Convidado

Morte de Odair Moniz: “Sem justiça não há paz”


Listen Later

Os distúrbios que aconteceram nos últimos dias na periferia de Lisboa levantam, mais uma vez, a questão do racismo e da atitude da polícia nas chamadas "zonas urbanas sensíveis" da capital portuguesa. Yussef, emigrante e activista anti-racista guineense que vive na Grande Lisboa, disse à RFI que, se nada mudar, estes episódios vão acontecer cada vez mais.

O presidente da república de Portugal disse esta quinta-feira que se verifica uma "desescalada da violência" e que a "paz social" está a regressar à Área Metropolitana de Lisboa, depois de três noites de tumultos.

Odair Moniz, 43 anos, cidadão cabo-verdiano, e morador no Bairro do Zambujal, na Amadora, foi baleado mortalmente por um agente da PSP na madrugada de segunda-feira.

A RFI falou com Yussef, emigrante e activista anti-racista guineense que vive na Grande Lisboa, sobre as circunstâncias e as consequências deste caso, que levanta, mais uma vez, a questão do racismo e da atitude da polícia nas chamadas "zonas urbanas sensíveis" da capital portuguesa.

RFI: Não é a primeira vez que acontece uma morte nestas circunstâncias, mas é a primeira vez que há esta reacção. Como é que explica a dimensão dos protestos?

Yussef: Os protestos têm a ver com o contexto político que vivemos, neste momento, em Portugal. Como disse, e bem, não é a primeira vez que esta situação acontece. O policiamento que existe, por exemplo, na Cova da Moura, é diferente do policiamento que existe eventualmente num bairro do centro de Lisboa. Isto tem a ver com os critérios que a PSP alavanca no sentido de designar estas zonas como sensíveis, o que desde já cria um conjunto de problemas, tendo em conta a caracterização e depois o relacionamento que esta instituição que é PSP tem com os moradores dessas zonas. Acredito que a razão principal pela qual nós temos esta indignação, eu diria que a nível nacional, tem a ver com o momento político.

Existem movimentos a partir desses mesmos bairros que dão voz a este protesto, que têm uma dimensão nacional neste momento e, ao mesmo tempo, existe uma solidariedade da parte da sociedade portuguesa através de partidos políticos que têm assento no Parlamento e têm voz na comunicação social. Isto faz com que haja uma outra dimensão do homicídio que aconteceu segunda-feira de madrugada.

RFI: Falou de partidos que estão solidários com estas comunidades, mas também há partidos que utilizam esta situação para fomentar o medo em relação a estes bairros.

Yussef: O “Chega” tem uma agenda clara de polarização no seio da sociedade portuguesa, no sentido de angariar votos e, ao mesmo tempo, colocar em prática o projecto político que tem características claramente fascizantes. O senhor André Ventura disse que o polícia que cometeu o homicídio deveria ser condecorado, mesmo sem existir uma investigação que tenha transitado em julgado, uma decisão final sobre o que aconteceu e o apuramento das responsabilidades. É um discurso típico de regimes em que o Estado de Direito democrático não existe. O “Chega” tem sua agenda e é preciso denunciar. Esta agenda é baseada em preconceito, no racismo e na xenofobia.

RFI: Foram queimados dois autocarros, automóveis e caixotes do lixo. Este tipo de distúrbios vão dar força às ideologias que está a criticar?

Yussef: O ideal na luta é que ela seja consequente e que siga os trâmites normais. Acontece que, por exemplo, aqui em Portugal, a Justiça tem o seu preço, tem o seu timing que, por vezes, não coincide com o timing necessário para que as coisas sejam esclarecidas. Eu creio que os discursos políticos deveriam criar condições para que estes actos não acontecessem. Infelizmente, está a acontecer exactamente o contrário. Estamos a falar de zonas em que a pobreza é uma constante. Hoje, a Rede Europeia Anti-Pobreza revelou que em Portugal a pobreza aumentou. Estamos a falar de um país em que existem cerca de 2 milhões de pobres. E, muito provavelmente, muitos deles vivem nestes bairros. Se nós temos estas situações de violência, temos que entender o contexto político e económico a partir do qual esta violência brota e não propriamente usar discursos que, a meu ver, vão criar mais condições para que estas situações de violência aconteçam.

RFI: Existem bairros como o da Cova da Moura que, para muitas pessoas são inacessíveis e muito perigosos. Quem vive nestes bairros gosta de receber pessoas novas?

Yussef: É preciso, em primeiro lugar, acabar com estas “zonas urbanas sensíveis” e, ao mesmo tempo, é preciso dialogar com as organizações destes bairros legitimamente reconhecidas pelos moradores, porque elas podem fazer uma radiografia dos problemas e, ao mesmo tempo, alavancar as soluções. Creio que é fundamental. É preciso criar espaço onde a voz destas comunidades possa ser ouvida e participar na criação de soluções concretas. Ao mesmo tempo, é preciso uma recolha de dados étnico raciais, no sentido de fazer uma radiografia que permita legitimar a crítica que estas populações e as suas associações de movimentos anti-racistas fazem da situação concreta. Estamos a falar da situação de desemprego, trabalho precário, situações de violência policial, do não acesso a transportes públicos ou acesso com horários extremamente precários.

RFI: Olhando para os distúrbios a que assistimos nos últimos dias, na periferia de Lisboa, existe o risco de se tornarem habituais como acontece noutros países, como em França, por exemplo?

Yussef: É importante entender porque acontecem estes casos em várias geografias e porque acontecem especificamente com comunidades racializadas. Vou dar um exemplo: aqui, a PSP juntamente com certos órgãos de comunicação social, avançou com uma narrativa que, neste momento, já se comprovou que não corresponde à verdade. Isto cria condições para que haja uma revolta, porque estamos a falar de instituições do Estado. Temo que estas situações se possam generalizar. Eu creio que é muito importante divulgar uma palavra de ordem, por parte dos órgãos de comunicação social, que vem das associações destes bairros, dos moradores e dos seus representantes: sem justiça não há paz. E ouso dizer, com o mínimo de consciência deste fenómenos, que se nós continuarmos o debate superficial desta questão, daqui X tempo, infelizmente, vão voltar a acontecer. Já aconteceram demasiadas vezes para aquilo que se diz que é o Estado de Direito Democrático em Portugal.

...more
View all episodesView all episodes
Download on the App Store

ConvidadoBy RFI Português


More shows like Convidado

View all
Semana em África by RFI Português

Semana em África

0 Listeners

Artes by RFI Português

Artes

0 Listeners

Em linha com o correspondente by RFI Português

Em linha com o correspondente

0 Listeners

Ciência by RFI Português

Ciência

0 Listeners

16h00 - 16h10 GMT by RFI Português

16h00 - 16h10 GMT

0 Listeners

19h10 - 19h30 GMT by RFI Português

19h10 - 19h30 GMT

0 Listeners

Em directo da redacção by RFI Português

Em directo da redacção

0 Listeners

Em linha com o ouvinte / internauta by RFI Português

Em linha com o ouvinte / internauta

0 Listeners

Vida em França by RFI Português

Vida em França

0 Listeners