De lá além-mar
Onde a colônia afundava a todo vapor nas dívidas do tesouro
Faltava farinha para fazer o pão
Na ilha de Marias, onde a comida se cozia no buraco do vulcão
Cansada da falta de pão
E do marido alcoólatra
Capaz de mergulhar de escafandro pra consertar casco de navio sem saber nadar
Para poder no fim do expediente no álcool se anestesiar de suas melancolias
Maria, com a filha e a máquina de costura
Embarcou no navio que levava além mar
Com a promessa de uma terra dourada
E fartas oportunidades de trabalho
Desembarcou direto no cortiço.
Maria pequena foi recebida na escola pela zombaria por conta de seu sotaque
Porque o laço verde e amarelo se não é brasileira? É preciso que se prove a pátria.
Qual seria o tamanho da pátria para uma menina do arquipélago.
Não foi longe nos estudos
Cedo teve que trabalhar na cozinha junto da mãe
Se equilibrando em ponta de pé numa cadeira na beira do fogão
Quando a menina Maria completasse 16 estaria pronta para o casamento!
Tudo bem arranjado com o português afilhado, dez anos mais velho, dono do armazém
Ela recordará do dia em que ele ofereceu um sonho da vitrine, como se fosse a prova de que era amor.
Maria seguiu seu destino de Maria
Cozinhou, lavou, limpou, engomou, cuidou, serviu, reproduziu a vida cotidianamente. Sem se atrasar.
Teve filhos, dois que vingaram
Os outros foram abortados a mando do marido
Não era na boa hora dos negócios
Viraram mágoa e lágrima seca
Lá pelas tantas nasceu o cravo
Filho pequeno de saúde frágil
Tão delicado que se despedaçava a cada novo amor
Sonhava em viver do que a terra produz
Colocar a mão na enxada pra depois colher o fruto
Foi esmagado pelas máquinas da fábrica do pai e herdou só o desgosto e a falência
Colheu rosas e se furou em espinhos
Depois do desemprego se rendeu
Virou assalariado do agronegócio
Ele, que não é Maria, mas se atravessa por um feminino a flor da pele. Meu pai.
Já minha mãe, também Maria
Filha de imigrantes italianos
Cresceu no centro da capital
Na parte alta da avenida
Conheceu a vastidão do mundo
De toda a sorte dos desejos
Até que um golpe da vida tirou sua mãe e lhe quebrou os ossos. Ficou paralisada em uma cama por mais de um ano.
O que não se movimentou
Virou transbordamento tempos depois
Maria perdeu a cabeça
Em algum lugar entre si e sua maternidade
Seu desamparo e sua solidão
Seu desamparo e sua solidão
Sua amargura e sua raiva da vida
Sua rotina rígida e mecânica
Sua exigência
Do mínimo e minucioso ato de excelência
Tudo está no lugar
O relógio, a roupa, a cortina, o tapete, o sal,
Menos o afeto.
Desse mar eu nasço
Com a promessa de ser um presente da folia de reis
Um acaso não planejado do destino
Que agora mexe no passado como quem não tem medo de dizer o não-dito e o maldito para que não se repita.
Poema de Marcela Cavallari
Interpretação: Marcela Cavallari
Arte Elis e Allan
Apoio Coletivo Cultural Vianinha
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Allan Brasil - Desenhista e Instigador
Elis Alonso - Poetisa,Design e Palhaça
Michel Viana - Escritor e Poeta da Periferia
Luis - Provocador e Parceiro
Marina Lima - Articulação e Pesquisa
Alexandre Barbosa de Souza - Poeta e Tradutor
Roy - Poeta e Filósofo
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Poesia e pensamento crítico andando de mãos dadas!