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Em Barber Shop Chronicles, o dramaturgo nigeriano-britânico Inua Ellams transforma as barbearias africanas e afro-europeias em verdadeiros teatros do dia-a-dia. De Lagos a Londres, de Kinshasa a Acra, esses barbershops tornam-se bancos de escola onde se aprende a ser homem, confessionários onde se depositam raivas e ternuras, praças públicas onde a palavra circula como uma bola de futebol. A peça esteve em cena no MC93 – Maison de la Culture de Seine-Saint-Denis, em Bobigny, um dos centros teatrais mais importantes da região parisiense.
Há lugares onde se corta o cabelo — e outros onde se refaz o mundo. Em Barber Shop Chronicles, o texto é ritmado, cheio de humor e de humanidade. Fala-se de identidade, de masculinidade, de diáspora — mas também de música, de cumplicidade e de alegria partilhada entre homens africanos. Na peça, a barbearia torna-se um espaço de palavra, quase um refúgio. Entre os 12 intérpretes, o actor José Mavà, franco-angolano, dá corpo a várias vozes.
RFI: Para si, o que é que um barber shop revela do íntimo masculino, sobretudo em culturas africanas onde, tantas vezes, falar de si é um gesto contido?
José Mavà: Vejo os barber shop como um sítio para refúgio, sim. Refúgio esse que muitas vezes não conseguimos encontrar em espaços convencionais e públicos. Existe este lugar e espaço para sermos completamente vulneráveis. O barber shop pode ser um confessionário, a nossa psiquiatria. Podemos aprender filosofia e até mesmo religião numa barber shop ! É interessante como tudo converge dentro deste espaço. Todas as conversas convergem e conseguimos, da mesma forma, ter uma certa dualidade entre o sério e o brincar.
RFI: Sente-se esta dualidade ao longo das duas horas desta peça?
José Mavà: Sim, certamente. É algo que tentamos sempre partilhar. Lá está, um barber shop é também um local de partilha.
RFI: Houve partilha na escrita da dramaturgia, entre os 12 intérpretes em cena e com o dramaturgo?
José Mavà: Sim. A versão francesa desta peça foi readaptada para uma realidade francófona e foi feita pelo Junior Akweti. Ele é residente na Bélgica e simplesmente pegou no texto original de Inua Ellams. Obviamente que houve adaptações porque deparámo-nos com outras brincadeiras pelo meio, outras nuances, outros ritmos e dinâmicas. Mas a dramaturgia não foi partilhado unicamente pelos directores. Encontrámos sempre uma forma de estarmos na horizontal. Foi uma porta aberta para partilharmos aquilo que sabemos fazer melhor e com isso criar esta adaptação em conjunto que é a Barber Shop Chronicles.
RFI: Esta peça tem viajado desde o início de Outubro, como é que tem sido a recepção do público, entre diferentes espaços, na Bélgica, aqui em França?
José Mavà: Conseguimos medir isso através do feedback que temos no final. Obviamente que o nosso trabalho enquanto actores é entregar a mensagem e contar a história. Não nos prendemos apenas às reações. Porque cada pessoa digere a informação à sua maneira, não é? Mas devo dizer que todos os sítios são diferentes. Até mesmo cada sessão é diferente, porque é um espectáculo vivo, orgânico, onde procuramos também novas formas de contar a história. Então cada representação é diferente devido ao público, mas nós também nos tornamos diferentes... Isso também dá uma certa magia ao espectáculo.
RFI: O José é angolano e esta peça viaja por várias cidades europeias. Falamos de seis pontos geográficos diferentes. Como é que a sua própria história se inscreve nesta geografia da diáspora africana?
É curioso que me faça esta pergunta porque é algo que me questiona desde o início. De que forma é que eu, enquanto descendente de pais angolanos e congoleses, tenho essa cultura em mim? Como é que me insiro nesta realidade? E como é que eu moldo esta masculinidade para poder interpretar as personagens que interpreto? E a verdade é que, tendo em conta que todos nós somos homens negros em palco e uma mulher negra, conseguimos então partilhar as mesmas histórias. Chegamos a um ponto no ensaio em realizamos: "o que tu sentes é o que eu sinto, eu também já tive essa experiência antes", então não senti uma alienação. Porque um homem negro é um homem negro e no final do dia é isso que acontece, não é?
RFI: Somos o que somos. Este texto joga-se com línguas, com sotaques, com ritmos. Como é que trabalhou essa musicalidade?
José Mavà: Trabalhei essa musicalidade com os meus colegas. O elenco é composto por várias nacionalidades: do Senegal, dos Camarões, da Costa do Marfim. Então, o apoio dos meus amigos, dos irmãos e das irmãs que tenho aqui, foi incrível. Houve investimento de todos para que existisse esse grau de rigor e de veracidade nas coisas de que falamos. Depois depende muito das abordagens, não é? Quando eu olho para uma personagem do Senegal, de que forma é que me consigo relacionar com o Senegal? O que torna esta peça rica é também a diferença que existe não só na identidade de cada pessoa, mas também na multiplicidade de culturas que existem no continente africano. E é basicamente nisso que nos fincamos muito.
RFI: É isso que gostaria que o público levasse consigo, além, claro, do espetáculo e do que está em cena?
José Mavà: Sim, eu gostaria muito que o público nos visse enquanto seres humanos. Somos seres humanos antes de sermos negros.
RFI: Ainda há muito trabalho a fazer quanto a isso.
José Mavà: Estamos a caminhar... E é essencial que este tipo de trabalho exista. Para que possamos devolver o orgulho e ressignificar a identidade africana, mas também para mostrar que somos humanos. Temos histórias que são universais e pelas quais toda a gente passou, num certo momento.
RFI: Quanto à questão do olhar sobre a masculinidade... Pouco se fala de masculinidade e aqui vocês são 11 em palco, e com uma mulher. E a peça acaba precisamente com um diálogo entre um homem e uma mulher. Que mensagem pretendem passar? Que na masculinidade existem mais fragilidades do que se pensa?
José Mavà: Quero deixar isso ao critério de quem vê a peça. Mas é algo que pensámos bastante, a forma como a masculinidade é vista... Como disse no início, existem poucos espaços para que o homem, ou a energia masculina possa ser vulnerável. Talvez porque a sociedade tem já definidas as formas como um homem deve ser. Um homem deve ser forte. O homem tem que ser trabalhador. O homem tem que ser o provedor. Mas no final do dia acho que a pergunta é: quem somos nós?
RFI: Um homem também pode ser sensível?
José Mavà: Claro... Aliás, acho que é a sensibilidade que move, que faz avançar as coisas e a forma como deixamos que estas questões ou dúvidas, medos ou angústias, nos toquem. Estas questões fazem-me sentir sensível. E como é que respondo a essa sensibilidade? E voltamos à mesma pergunta: quem sou eu, quando sinto esta sensibilidade?
By RFI PortuguêsEm Barber Shop Chronicles, o dramaturgo nigeriano-britânico Inua Ellams transforma as barbearias africanas e afro-europeias em verdadeiros teatros do dia-a-dia. De Lagos a Londres, de Kinshasa a Acra, esses barbershops tornam-se bancos de escola onde se aprende a ser homem, confessionários onde se depositam raivas e ternuras, praças públicas onde a palavra circula como uma bola de futebol. A peça esteve em cena no MC93 – Maison de la Culture de Seine-Saint-Denis, em Bobigny, um dos centros teatrais mais importantes da região parisiense.
Há lugares onde se corta o cabelo — e outros onde se refaz o mundo. Em Barber Shop Chronicles, o texto é ritmado, cheio de humor e de humanidade. Fala-se de identidade, de masculinidade, de diáspora — mas também de música, de cumplicidade e de alegria partilhada entre homens africanos. Na peça, a barbearia torna-se um espaço de palavra, quase um refúgio. Entre os 12 intérpretes, o actor José Mavà, franco-angolano, dá corpo a várias vozes.
RFI: Para si, o que é que um barber shop revela do íntimo masculino, sobretudo em culturas africanas onde, tantas vezes, falar de si é um gesto contido?
José Mavà: Vejo os barber shop como um sítio para refúgio, sim. Refúgio esse que muitas vezes não conseguimos encontrar em espaços convencionais e públicos. Existe este lugar e espaço para sermos completamente vulneráveis. O barber shop pode ser um confessionário, a nossa psiquiatria. Podemos aprender filosofia e até mesmo religião numa barber shop ! É interessante como tudo converge dentro deste espaço. Todas as conversas convergem e conseguimos, da mesma forma, ter uma certa dualidade entre o sério e o brincar.
RFI: Sente-se esta dualidade ao longo das duas horas desta peça?
José Mavà: Sim, certamente. É algo que tentamos sempre partilhar. Lá está, um barber shop é também um local de partilha.
RFI: Houve partilha na escrita da dramaturgia, entre os 12 intérpretes em cena e com o dramaturgo?
José Mavà: Sim. A versão francesa desta peça foi readaptada para uma realidade francófona e foi feita pelo Junior Akweti. Ele é residente na Bélgica e simplesmente pegou no texto original de Inua Ellams. Obviamente que houve adaptações porque deparámo-nos com outras brincadeiras pelo meio, outras nuances, outros ritmos e dinâmicas. Mas a dramaturgia não foi partilhado unicamente pelos directores. Encontrámos sempre uma forma de estarmos na horizontal. Foi uma porta aberta para partilharmos aquilo que sabemos fazer melhor e com isso criar esta adaptação em conjunto que é a Barber Shop Chronicles.
RFI: Esta peça tem viajado desde o início de Outubro, como é que tem sido a recepção do público, entre diferentes espaços, na Bélgica, aqui em França?
José Mavà: Conseguimos medir isso através do feedback que temos no final. Obviamente que o nosso trabalho enquanto actores é entregar a mensagem e contar a história. Não nos prendemos apenas às reações. Porque cada pessoa digere a informação à sua maneira, não é? Mas devo dizer que todos os sítios são diferentes. Até mesmo cada sessão é diferente, porque é um espectáculo vivo, orgânico, onde procuramos também novas formas de contar a história. Então cada representação é diferente devido ao público, mas nós também nos tornamos diferentes... Isso também dá uma certa magia ao espectáculo.
RFI: O José é angolano e esta peça viaja por várias cidades europeias. Falamos de seis pontos geográficos diferentes. Como é que a sua própria história se inscreve nesta geografia da diáspora africana?
É curioso que me faça esta pergunta porque é algo que me questiona desde o início. De que forma é que eu, enquanto descendente de pais angolanos e congoleses, tenho essa cultura em mim? Como é que me insiro nesta realidade? E como é que eu moldo esta masculinidade para poder interpretar as personagens que interpreto? E a verdade é que, tendo em conta que todos nós somos homens negros em palco e uma mulher negra, conseguimos então partilhar as mesmas histórias. Chegamos a um ponto no ensaio em realizamos: "o que tu sentes é o que eu sinto, eu também já tive essa experiência antes", então não senti uma alienação. Porque um homem negro é um homem negro e no final do dia é isso que acontece, não é?
RFI: Somos o que somos. Este texto joga-se com línguas, com sotaques, com ritmos. Como é que trabalhou essa musicalidade?
José Mavà: Trabalhei essa musicalidade com os meus colegas. O elenco é composto por várias nacionalidades: do Senegal, dos Camarões, da Costa do Marfim. Então, o apoio dos meus amigos, dos irmãos e das irmãs que tenho aqui, foi incrível. Houve investimento de todos para que existisse esse grau de rigor e de veracidade nas coisas de que falamos. Depois depende muito das abordagens, não é? Quando eu olho para uma personagem do Senegal, de que forma é que me consigo relacionar com o Senegal? O que torna esta peça rica é também a diferença que existe não só na identidade de cada pessoa, mas também na multiplicidade de culturas que existem no continente africano. E é basicamente nisso que nos fincamos muito.
RFI: É isso que gostaria que o público levasse consigo, além, claro, do espetáculo e do que está em cena?
José Mavà: Sim, eu gostaria muito que o público nos visse enquanto seres humanos. Somos seres humanos antes de sermos negros.
RFI: Ainda há muito trabalho a fazer quanto a isso.
José Mavà: Estamos a caminhar... E é essencial que este tipo de trabalho exista. Para que possamos devolver o orgulho e ressignificar a identidade africana, mas também para mostrar que somos humanos. Temos histórias que são universais e pelas quais toda a gente passou, num certo momento.
RFI: Quanto à questão do olhar sobre a masculinidade... Pouco se fala de masculinidade e aqui vocês são 11 em palco, e com uma mulher. E a peça acaba precisamente com um diálogo entre um homem e uma mulher. Que mensagem pretendem passar? Que na masculinidade existem mais fragilidades do que se pensa?
José Mavà: Quero deixar isso ao critério de quem vê a peça. Mas é algo que pensámos bastante, a forma como a masculinidade é vista... Como disse no início, existem poucos espaços para que o homem, ou a energia masculina possa ser vulnerável. Talvez porque a sociedade tem já definidas as formas como um homem deve ser. Um homem deve ser forte. O homem tem que ser trabalhador. O homem tem que ser o provedor. Mas no final do dia acho que a pergunta é: quem somos nós?
RFI: Um homem também pode ser sensível?
José Mavà: Claro... Aliás, acho que é a sensibilidade que move, que faz avançar as coisas e a forma como deixamos que estas questões ou dúvidas, medos ou angústias, nos toquem. Estas questões fazem-me sentir sensível. E como é que respondo a essa sensibilidade? E voltamos à mesma pergunta: quem sou eu, quando sinto esta sensibilidade?

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