Convidado

Museu Mafalala: o guardião da história do mais icónico bairro de Moçambique


Listen Later

O Bairro da Mafalala é uma zona histórica, berço de resistências políticas e culturais. Daqui saíram os antigos presidentes moçambicanos Samora Machel e Joaquim Chissano, o futebolista Eusébio, os escritores José Craveirinha e Noémia de Sousa, e tantas outras personalidades, algumas das quais retratadas em murais pelo bairro. Em 2019, nasceu o Museu Mafalala que tem promovido actividades para continuar a dinamizar a história deste bairro. Fomos à descoberta deste “caldeirão cultural” com Ivan Laranjeira, o director do museu.

Bem-vindos ao Museu Mafalala, no coração de Maputo. Um labirinto vibrante de vozes, pessoas e cores que sobressaem das ruelas e becos, barracas e bancas, casas precárias com chapas de zinco e alguns murais a homenagearem personalidades locais. Aqui vivem cerca de 20 mil pessoas de diferentes etnias e religiões.

Estamos no Bairro da Mafalala, uma zona histórica que foi - e é - berço de resistências políticas e culturais. Daqui saíram, por exemplo, os antigos presidentes moçambicanos Samora Machel e Joaquim Chissano, o futebolista Eusébio, os escritores José Craveirinha e Noémia de Sousa.

Ainda hoje, o bairro continua a ser um caldeirão cultural que cozinha páginas de história e, para as concentrar, nasceu, em 2019, o Museu Mafalala, dirigido por Ivan Laranjeira, um filho do bairro, que nos levou por caminhos inesperados até aos murais de homenagem às persononalidades históricas.

Ivan Laranjeira resume que o bairro é que é o museu e o museu que ele dirige é simplesmente o guardião da memória que acolhe exposições, actividades culturais e uma biblioteca. É neste edifício que conversámos sobre a importância da Mafalala para o país.

RFI: O que é o Museu Mafalala?

Ivan Laranjeira, Director do Museu Mafalala: O Museu Mafalala é um centro de interpretação, é um lugar onde as pessoas podem interagir com a história do bairro da Mafalala e podem, sobretudo, ter um contacto nas várias épocas em que o bairro e a cidade foram evoluindo. Ter uma noção mais concreta daquilo que é a história da Mafalala e das pessoas e das personalidades que daqui saíram.

Quais foram essas personalidades que daqui saíram? Há muitas importantes para a história de Moçambique e algumas estão representadas em murais aqui no bairro...

A Mafalala é orgulhosa em dizer que produziu dois presidentes de Moçambique, Samora Machel e Joaquim Chissano, um primeiro-ministro Pascoal Mucumbi, o maior jogador de futebol de todos os tempos, Eusébio da Silva Ferreira, os maiores músicos e poetas de Moçambique, casos de Fany Mpfumo, de José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui de Noronha e o toureiro Ricardo Chibanga. Todos da Mafalala para mencionar alguns porque é uma lista interminável e até hoje o bairro continua a produzir grandes personalidades do país, gente que cria tendência e que ajuda a criar este orgulho da moçambicanidade.

Como é que se explica que haja esta efervescência que faz com que daqui saiam estas personalidades que vão marcar a história de Moçambique?

Penso que tem muito a ver com a característica do próprio bairro. É um autêntico caldeirão cultural. Temos aqui gente de toda a parte de Moçambique, da região austral, da costa suaíli, pessoal de Zanzibar, das Comores. Isto contribui imenso para a forma de ser, de estar do bairro da Mafalala e para a capacidade inventiva e criativa dos que aqui vivem. Tudo isto foi sempre assim ao longo dos anos e dos tempos e continua a ser sempre uma referência, a Mafalala, por ser também o único bairro na periferia que dialoga com o centro e com o resto. Portanto, a sua localização também é estratégica e faz com que toda a gente queira cá estar. Isto contribui para a miscigenação e dessa miscigenação cria-se este sentido de nação e criam-se também grandes homens.

Esses grandes homens marcaram a resistência. Este bairro é conhecido por ter sido também um foco de resistência contra o colonialismo e eu queria que fôssemos à história do bairro…

Nós temos dois grandes momentos políticos na história de Moçambique: um que é a queda do Império de Gaza, no final do século XIX, e outro que é a criação da Frente de Libertação de Moçambique em 1962. Entre uma coisa e outra, há um hiato de perto de 70, 80 anos que é preenchido precisamente por estes movimentos que têm lugar na Mafalala, que são movimentos de consciência política, são movimentos nacionalistas, diria até proto-nacionalistas, que começam a discutir a ideia de Moçambique independente e de Moçambique como nação, que trabalham na questão da cidadania e dos direitos civis e influenciam uma geração mais nova que mais tarde cria a Frente de Libertação de Moçambique.

Esse é que é o grande contributo da Malala para este processo independentista. Anos depois, quando começa a luta armada, o bairro também albergou aqui várias bases clandestinas do movimento de libertação e tem lugares que são históricos, que desempenharam um papel importante, sobretudo no 7 de Setembro [de 1974]. Temos aqui a Base Galo, que é uma base que teve um papel extremamente importante após a assinatura dos Acordos de Lusaka em 1974, em que há um levantamento de alguns colonos portugueses que não concordavam com a passagem do poder para a Frelimo e, nesse processo, há uma tentativa de golpe de Estado e é daqui da Mafalala que sai um grupo de guerrilheiros na clandestinidade, com a missão de apaziguar a situação. Só depois dessa missão é que o Presidente Samora Machel faz a viagem triunfal do Rovuma a Maputo e proclama a independência em Junho de 1975. Portanto, é um espaço que reverbera um pouco de história por todos os poros e que mantém viva essa tradição e esse orgulho. Esse é que é o grande contributo para o processo nacionalista, mas acho que o sentido de identidade, de moçambicanidade, é o grande contributo que a Mafalala faz para o processo anticolonial.

Tantos anos depois, como é que nasce o museu?

Nós, na verdade, achamos que o museu é o bairro, é o museu vivo. Esta instalação que aqui está é um centro de interpretação e de documentação, onde se pode interagir e ter um ponto de referência sobre aquilo que é a história da Mafalala. Nós começámos há 15 anos, a trabalhar no âmbito do património no seu todo. Desenvolvemos uma rota que é o “Mafalala Walking Tour”, onde vamos explicando e passando por vários pontos de interesse histórico e cultural do bairro da Mafalala. Falo das casas onde estas personalidades todas viveram, falo de lugares de convívio social e religioso, como mesquitas, igrejas, o campo de futebol e todos esses lugares que representam a história e a dinâmica social aqui da comunidade.

A partir desse pressuposto, nós embarcámos num compromisso de preservar a história da Mafalala e de garantir o restauro, de certa forma, desse passado e legado histórico. Isso contemplou acções para o reconhecimento do bairro como sendo um conjunto patrimonial histórico e protegido da cidade de Maputo - fizemos isso em 2016 - e mais tarde, a própria construção do museu que iniciou em 2018 e concluímos em 2019. Portanto, o museu já tem cinco anos de vida, é uma criança que já fala, que está para entrar para a escola primária e que tem muitos sonhos e ambições e que vê cada vez mais um futuro risonho a partir do trabalho que a gente desenvolve.

Desenvolvem também actividades no próprio museu, não é?

Sim, sim, claramente. O museu é uma infra-estrutura ecléctica, tem aqui vários serviços disponíveis para a comunidade e não só. Tem a componente de museu, temos uma galeria de arte onde recebemos vários artistas. Temos um espaço para concertos, música, teatro, dança. Temos uma biblioteca e temos igualmente um restaurante e um serviço de acomodação. As pessoas podem-se hospedar aqui. Estamos também no booking.com - passo a publicidade - e estamos no mundo, não é?

Há muitos grupos de turistas, de pessoas interessadas em conhecer a Mafalala e ter uma experiência no bairro, que vêm e hospedam-se aqui no museu. Temos também muitos pesquisadores que vêm cá com interesse de estudar a Mafalala e outros temas que também vêm e se hospedam cá. Há muitos artistas que vêm em residência e ficam cá também para se inspirar. Nós, como museu, também damos alguma orientação nesse sentido. É um espaço que é transversal naquilo que é a sua missão e naquilo que é a possibilidade de acolhimento que a gente dá.

Além de ser um bairro muito vivo pelas pessoas, pelas crianças, pelos ruídos, pelos cheiros, também é muito apelativo pelas cores e pelos murais. Como foi o processo de criação dos murais?

Nós temos um projecto que é o Mafalala Artivismo e é um projecto que surge no âmbito da ideia de garantir e manter viva a memória do bairro da Mafalala. A Mafalala é este lugar com muita história, é um lugar culturalmente rico, com heróis moçambicanos que por aqui passaram, mas ao andar pelo bairro, nós não temos nenhuma referência, nenhum símbolo, nenhum monumento que personifique essa história, esse passado cultural importante.

Como museu, como associação Iverca, nós iniciámos um trabalho com a comunidade, que era precisamente o Mafalala Artivismo em que convidávamos artistas plásticos para dialogar com a comunidade sobre o que é que a Mafalala representava para esta comunidade. As pessoas diziam que a Mafalala é um lugar de craques da bola, é um lugar da marrabenta, é um lugar de diversidade cultural, é um lugar de poetas, de revolucionários e por aí fora. Com cada uma destas respostas nós assumimos um compromisso de fazer intervenções artísticas em espaços públicos que pudessem reflectir este sentimento da comunidade. Estas intervenções seriam, então, os nossos monumentos informais. Nós fizemos até ao momento três murais.

Temos o Mural dos Poetas, que tem lá representados José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui de Noronha e João Albasini, e que muito recentemente, em 2022, foi restaurado por ocasião dos 100 anos de José Craveirinha. E depois fizemos um mural que é o mural do desporto, em que temos representado o Eusébio, o Hilário da Conceição, o Arsénio Esculudes e o Ricardo Chibanga. Este mural está localizado precisamente no campinho da Mafalala e também reflecte esta heroicidade do desporto e dos desportistas aqui da Mafalala que é uma cultura que se mantém bastante viva. Finalmente, fizemos uma ode às mulheres e, sobretudo, a esta diversidade cultural que está presente no bairro e que se reflecte muito na cultura macua da ilha de Moçambique. Este mural é uma pintura do Tufo da Mafalala.

Todos estes murais têm curadoria do museu Mafalala e foram um processo participativo em que a comunidade também deu a sua opinião, tendo sido colocados estrategicamente em zonas também simbólicas que representam muito para o conteúdo que aí está.

Agora, estes murais, para além deste papel simbólico e cultural, têm igualmente um papel ambiental e urbanístico muito grande porque à volta deles o ambiente muda, transforma-se para o positivo. Escolhemos de propósito os lugares que eram degradados e , a partir do momento em que houve esta intervenção, ganharam vida, temos pequenos negócios à volta, tornaram-se lugares de referência, as pessoas concentram-se, juntam-se aí. Então, é um ganho a dobrar naquilo que é a missão da arte. E a arte cura, não é? Sentimos que, de certa forma, este objectivo foi alcançado.

...more
View all episodesView all episodes
Download on the App Store

ConvidadoBy RFI Português


More shows like Convidado

View all
Semana em África by RFI Português

Semana em África

0 Listeners

Artes by RFI Português

Artes

0 Listeners

Em linha com o correspondente by RFI Português

Em linha com o correspondente

0 Listeners

Ciência by RFI Português

Ciência

0 Listeners

16h00 - 16h10 GMT by RFI Português

16h00 - 16h10 GMT

0 Listeners

19h10 - 19h30 GMT by RFI Português

19h10 - 19h30 GMT

0 Listeners

Em directo da redacção by RFI Português

Em directo da redacção

0 Listeners

Em linha com o ouvinte / internauta by RFI Português

Em linha com o ouvinte / internauta

0 Listeners

Vida em França by RFI Português

Vida em França

0 Listeners