas condições. Um outro ponto que chama a atenção é que antes havia um período maior de armazenamento dos vídeos nos servidores. Agora, esse tempo foi bastante reduzido. Qual é o impacto disso? No caso da ocorrência de uma morte, por letalidade policial, às vezes a investigação pode demorar a fazer o requerimento das imagens. E se esse requerimento for feito depois do período de armazenamento ter findado, esse vídeo é apagado e aquele vídeo não está mais à disposição.

RFI: Outro ponto interessante mencionado no relatório é que as câmaras corporais também contribuíram para a diminuição das mortes de agentes policiais, bem como das falsas acusações contra eles. Na sua opinião, qual foi a razão que levou Tarcísio de Freitas a afastar-se dessa política?

Leonardo Carvalho: Uma razão política, porque a razão técnica, o senhor não encontra. Todos os estudos baseados em evidência, no mínimo de metodologia científica, chegam à mesma conclusão, O programa 'Olho Vivo', de facto conseguem impactar de maneira muito positiva o controlo da força. Se pensarmos um pouco na trajetória do actual governador, e ele adopta a mesma linha que o seu mentor, do seu padrinho político, enfim, que é o ex-ministro do governo Bolsonaro, e não à toa, no campo da segurança pública, que é um campo bastante caro a essa linha política de direita, ele também adopta e nomeia como secretário da segurança um ex-polícia militar, que está nessa linha de polícia violenta, polícia truculenta. Ele mesmo orgulha-se e menciona que é autor de uma série de ocorrências tendo resultado em morte e ele defende esse tipo de polícia.

...more
View all episodesView all episodes
Download on the App Store

ConvidadoBy RFI Português


More shows like Convidado

View all
Semana em África by RFI Português

Semana em África

0 Listeners

Artes by RFI Português

Artes

0 Listeners

Em linha com o correspondente by RFI Português

Em linha com o correspondente

0 Listeners

Ciência by RFI Português

Ciência

0 Listeners

16h00 - 16h10 GMT by RFI Português

16h00 - 16h10 GMT

0 Listeners

19h10 - 19h30 GMT by RFI Português

19h10 - 19h30 GMT

0 Listeners

Em directo da redacção by RFI Português

Em directo da redacção

0 Listeners

Em linha com o ouvinte / internauta by RFI Português

Em linha com o ouvinte / internauta

0 Listeners

Vida em França by RFI Português

Vida em França

0 Listeners