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Binelde Hyrcan: “A arte é como um colete à prova de bala”


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O artista angolano, Binelde Hyrcan, nome incontornável da arte contemporânea angolana, regressa ao centro das atenções com um feito simbólico: a sua video-instalação Cambeck passou a integrar a coleção permanente do Brooklyn Museum, em Nova Iorque. A obra, criada em 2010, quando ainda era estudante, ganha agora nova vida e significado num dos maiores museus do mundo. Em entrevista, o artista revela-nos as raízes, os contextos e as metáforas por trás desta peça feita de areia, palavras e sonhos infantis.

“Queria contar um pouco da minha história”, começa por explicar Binelde. “Na altura eram temas não muito positivos, porque muita gente onde eu vivia estava a ser enviada para uma outra zona que é o actual Zango.” Foi neste ambiente de deslocação e incerteza que surgiu Cambeck, uma instalação onde quatro crianças brincam na areia, desenhando com palavras e gestos os contornos de um futuro idealizado. “Peguei nessas crianças, porque são as mais reais. Acho que elas transmitem mesmo a realidade, também a pureza do contexto que estavam a viver”, descreve.

O vídeo, apesar de ter mais de uma década, permanece de uma actualidade inquietante. “O tema abordado é a imigração. Muitos de nós africanos temos o sonho de atravessar o Mediterrâneo ou o Atlântico para ir para a América”, conta. “E hoje estamos a viver um parêntese muito triste, ao meu ver, com os imigrantes nos Estados Unidos que são reenviados para os seus países de origem, onde não têm quase nenhuma raiz”. Cambeck surge, assim, como uma denúncia subtil e poética, mas também como um espelho da realidade global. “Os miúdos sonham naquela América… E nós todos já conhecemos como é que está a ser a realidade para essas pessoas que têm sonho”.

Ao filmar crianças a conduzirem sonhos numa viatura imaginária desenhada no chão, com areia, Binelde Hyrcan criou uma metáfora sobre desigualdade social. Questionado se a arte pode ser um veículo real de mobilidade ou apenas um espaço de evasão, responde: “A arte é como um colete à prova de bala. Hoje estamos a ver a guerra na Palestina, e pouca gente reage sobre essa situação, também por causa da falta de disseminação cultural. [...] Se amanhã alguém tentar bombardear o Rio de Janeiro, todo o mundo dirá: ‘Não, meu Deus, é o país do Neymar, do samba’. Mas se falarmos da Palestina… é só mais um morto”.

Binelde Hyrcan defende a cultura como “colector verbal”, um escudo contra a indiferença e a violência. “Hoje, sei que há um ponto dentro daquele museu onde se diz Angola, onde se vão ver aqueles miúdos a brincarem com um potencial incrível. E vamos talvez descobrir que também nesse país há vida simplesmente”, sublinha.

O artista, conhecido por obras provocadoras como As Galinhas Imperiais ou os célebres “tronos de excremento”, mistura o absurdo, a crítica e o humor como estratégias de resistência e esperança. “A ironia é a última coisa a morrer”, acrescentando que acredito "no povo africano, acredito na juventude africana. Lanço o apelo para que nos mantenhamos juntos e solidários, porque é a única forma que temos de fazer algo”.

Fazer arte em Angola, admite, é um desafio: “Se não fosse difícil, não teria mesmo poesia. Nasci em tempo de guerra e hoje tenho um olhar diferente perante a sociedade, perante a vida. Vamos tentar tirar aquele lado positivo das derrotas que às vezes temos enquanto crianças.”

Além do sucesso internacional com Cambeck , Binelde Hyrcan acaba de inaugurar em Luanda a sua escultura Yellow Dream, uma composição de bidões e balões amarelos que simboliza o sonho e a resistência. “Quando vemos balões no chão é porque a festa acabou. Mas os balões deveriam estar no ar. É como se dissesse: ainda há um problema a resolver. E o sonho continua”.

Actualmente a preparar uma grande exposição no Palais des Papes, em Avingnon, para 2026, onde voltará a apresentar Cambeck , o artista angolano antecipa também o lançamento do seu livro sobre a caminhada épica que fez, a pé, entre Lisboa e Paris. “A cultura é uma plataforma onde as pessoas esquecem o mal”, acredita com convicção.

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