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Márcio Carvalho: "Estrutura colonial está tão enraizada que já não se vê"


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O artista português Márcio Carvalho participou pela primeira vez na mais importante feira de arte contemporânea africana europeia, AKAA - Also Know as Africa, em Paris. Márcio Carvalho apresentou os projectos "Falling Thrones" e "Memories for 14 busts", sobre memória e espaço público em torno de temáticas pós-coloniais.

RFI: Participa pela primeira vez na feira de arte e design africanos AKAA - Also Know as Africa. Que obras apresenta?

Márcio Carvalho: Eu estou a apresentar trabalhos em desenho de duas séries que eu tenho estado desenvolver desde 2021. Uma delas chama se Falling Thrones e a outra chama se Memories for 14 busts. Ambos os trabalhos têm que ver com memória e espaço público. Como é que nós recordamos enquanto corpos biológicos, mas também como nos recordamos enquanto corpos colectivos? Tipo um hipocampo colectivo social e como é que nos recordamos do nosso passado em comum.

Já esteve em exposição em Marselha, no sul de França, na exposição Europa Oxalá, uma exposição que percorreu vários países. Uma exposição que falava desta temática que o acompanha, que é a questão da memória.

Foi uma exposição incrível na qual participei, tive todo o orgulho de trabalhar com esta série de artistas incríveis, com os curadores também incríveis António Pinto Ribeiro, Aimé Mpane, Katia Kameli. Foi muito interessante não só expor, mas também ter a oportunidade de debater com eles este tipo de temáticas pós-coloniais, não só na ideia de trazer de volta as teorias pós-coloniais, mas da prática pós colonial. A arte como um veículo de prática pós colonial e de descolonização, seja do território, seja da linguagem de várias frontes. Mas como é que se faz isso na prática?

A questão é essa como é, como é que se faz isso na prática? Como é que se faz isso na arte?

Por exemplo, existe a possibilidade, em Lisboa, de fazer uma contextualização de alguns objectos coloniais que estão num espaço público. E a contextualização nunca pode ser uma coisa feita à porta fechada. Se for feita à porta fechada, o que acontece? Não existe participação da sociedade civil. A arte pode fazer essas pontes com a sociedade civil. Tu não precisas ser literário em arte, tu não precisas ser um expert em arte para poderes interagir com a arte, para poderes participar em projectos artísticos. É esta coisa que a arte pode fazer que é muito interessante, que é trazer esses públicos para dentro, não só do discurso artístico, mas também do discurso político, social, cultural, contextual e dos contextos de onde está a operar.

Por que motivo ainda é tão difícil e se fala de forma tão tímida, de descolonização?

É uma muito boa pergunta. Eu acho que todo o processo de colonização foi um processo que levou centenas de anos a consolidar. No caso de Portugal, através do Estado Novo, houve uma consolidação do colonialismo ainda maior. Houve um género de um forjar da identidade portuguesa indissociável do colonialismo. É uma coisa que perdura até os tempos de hoje. Vivi na Alemanha muito tempo, apresentei trabalho em cinco continentes diferentes e vejo que há muitas frontes, muitos países, muitos contextos que já falam destas coisas há muito tempo.

Portugal ainda está muito atrasado. Porquê? Talvez por isso, porque tivemos uma ditadura durante muitos anos e foi uma ditadura que forjou. Foi propositado criar uma cultura colonial para que o português sinta que sem as ditas descobertas não tem história. Eu não tenho história se não tiver esta parte, o que é errado, porque existe muita história no continente e existe dentro da parte colonial. Existem histórias de interacções entre povos e essas são as histórias que podem ser interessantes, onde portugueses se encontraram com nigerianos, onde portugueses encontraram muçulmanos e se entre-ajudaram para ir ao encontro de espaços que nunca estiveram e ao encontro de culturas que nunca tiveram acesso. Essa poderá ser a história interessante, mas não podemos saltar para essa história antes de descolonizar a história. A história como está nos manuais escolares que as crianças, desde a primária até ao ciclo até ao secundário, andam a aprender ainda hoje.

Tudo começa por ir, pela educação?

Claro, tudo começa por aí. Existem uns projectos interessantes que estão a acontecer em Lisboa e nos quais estou envolvido, com Plano Nacional das Artes, onde existe a ideia de começar exactamente pelos manuais escolares. Estamos a fazer um update. Estamos no século XXI, a Europa está toda engajada nesta ideia de descolonizar, mas na prática e com certeza que temos que começar com os manuais escolares. Eu fiz projectos com crianças, o último projecto que fiz foi com a Gulbenkian, chama-se Lugares. Trabalhámos com 164 crianças de cinco escolas diferentes, fomos a escolas durante nove meses, trabalhámos com estas crianças sobre a ideia de poder, o lugar do poder. Quem é que tem poder, quem é que não tem poder.

O que é que representa o poder?

O que é que representa o poder... Quem é que tem direito ao poder. Estas crianças que são crianças que vêm de montes de sítios diferentes e são descendentes de diferentes culturas, necessitam deste tipo de exercício de pensar no poder, porque eles não se vêem representados na sociedade. Porque a sociedade, o dito português, é um português e uma pessoa de classe média alta, branco que não condiz com a realidade que nós temos hoje, especialmente em Lisboa. Todos os meus amigos que vêm da Alemanha, que vêm da França, chegam a Portugal e dizem 'Uau, isto é incrível! Isto é, parece mesmo uma cidade multicultural'.

Como encontramos aqui em Paris, por exemplo...

Como encontramos aqui em Paris também, claro, e noutras cidades europeias. Como diz António Sousa Ribeiro; 'temos que confrontar a história e temos que mudar a história', mas não se trata apenas de um processo de substituição. Agora substitui-se uma história por outra, não. Temos é que criar uma história nova com estes novos intervenientes que existem hoje, que são tanto pessoas que lutaram nas guerras coloniais, como jovens de 15 a 20 anos de idade que têm coisas a dizer sobre a nossa sociedade.

Propõe uma nova visão da história através da sua arte?

O que proponho é questionar essa arte. Para propor temos de tomar uma posição de quase expertise e o que eu proponho são reflexões através de questões. O que leva logo a um sistema participativo. Não é uma coisa que eu faço sozinho, é uma coisa que tem que ser feito pela sociedade civil. A arte pode ser uma catapulta para isso mesmo. Este projecto que eu tenho, o Falling Throne é sobre como lidar com o espaço público, como lidar com memória no espaço público, como lidar com estas estátuas, estes monumentos e memoriais de cariz colonial. Porque eu lembro-me que em 2010 eu já andava a fazer projectos destes e a tentar fazer qualquer coisa em Lisboa e os meus colegas diziam 'Márcio, porque é que te preocupas com isto?'  e respondia que 'porque isto é invisível'. Ninguém olha para isto e aí está o problema. A estrutura colonial está tão enraizada que tu já não a vês, já faz parte. Essa parte que temos de descolonizar, essa parte que temos que renomear, reavaliar, revisitar.

Quais são as propostas presentes nestas obras?

Eu faço uma brincadeira com os Jogos Olímpicos porque o desporto é uma coisa particular e interessante para mim. Nas guerras tu tens inimigos, não é? Mas no desporto tens oponentes, tu lutas, defendes a tua posição e no final cumprimentas o teu adversário. Que percas ou ganhes cumprimentas sempre o teu adversário. É essa a ideia que eu trago com o meu trabalho. São desportistas olímpicos que tentam disputar novas histórias. Muitas vezes dou-lhes biografias, que são biografias, por exemplo, de Patrice Lumumba, de Josina Muthemba, Dandara dos Palmares. São pessoas que lutaram contra a colonização, especialmente portuguesa, mas também do Congo e são os novos intervenientes da história. Nós temos que saber também as histórias deles para também podermos fazer um género de 'agora vou substituir o herói Vasco da Gama pelo herói Patrice Lumumba' - não é propriamente isso. É mais: vou adicionar as histórias que tenho vindo a aprender desde que sou pequenito e com histórias de pessoas que lutaram pela liberdade dos seus países.

É um facto hoje que nós tivemos liberdade em Portugal porque as guerras de libertação dos povos colonizados, nomeadamente Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, essas pessoas já andavam a lutar para a liberdade dos seus povos. Isso fez com que os nossos tropas entendessem o que era a guerra. O que o Amílcar Cabral disse e muito bem é: "se a empresa colonial portuguesa cai nestes territórios, com certeza que cai também em Portugal". Foi o que aconteceu. Houve aqui um aspecto de colaboração que temos que salientar, hoje, como uma forma também de descolonizar as mentalidades na sociedade.

No outro projecto usa o conhecido tecido africano, a capulana em Moçambique?

Tenho andado a estudar mais o tecido. Este tecido africano em Moçambique que se chama capulana. Eu tenho andado a investigar porque estou a acabar o meu doutoramento em Artes na Faculdade de Belas Artes. Este tecido é uma tecnologia de arquivar. Por exemplo, em Moçambique pode ser uma coisa tanto individual, autobiográfica como colectiva. A mãe que tem uma criança que carrega no tecido e quando a criança tem 18 anos, a mãe volta a dar lhe a capulana como um gesto que tem a ver com uma autobiografia da criança. Os políticos fazem campanhas políticas, imprimem as suas próprias caras na capulana. Pessoas que lutaram contra o colonialismo também são impressas na capulana. Ou seja, a capulana é um veículo de histórias. Como a minha família de Angola, nós somos de uma família que é multirracial, e sempre tive contacto com estes objectos sem saber sequer o que eles representavam. Estas formas abstractas de toda a arte fascinavam-me. Na Europa havia muita coisa do figurativismo e quando olhávamos para estes objectos, pelo menos quando criança, não percebia. Eu sempre tive uma relação com elas sem saber que tinha uma relação.

Da mesma forma, como falámos há pouco, em relação a dados adquiridos que nos dão a conhecer e não são questionáveis?

Isso, exactamente. A capulana está a ser uma relação mais recente. Este projecto chama-se Memórias para 14 Bustos, que são 14 bustos que foram produzidos pelo Leopoldo de Almeida para a Exposição Universal do Mundo Português de 1940, para adornar um zoom humano. Quando eles trouxeram pessoas para exibir como se fosse um zoológico em 1940, isto é muito recente. E estes bustos ainda estão no jardim tropical de Belém. Hoje em dia têm uma contextualização que é mínima. Eu não considero ser uma contextualização porque é uma obstrução dos sentidos. É um género de uma placa que tem um pequeno texto que na verdade não diz nada.

Neste momento estou em contacto com os directores do museu e estamos a preparar, talvez para 2025, uma contextualização séria destes 14 bustos. Este é um início desse projecto que são estes 14 bustos desenhados nestes panos africanos, nas capulanas, onde depois existem memórias; sejam memórias que não são faladas. Nestas duas figuras brincam um pouco com a ideia de naufrágio porque o azul cobalto, iconograficamente, é sinónimo de história. Nós olhamos para estas imagens de azul cobalto dos azulejos nas nossas ruas [em Portugal], e de repente é história, isto é a nossa história. Fala-se muito dos barcos que lá chegaram, mas não se fala dos barcos que afundaram nos naufrágios. E este naufrágio não é só um naufrágio que está ligado à relação do barco ao mar. É o naufrágio da história. Porque a nossa história é um grande naufrágio, onde temos que ir para debaixo da água, metaforicamente, fazer mergulho para encontrarmos os despojos da nossa história.

Se formos aos arquivos que temos, tanto em Lisboa, nas instituições, conseguimos encontrar muita coisa, mas o acesso a esses arquivos ainda é negado. Estes trabalhos, estes desenhos nas capulanas tentam trazer exactamente essas memórias da nossa história.

De onde vem a sua relação com África?

A minha família vem de lá desde 1888. Houve pessoas que nomearam a minha família de retornados. No final dos casos, eles eram exilados. Eles exilaram-se em Portugal por causa das regras das guerras anti-coloniais. O que aconteceu comigo foi que, de repente, eu nasci num território que é o território português, mas toda a música que eu ouço em casa é angolana, toda a comida que eu como em casa é angolana, as vestimentas, o léxico que faz de mim uma pessoa que está desterritorializada porque a nível de memória, nesta ideia que está ligada a pós memória, as memórias que eu tenho são de um território que não é o de Portugal. Mas eu nasci em Portugal, sou português, nunca fui a Angola. Fui ao Senegal, fui aos Camarões e está programado para ir a Angola, claro, trabalhar lá também.

As memórias que eu tenho, que me foram passadas de território, de contexto, de luta, de vida são de outro território, foram memórias emprestadas. Essa ligação faz-me querer saber um pouco mais e faz-me querer participar nesta luta que é uma luta por um género de igualdade. Usar a descolonização ou esta ideia de descolonizar não só o território, mas como um mote para trazer outro tipo de dignidade aos povos colonizados, à minha parte da família que ainda vive em Angola, a ligação é grande e não consigo contabilizar. Acho que preciso de mais anos de maturidade para tentar entender como é que o território e a memória podme trabalhar um corpo biológico, no sentido em que tu és português mas não reconheces o território onde tu vives, na tua condição de memória, de pós-memória.

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