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Livro que abalou ditadura portuguesa tem nova tradução em França


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Mais de meio século depois da publicação do livro que abalou a ditadura portuguesa, “Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, há uma nova edição em francês. “Nouvelles Lettres Portugaises” é uma tradução de Ilda Mendes dos Santos e Agnès Levécot e espera fazer redescobrir a intemporalidade de uma obra que foi revolucionária. A RFI conversou com Agnès Levécot neste programa.

Eu acho que, naquela altura, em Portugal, não era nada estranho que este livro tivesse esse efeito de bomba”, contava à RFI, há um pouco mais de um ano, Maria Teresa Horta, uma das autoras das “Novas Cartas Portuguesas”, que nos recebeu, em sua casa, em Lisboa, nas vésperas dos 50 anos da Revolução dos Cravos e que nos deixou em Fevereiro de 2025, aos 87 anos.

A obra de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, publicada em 1972, foi uma revolução literária e feminista que denunciou ao mundo o regime fascista português, o colonialismo, o racismo, o machismo, a violência sobre as mulheres, ao mesmo tempo que subvertiam as noções de autoria e de género na literatura.

A ditadura do Estado Novo considerou o livro como “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”, abrindo um processo judicial contra as escritoras que ficaram ameaçadas com uma pena entre seis meses a dois anos de prisão. Seguiu-se uma onda de solidariedade internacional e o livro chegou a todo o mundo, incluindo a França, onde em 1974 é publicada a tradução de Monique Wittig e Evelyne Le Garrec.

Mais de meio século depois, e perante uma edição há muito esgotada, surge agora nova tradução, “Nouvelles Lettres Portugaises”, de Ilda Mendes dos Santos e Agnès Levécot, editado pela Ypsilon, que chega às livrarias francesas a 7 de Maio e que é apresentada esta sexta-feira, 25 de Abril, em Paris.

Fomos conversar com Agnès Levécot para perceber “o que podem [ainda] as palavras” das Três Marias.

Essa é uma pergunta complicada porque as próprias escritoras, as três, no fim do livro, ainda fazem a pergunta. Realmente um dos aspectos literários desta obra é o questionamento do acto da escrita e até ao fim, nas últimas cartas, elas continuam a pôr a questão ‘o que podem as palavras?’ Quanto a nós, como tradutoras, chegámos à conclusão também que todos os aspectos políticos e históricos que são denunciados nas cartas continuam actuais. Esse é o problema. A questão do colonialismo continua actual. A questão da repressão continua. A questão feminista também. Estamos a ver, no mundo actual, um retrocesso em relação a esse aspecto. Portanto, continua completamente actual”, explica Agnès Levécot.

Em plena ditadura, “Novas Cartas Portuguesas” era uma obra literária inédita que esbatia noções de autoria e de género e que era assinada colectivamente por três autoras que escreviam, sem tabus, sobre o corpo, o desejo, mas também sobre a violência de que eram vítimas as mulheres. Denunciavam, ainda, a guerra colonial, a pobreza, a emigração, a violação sexual, o incesto, o aborto clandestino. O livro era, assim, um perigo para o regime repressivo, retrógrado e fascista português. Pouco após o seu lançamento, em 1972, os exemplares foram recolhidos pela censura e o Estado português movia um processo judicial contra as “Três Marias”. Perante as ameaças de prisão e a tentativa de silenciamento das autoras, nasce um movimento de solidariedade internacional. Meses depois de ter sido publicado, em 1972, o livro chega às mãos da escritora francesa Christiane Rochefort e, através dela, ao grupo feminista Movimento de Libertação das Mulheres. Seguem-se várias acções de luta, nomeadamente em França, e que envolvem nomes como Simone de Beauvoir e Marguerite Duras. Há distribuição de panfletos, recolha de assinaturas para um abaixo-assinado entregue na Embaixada de Portugal em Paris e uma procissão de velas diante da Catedral de Notre-Dame. Outro momento emblemático é a leitura-espectáculo “La Nuit des Femmes”, a 21 de Outubro de 1973, no Palais de Chaillot, em Paris, que deu origem ao documentário “Les Trois Portugaises”, de Delphine Seyrig (1974).

Monique Wittig e Evelyne Le Garrec pegaram no texto e fizeram uma primeira tradução que foi publicada em 1974. Entretanto, tinha havido excertos traduzidos para artigos e espectáculos porque houve uma série de espectáculos e movimentações de apoio às Três Marias quando estavam no julgamento. Houve uma noite que ficou muito famosa que foi ‘La Nuit des Femmes’ em que leram alguns excertos”, relembra Agnès Levécot, sublinhando que “o aspecto literário quase não foi abordado na altura”.

O aspecto literário é precisamente “uma coisa fora do comum”, acrescenta a especialista em literatura lusófona. Três mulheres escrevem colectivamente uma obra literária e política, depois de terem publicado livros que não agradaram à ditadura patriarcal portuguesa. Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno tinham lançado, em anos anteriores, livros que denunciavam a opressão e a secundarização da mulher: Maina Mendes (1969) e Os Legítimos Superiores (1970). Em 1971, Maria Teresa Horta também publicava Minha Senhora de Mim e escrevia abertamente sobre o desejo, algo considerado escandaloso pelos fascistas.

“São três mulheres que já eram escritoras, que já tinham publicado obras bastante feministas, que se juntaram e decidiram escrever um livro a três. Começaram a reunir-se todas as semanas num restaurante em Lisboa. Todas as semanas traziam um texto que elas tinham escrito e trocavam ideias a propósito dos textos, mas não os modificavam. A certa altura, começaram a pensar na figura de Mariana Alcoforado, a religiosa portuguesa, e começaram a escrever cartas. Globalmente, são chamadas cartas, mas não são só cartas, tem vários géneros: poesia, ensaios, supostos artigos de jornal, textos teóricos... Elas escreveram cartas a uma Mariana, mas são as descendentes de Mariana, ou seja, as várias Marianas que vieram depois. Portanto, têm cartas de vários séculos a acompanhar o percurso de uma suposta Mariana”, acrescenta Agnès Levécot.

No posfácio de “Nouvelles Lettres Portugaises”, Agnès Levecot e Ilda Mendes dos Santos recordam, justamente, a importância da figura de Mariana Alcoforado, suposta autora das “Cartas Portuguesas”, de 1669, “apresentada por alguns como o arquétipo da mulher portuguesa” e a partir da qual “as Três Marias trabalham a questão da autoridade e do poder, o exercício da violência e da dominação, assim como, o poder da palavra”.

Agnès Levecot, que já tinha participado no livroNovas Caras Portuguesas entre Portugal e o Mundo, que foi publicado depois de uma pesquisa internacional sobre a recepção das "Novas Cartas Portuguesas" no mundo, foi convidada por llda Mendes dos Santos para se juntar a ela na tarefa de traduzir a obra.

As principais dificuldades estavam no facto de serem textos completamente diferentes do ponto de vista do género, da tonalidade, da língua usada. Portanto, temos textos a imitar o estilo do século XVII ou XVIII, e aí a Ilda teve um papel muito importante porque ela trabalha muito sobre esses séculos. Foi sobretudo adaptar-se, tentar encontrar um estilo para cada momento e cada época. Depois, nós íamos oferecer uma tradução francesa a franceses e forçosamente tínhamos que encontrar uma maneira de passar certos elementos históricos, geográficos, políticos para o público francês perceber, porque são textos que estão muito impregnados de referências intertextuais portuguesas e internacionais de textos muito conhecidos e outros muito menos conhecidos, mas bem conhecidos dos portugueses. Referências políticas, nomes também, ou seja, elementos que nos levaram a acrescentar 200 e tal notas no fim do livro”, acrescenta.

“Nouvelles Lettres Portugaises” chega às livrarias francesas a 7 de Maio e é apresentada esta sexta-feira, 25 de Abril, na livraria Les Nouveautés, em Paris. Uma data simbólica para Agnès Levécot que estava em Portugal no 25 de Abril de 1974 e ainda guarda, em casa, um cravo desses tempos revolucionários que marcariam, para sempre, o seu percurso pessoal e profissional.

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