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Moçambique: "Tudo cabe à apreciação, em última instância, do Conselho Constitucional"


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A Comissão Nacional de Eleições de Moçambique divulgou ontem os resultados oficiais das eleições gerais de 9 de Outubro. De acordo com estes resultados, o candidato da Frelimo no poder, Daniel Chapo, foi eleito Presidente com mais de 70% dos votos, em segundo lugar ficou Venâncio Mondlane apoiado por um partido recente, o Podemos, que alcançou cerca de 20% dos votos, a Renamo, até agora principal força de oposição, recolheu quase 6% dos sufrágios e o MDM, chegou em quarta posição com pouco mais de 3% dos votos.

Depois do anúncio dos resultados, o candidato declarado vencedor, Daniel Chapo disse que "quer ser o Presidente de todos os moçambicanos". Por seu turno, na oposição, Venâncio Mondlane declarou nas redes sociais que "estes resultados não reflectem a vontade popular" e apelou os seus apoiantes a dar continuidade aos protestos que ele convocou. O MDM e a Renamo também consideraram que estes resultados foram forjados e disseram que vão contestá-los junto das entidades competentes.

Na rua, a tensão foi patente ontem à noite, nomeadamente em Maputo, mas sobretudo, na província de Nampula, no norte, onde as autoridades deram conta de um morto, sendo que terão sido detidas mais de 300 pessoas no âmbito dos protestos.

Foi sobre este cenário que a RFI conversou com o cientista político e professor universitário Justino Quina que começa por recordar que os dados enunciados ontem não são definitivos e ainda precisam ser analisados pelo Conselho Constitucional.

RFI: O que sobressai destes resultados, com a Renamo -tradicionalmente principal força de oposição- a ir para o terceiro lugar?

Justino Quina: Os dados que foram anunciados ontem pela Comissão Nacional de Eleições não são definitivos no seu todo, porque, existindo alguma reclamação pela parte dos partidos políticos, no caso concreto do Podemos e do candidato que suporta, esses partidos têm espaço para que, existindo evidências práticas, todos esses elementos devem ser encaminhados para a última instância, o Conselho Constitucional. E o Conselho Constitucional poderá naturalmente apreciar, e existindo de facto, evidências que provem que tinha razão o Partido Podemos, mas sobretudo o candidato Venâncio Mondlane, penso que esses resultados poderão alterar, mas tudo isto cabe à apreciação, em última instância, do Conselho Constitucional. O outro ponto é com relação às manifestações, aos protestos. Temos suporte constitucional à manifestação pacífica. Os protestos são constitucionais no sentido de que todos os cidadãos têm direito de manifestarem quando entendem e as suas reclamações devem ser atendidas. E nós temos um historial no nosso país em que, de facto, as pessoas já apresentaram preocupações usando desse preceito constitucional. No meu entender, o que pode estar a falhar neste momento, é a maneira como esses protestos estão a ser levados a cabo. Porque quando há vandalismo, isto é mau e nós temos que encontrar formas de repudiar isto, mas também apelar aos próprios manifestantes que não usem este mecanismo. Olhando para aquilo que poderá acontecer em termos de configuração da própria política nos próximos tempos, a se confirmarem esses resultados, nós teremos aqui uma reconfiguração do próprio Parlamento, em que vamos ter o Podemos como a segunda força política. Teremos uma ruptura daquilo que nós fomos tendo no nosso Parlamento ao longo do tempo em que, no início, quando começou o parlamento multipartidário, tivemos a Frelimo e a Renamo como as maiores forças políticas, embora tivesse ali um ou outro partido, como a União Democrática. Mas depois tivemos a entrada do Partido do Movimento Democrático de Moçambique, o MDM. Tivemos três forças políticas, mas nestas eleições, nós temos um estreante que se chama Podemos. O que que significa? Significa que nós, de forma tácita, estamos aqui a verificar o fim da dicotomia que sempre vivemos na nossa política, entre a Frelimo e a Renamo. E nessas eleições, temos essa surpresa em que a Renamo cai em termos de assentos no Parlamento. Significa que nós temos uma mudança de estruturação do nosso parlamento. Então, esse é o cenário que se desenha neste momento, enquanto não temos os resultados definitivos ou aqueles que são deliberados pelo Conselho Constitucional. Mas neste momento, esta é a realidade que nós temos na política moçambicana. 

RFI: A confirmar-se este cenário, como é que explica a emergência de uma formação extraparlamentar como o Podemos e também de uma figura que até há uns anos atrás não era conhecida, como é o caso de Venâncio Mondlane? 

Justino Quina: O que é que está a acontecer na política moçambicana? Ela está a evoluir cada vez mais. Há exigências a que a própria política não está a conseguir responder que têm a ver, por exemplo, com os jovens. E isso requer que também os próprios partidos políticos também compreendam a necessidade de melhor abordarem a política, mas sobretudo a maneira de fazer a política. O que se verificou ao longo do tempo é que, por exemplo, a Renamo não conseguiu dar respostas concretas àquilo que os próprios eleitores vinham dando sinais. Note o que aconteceu para o caso do partido Podemos. Era um partido sem muita expressão, mas por conta do Venâncio, que é o candidato independente que antes esteve na Renamo. Todos aqueles que acompanharam aquilo que aconteceu dentro do partido Renamo, a maneira como a política foi feita, sobretudo as eleições internas, o Congresso que foi realizado na Zambézia, em que dividiu praticamente a própria Renamo, houve muita contestação, não só a nível interno do próprio partido, mas também aqui a nível externo. As pessoas não ficaram satisfeitas por ter sido Ossufo Momade a ser escolhido como o candidato presidencial da Renamo, mas também presidente do partido. Isso fez com que alguns simpatizantes acompanhassem o Venâncio Mondlane para todos os sítios onde ele foi. Tudo isto de forma conjugada, olhando para aquilo que acontece na política nacional, fez com que o partido Renamo e também o partido do Movimento Democrático perdessem muito apoio. Exactamente pela dificuldade de fazer gestão interna dos processos. E aí eles acabaram perdendo esta franja significativa de eleitores. O que é que se espera para o futuro? Vamos ter um parlamento com quatro partidos políticos, mas é importante que esses partidos políticos possam ir ao Parlamento discutir as grandes questões que preocupam os cidadãos. Porque se esses resultados que indicam uma erosão de votos da Renamo e do MDM, significa que há um trabalho de casa que deve ser feito pela Renamo e pelo MDM, de modo a responder ao que não esteve bem. Para o caso concreto do partido Frelimo, também ele deve se reposicionar. Deve encontrar também mecanismos e também ir respondendo às demandas sociais. Fala-se muito, por exemplo, de questões ligadas ao combate à corrupção. É importante que o próximo governo, mas sobretudo o próximo Presidente, olhe para essa questão. Há um conjunto de preocupações também dos jovens, como, por exemplo, de emprego, como, por exemplo, de habitação. Significa que o próximo governo também deve trabalhar para responder a essas dinâmicas, porque é isto que tem vindo a preocupar a camada juvenil, que é a franja significativa quando se trata de processos eleitorais em Moçambique. 

RFI: A União Europeia incita a Comissão Nacional de eleições a publicar a totalidade dos resultados, algo que é também reclamado pela oposição. Julga que o Conselho Constitucional vai adoptar uma posição mais crítica em relação aos resultados?

Justino Quina: É importante porque é a última instância. Cabe ao Conselho Constitucional, por ser a última instância, apreciar com muita seriedade, apreciar com muita serenidade, com competência necessária. Ontem, quando o bispo Dom Matsinhe (Presidente da CNE) apresentava os resultados da Comissão Nacional de Eleições, ele próprio reconhecia que de facto há algumas irregularidades. Mas como Comissão Nacional de Eleições, não cabia àquela instância dirimir todas aquelas que são as irregularidades. É o que ele disse ontem. Então, com base em tudo aquilo que os partidos políticos reuniram, em tudo aquilo que os candidatos também reuniram como provas, então, existindo matéria, é preciso que o Conselho Constitucional olhe com muita competência, analise com muita frieza e depois traga a resposta que venha, não diria beneficiar, mas que venha dar alento para qualquer um que é reivindicante. Então, a minha expectativa é essa por ser a última instância. Os dados que foram apresentados ontem nunca devem ser considerados como definitivos, porque são da Comissão Nacional de Eleições. Mas depois temos uma outra instância, que é, afinal, a última que cabe a ela trazer a última palavra.

RFI: A seu ver, o que é que vai acontecer nestes próximos dias? Venâncio Mondlane apelou os seus apoiantes a dar continuidade às manifestações. Julga que os próximos dias vão ser confusos, como têm sido até agora?

Justino Quina: Até aqui os dias estão confusos. Note que nós tivemos uma paralisação das actividades muito antes do anúncio dos resultados pela Comissão Nacional de Eleições. Algumas instituições públicas trabalharam até ao meio-dia. Houve algumas que, de facto, foram até o fim do dia, mas algumas trabalharam até ao meio-dia. As instituições privadas praticamente não abriram. Os mercados andam sem os próprios comerciantes. Significa que estamos numa situação que não é saudável para o nosso contexto, tendo em conta que, independentemente daquilo que está a acontecer, quando nós estamos numa situação em que as actividades laborais estão paralisadas, quando a economia não flui, isso é mau para o país, é mau também para nós como sociedade. Como cientista político, apelo que existam, por parte dos actores políticos, uma serenidade, mecanismos de diálogos muito mais alargados, mas, acima de tudo, que esses actores políticos e de forma específica, o candidato Venâncio Mondlane, é importante que lance uma mensagem de maior serenidade aos seus apoiantes. Porque o que está a acontecer neste momento não é salutar. Repare só, algo que acontece no nosso contexto, nós somos um país com um passado de guerra que provém desde o colonialismo. Depois, passámos por uma guerra civil, depois tivemos o ressurgimento de outros conflitos. Quer dizer, este país precisa de muita paz. Este país precisa de muita concórdia. Esse país precisa de muita harmonia. Quando nós temos concidadãos nossos que saem à rua, estragam infra-estruturas, refiro-me a estradas, por exemplo, vão queimando isto e aquilo, isto tem consequências muito nefastas para o próprio país. É muito caro fazer uma reconstrução para este tipo de atitudes, para este tipo de situações. É muito caro para o país, porque nós estaremos só a regredir.

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