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By Andre Ramos
The podcast currently has 11 episodes available.
I
Há dez anos andava obstinado pela novidade. Era o tempo de passar tempo extasiado pelos diplays do quiosque à procura da mais fresca publicação de arquitectura, interiores ou lifestyle. Os filmes (sempre da europa central) passavam-me do prazo de validade se tivessem estriado em sala há mais de três anos. As galerias de arte contemporâneas eram o meu espaço primaz de desejo. A autoria teria de ser minha contemporânea ou eu não seria um homem do meu tempo. Na sequência, co-fundei uma loja de design português de autor, onde na sua idiossincrasia, podia tocar a novidade em pré-produção, antes de partir para o forno. Como se estes escritos não servissem outro propósito senão a confissão, confesso: hoje, já pouco disto me interessa particularmente
II
Nos anos sessenta, década de tudo, o Concílio Vaticano II iluminou-nos com a ideia do aggiornamento: era necessária uma actualização do cânone. Motivo: sobrevivência do processo de decadência. O Ocidente, em declínio há dois mil anos, precisava de decair mais lentamente. Eis uma definição de aggiornamento: a demora na decadência - algo que estou particularmente a precisar. Ano e meio de peste desactualizou-me. “Tens de te reinventar”, ouve-se como mantra pós-moderno da volatilidade e da volúpia dos mercados. “Go online or go home”. Prefiro hoje sempre regressar resignado ao tugúrio do filósofo do que embarcar, à vista, pelos caminhos deslumbrados da desumanização do ocidente...
I
No Domingo passado, o Manuel Graça Dias faria 68 anos. Na noite de 25 de Março de 2019 – num tempo em que ainda não pulicava - após saber da sua morte, não consegui dormir e escrevi isto:
II
Interessa-me particularmente esta ideia do atelier enquanto “espaço de pensamento mais do que um espaço de projecto”. É certamente um interesse por demissão. Aos 36 ainda não consegui projectar-me um atelier de projecto. Estes espaços fragmentados onde me movo: um apartamento, duas lojas, uma cave destruturada ao estilo arquivo-funcional e um site (aos quais acrescento a cidade) são lugares competentes para se modelar um atelier de pensamento, mas não um atelier de projecto. Será ainda cedo para o cumprir?
III
Qual é a idade certa para um arquitecto começar a ser arquitecto? Não me lembro de ter ouvido a resposta nos programas do Graça Dias dos anos noventa. Bem, convenhamos: eu já tenho duas obras, ou ainda, eu só tenho duas obras. O Kahn começou aos quarenta. Ainda há tempo! Ainda o apanhamos! E tivemos sempre direito a virtuosas desculpas: a crise dos subprimes, a globalização, a falta de gosto generalizada e agora a peste. Quando a peste acabar. Ai quando a peste acabar, não falto a uma festa! Ai não que não falto – está-se tão bem em casa. Para um introvertido “sair da escrita para o mundo civil é de um encantador aborrecimento”. A Sílvia que vá e nos encontre clientes, abusando desta técnica milenar da conversa entre copos. Precisamos tanto que regressem os estereótipos do anos noventa!
IV
O Manuel Graça Dias, ao contrário de mim, era sedutor, desconcertante e excêntrico. Caro Manuel, bem sei que deveria encontrar outras referências, mais em conta com o meu chame discreto, mas a bem da verdade, ou melhor, a bem da memória, acho que prefiro mudar de temperamento do que o ídolo. Vamos a isso?
I
Caro Alberto Campo Baeza, perdoe-nos o nosso despropósito de ontem. Bem sabemos, que as boas-práticas exigem o melhor rigor, mas sabemos também, que o melhor rigor pode por vezes acompanhar-se de algum aborrecimento e precipitar rápidos e inevitáveis desfechos. BM, arquitecto e investigador universitário do nosso grupo, não acorreu prontamente à minha provocação inicial. Deixou-nos discorrer livremente pela leviandade da observação-instantânea. E aguardou. Quando sentiu sabiamente ser o momento, apresenta-nos uma ferramenta que todos optámos por, sabiamente também (aqui repete-se, veremos porquê) negar: o livro. (ler mais)
I
Caro Alberto Campo Baeza, a Ofhouses publicou recentemente uma reportagem fotográfica da sua Casa Garcia Marcos (1991) em Madrid, onde, numa surpreendente imagem aérea podemos ver um pequeno telhado. Vicissitudes dos tempos, modernamente, fiz um print-screen e partilhei naquilo a que hoje chamo: o grupo, para o caso, um conjunto de arquitectos (e seus derivados) unidos por uma sala de chat numa rede social, que aconchega existências tão próximas como distantes, cuja crise de dois mil e oito fez originar e esta nova crise faz perpetuar.
II
Outrora, Caro Alberto, uma mesa de café resolvia a questão (ou ainda uma sala de jantar mais abonada). Mas hoje, em tempos de tecno-feudalismo pandémico, resignamo-nos aos possíveis para o nosso debate ideológico. Na legenda que acompanhou a colagem, assumi a minha surpresa-caricatural: “O Baeza tem telhado!!! O horror!!”. A provocação ficava por aqui. Em diante, seguiu-se uma virtuosa e responsável discussão n´o grupo sobre o porquê do seu pequeno telhado. (ler mais)
I
“A pandemia trouxe uma reacção que me espantou: a facilidade com que se obedeceu”. José Gil - a mesma perplexidade que tenho sentido - e um espanto com (finalmente) direito a prime-time televisivo. Mais do que a facilidade em obedecer, é a facilidade com que se pede para obedecer. 2020: o ano da súplica. Face ao medo, o ser humano precipitou-se, irreflectidamente, para fora-de-si (em uníssono). O Eu entra no carril de uma multidão assutada, impulsiva, sem rosto, que apenas quer continuar, biologicamente, viva. “Que força é essa? Que só te serve para obedecer? Que só te manda obedecer?” 2020, o ano em que percebeste como era tão fácil deixares-te seduzir pelas delícias da paranóia e embarcaste, sem destino, com essa turba alucinada.
II
Quanta da tua liberdade és capaz de prescindir em troca de segurança? Dúvida antiga, repisada. Em 2020, toda a liberdade em troca de segurança – movimento, toque, rosto, escolha – nenhuma liberdade é melhor que a morte: concluiu-se (há mais hipóteses). 2020, o ano onde o que mais importou foi o coração bater. O grau zero é um coração a bater: de um escravo ou de um entretido em streaming – o batimento continuo, ritmado e copiado, da vida. 2020, o ano em que se contou mortos e feridos como se estivéssemos a jogar. (ler mais)
I
Há uma frase extraordinária do Teixeira de Pascoaes que diz qualquer coisa como “sem uma concepção poética da vida, o nosso planeta seria apenas um refeitório e um cemitério”. Parece fácil resumir-nos: um refeitório e um cemitério. Há dez meses que o nosso planeta é apenas um refeitório e um cemitério. Demasiado tempo para a caricatura da manta curta: ora destapamos os pés, ora descobrimos a cabeça; e se por vezes nos envolvemos com a manta torta, continuamos cheios de frio – no corpo todo. Os pés são a economia e a cabeça é a saúde. Com a economia, caminhamos para o refeitório, com a saúde fugimos do cemitério. E mais?
II
Dez meses de desvitalização. Gosto do conceito de desvitalização – usa-se no dentista (e os dentes, no sonho, ligam-se à morte). Desvitalizadas, as cidades, aproximam-se do refeitório de quatro em quatro horas. Desvitalizadas, as cidades, desunham-se para escapar ao cemitério. Em dez meses, um sonho humano que cumpre apenas o prato e o caixão. Só. E mais? Não há mais? (ler mais)
I
Hoje é o dia 50 daquilo que chamei o Confinamento da Cultura e do Lazer. Amanhã, acho que vou ao Teatro. Por 2€, espera-me Godot no TNSJ. Talvez vista uma camisa lavada. A Sílvia talvez se maquilhe. Como é às 19h e pensámos em fazer Polvo à Algarvia, vamos deixar previamente os ingredientes inertes e desalinhados na pequena mesa de apoio, não vá encontrarmos alguém conhecido à saída, que nos atrase o banquete para dois. Poderá ser longo o caminho da sala para a cozinha! Andamos há um ano nisto - e a tentar evitar simulações de Cultura. Mas amanhã não, amanhã vou ao Teatro – se é que se pode chamar Teatro a este disfarce virtual para tempos de peste... (ler mais)
I
“Nenhum tipo de encontro é permitido nem entre amigos, nem entre familiares alargados, mesmo dentro de casa”. Herbert e Faye telefonam-se, sem câmara. “Os encontros sociais estão limitados a duas pessoas, se forem de diferentes agregados familiares”. Herbert e Faye não são agregados. “Estão encerrados museus, teatros, cinemas, jardins zoológicos e parques de diversões.” Herbert confia no algoritmo para se cultivar. Faye gosta de ler. “É necessário pedir autorização às autoridades de saúde para sair de casa, enviando para o efeito uma mensagem”. O telemóvel de Faye caiu. Herbert comprou-lhe um, online. “Zonas vermelhas, laranja e verdes: assim se encontra dividido o território”. A zona de Faye é azul. Herbert é daltónico. “É proibido dormir em hotéis se não for por razões profissionais”. Herbert está desempregado. Faye nunca dormiu num hotel. “Todas as viagens consideradas não essenciais foram desaconselhadas”. Faye gosta de ir ver o mar. Herbert não sabia... (ler mais)
I
Dias de desalento. Passada a novidade eufórica e seduzida a esperança, cabe ao desalento ocupar-se do espaço pandémico colectivo. A peste já enche espaço material para além do digital. A sempre prosaica melancolia não se digna a aparecer hoje? É suficiente - o momento de troca - como passagem de testemunho. Sai o desarmado desalento, entra a melancolia criativa. Substituição. Processo de recuperação sem intervalo. Fulminante. Sai o desarmado desalento, entra a melancolia criativa. Mas o desalento é lento e de ambíguo auto-reconhecimento; e a melancolia nenhum raio súbito de cura, senão mero processo preguiçoso de ir de ali para aqui e aqui se ficar. Sou melancolia e estou muito bem, obrigado por perguntares. Há sete minutos era desalento numa procura entretida. Há dias em que perder tempo quer mesmo dizer tempo perdido.
II
E hoje, não vais citar nada, não? Tenho de me organizar. Com a regularidade com que escrevo textos, preciso da minha própria base de dados, não é? Isto da memória aos trinta e seis. E depois há a inercia, o levantar, o pegar no livro... (ler mais)
Vivemos em temos mais favoráveis à melancolia do que à utopia. Se a melancolia é especialmente importante para o processo criativo, não é menor o prestígio da utopia para o processo de cura. O sec. XX encarregou-se de nos mostrar a repugnância – nova palavra de ordem – das concretizações dos processos de esperança.
O mercado está para ficar: repelimos a utopia ao ponto de repetirmos, constantemente, a evidencia da possibilidade do fim do mundo e não equacionarmos o fim do capitalismo. Mesmo quando a peste nos mostra tão bem as debilidades do demiurgo, a nossa fé move-nos em direcção ao regresso do mês passado, recalcando a sabedoria que a última crise nos ensinou...(ler mais)
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