Share Opinião João Paulo Cunha
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By Brasil de Fato MG
The podcast currently has 86 episodes available.
Bolsonaro não é apenas negacionista em matéria de saúde, seus atos são também afirmativos e indicam, com todas as letras, o projeto de acabar com o SUS. A ausência de condução da política de combate à pandemia não se deu no vazio, na ignorância e na crueldade apenas, mas na ocupação de todos os espaços onde era necessário combater o Sistema Único de Saúde. Um projeto.
No entanto, foi exatamente o SUS a única barreira eficaz contra a necropolítica bolsonarista durante a pandemia da covid-19. Foi o que levou muita gente a celebrar o sistema e seus profissionais. Mas enquanto a resistência se estabelecia, o governo levava adiante seu propósito de aniquilar a estrutura construída por sanitaristas, pesquisadores, profissionais de saúde e movimentos sociais para conduzir a saúde pública brasileira. Com mais de 30 anos de história de luta, o SUS encontrou seu pior inimigo.
O saldo de mais de 600 mil mortes, a reiterada atuação anticiência, a suspeita de corrupção levantada pela CPI do Senado e o desprezo a suas atribuições constitucionais de defender o direito à vida, que ficam como herança macabra do atual governo, são a porta de entrada de um projeto ainda mais destrutivo. Não foi uma gestão incompetente e obscurantista, mas interessada de forma estratégica em mudar a lógica do direito à saúde, em favor da prestação de serviços no mercado.
Para vencer Jair Bolsonaro nas urnas vale tudo. Ou quase tudo. A mídia corporativa se rendeu ao cenário inevitável da única alternativa para impedir a reeleição do presidente, mas já começa a apresentar suas condições. Lula é melhor que o monstro no poder - não pelo tipo de poder que exerce, mas pela monstruosidade com que o faz -, mas desde que não seja Lula de verdade.
O pacto que vem sendo estabelecido desenha um candidato que, para ser aceito pelos barões da mídia, precisa escrever cartas e mais cartas ao povo brasileiro, se render a conversas civilizadas com o setor financeiro, acenar para o agronegócio, escolher um vice palatável (ainda que, contraditoriamente, sem sabor), mostrar indiferença respeitosa aos militares e, principalmente, não interferir no mercado. Um Lula antipetista.
O que parece contradição em termos, na realidade, é um método. É preciso esvaziar o conteúdo socialista do projeto do candidato petista, impedir que retome o crescimento econômico com distribuição de renda e a valorização dos recursos estratégicos. Que não tenha intenção de revisar os direitos extirpados pela reforma trabalhista em curso e que não reconstrua a porteira civilizatória no meio ambiente.
Lula não deve se meter em questões como ampliação das instâncias de democracia participativa, inclusão social e realinhamento diplomático independente, retomando o protagonismo em fóruns multilaterais e o respeito internacional. E, que não venha com essa conversa de valorização da mídia popular e controle econômico dos meios de comunicação. O que é liberalismo nos EUA por aqui é censura.
Pode defender o SUS, desde que não venha de novo com médicos cubanos, reforma psiquiátrica e direitos reprodutivos. O programa de imunização, a defesa de critérios epidemiológicos, a ação independente da Anvisa e a atenção básica são valores que não devem, entretanto, entrar em choque com os interesses do mercado e das corporações. Não é preciso avançar na reforma sanitária, um Mandetta quebra o galho.
As chuvas que caem sobre Minas Gerais, com seu saldo de destruição, mortes e dezenas de milhares de desabrigados, não fez Romeu Zema (Novo) assumir suas responsabilidades. Quem acompanha as declarações recentes do governador do estado percebe que ele retoma seu conhecido repertório: a culpa é sempre do outro (por vezes até mesmo da vítima), enaltecimento das empresas privadas (mesmo as com passivo criminoso de destruição ambiental) e criação de comitês. Zema é o tarado dos comitês.
Na sua obsessão em se safar das responsabilidades do cargo, está sempre criando uma instância burocrática entre os problemas do mundo real e suas atribuições constitucionais. Assim, suas palavras prediletas em todas as crises são sempre monitorar, levantar danos, criar protocolos, solicitar ajuda do governo federal.
Foi o que fez com a pandemia, com os crimes ambientais e agora com as chuvas. Não abriu leitos, não contratou médicos e enfermeiros, não testou, não multou empresas devastadoras e ainda reduziu investimento nas ações de fiscalização. Seu discurso era sempre o da correia de transmissão: repasse de vacinas e insumos, transferência de responsabilidades, edição de protocolos, afago às mineradoras e apetite em gerir os resultados financeiros obtidos na justiça. Ao terceirizar suas funções de forma tão explícita, vem construindo uma carreira administrativa feita de fugas, desculpas e projeções.
Com a criação do Comitê Gestor de Medida de Prevenção e Enfrentamento das Consequências do Período Chuvoso, o governador reuniu dezenas de órgãos do Executivo, assessores e consultores com o intuito de não agir. A atribuição do grupo, de acordo com o decreto que o criou, é a de articular ações e levantar problemas. Não fala em recursos, em investimento, em criação de forças-tarefas, em apoio aos responsáveis pelas medidas de enfrentamento na ponta. Uma espécie de anteparo, uma barreira, um guarda-chuva imaginário.
O senador Antonio Anastasia (PSD-MG) é o novo ministro do Tribunal de Contas da União. Venceu no plenário a disputa com os senadores Kátia Abreu (PP-TO) e Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) e, em seguida, teve seu nome aprovado pela Câmara dos Deputados. Ele ocupa o lugar de Raimundo Carreiro, que assume a Embaixada do Brasil em Portugal. O senador mineiro fica com a vaga da cota do Senado. O cargo é vitalício e o salário está no patamar máximo do serviço público, em torno de R$ 37 mil por mês. Aos 60 anos, tem pelo menos 15 anos de sinecura pela frente.
O setor da educação e pesquisa científica no Brasil nunca foi tão atacado. A estratégia de desmonte do governo federal contra o conhecimento atua em diversas frentes: corte de verbas para pesquisa, ataque à autonomia docente, ideologização do ensino. O plano segue com estímulo à militarização, desprezo com avaliações, incentivo ao setor privado inclusive na concessão de bolsas e financiamento. A todo momento se observa a crítica à política de cotas, ao pluralismo e às políticas de inclusão. O boicote ao Enem demonstrou seu sucesso com a mais esvaziada edição do exame em toda sua história. Os técnicos do setor foram escanteados pelos arrivistas.
A condução do governo durante a pandemia é exemplar deste programa de desmonte da educação e de desprezo ao saber. No que diz respeito ao conhecimento científico, exibiu-se uma estúpida ação negacionista, marcada pelo charlatanismo criminoso, que aumentou o número de casos e mortes e confluiu para o isolamento do país. Na área do ensino, não se desenvolveu qualquer programa de apoio aos estudantes, sobretudo os mais carentes, que não dispunham de condições materiais para a aprendizagem em outras plataformas. Matou na saúde, atrasou na educação.
A imprensa familiar brasileira é capaz de tudo para fugir dos fatos. A não cobertura da viagem de Lula à Europa foi um exemplo de como, para não fazer seu trabalho, cometeu pelo menos três pecados mortais do jornalismo: foi furada por jornalistas independentes, segurou a opinião de seus colunistas até o limite da mentira e rendeu-se a pedir apoio aos assessores do ex-presidente para recuperar o tempo perdido. Curto e grosso: chegou tarde, censurou e pediu arrego.
Ao mesmo tempo, a mesma mídia empresarial esteve atenta à viagem de Bolsonaro ao Oriente Médio, frente a uma comitiva nababesca e uma pauta chinfrim, em que o único destaque foi uma conversa sobre troca de prisioneiros. Isso mesmo, troca de prisioneiros. Um indicativo dos interesses do presidente e do que antevê para seu futuro. Não se sabe de acordo comercial firmado ou de conversas com interesse geopolítico expressivo.
O contraste com a viagem de Lula é significativo. O petista foi recebido por presidentes e lideranças eleitas de democracias consolidadas, como França, Alemanha, Espanha e Bélgica. Bolsonaro teve como interlocutores ditadores e adversários dos direitos humanos. Lula recebeu prêmios e homenagens de um dos mais importantes centros de pensamento político do continente. Bolsonaro ganhou jantar dos empresários brasileiros que saíram daqui para puxar saco e fritar bife no deserto.
Nas conversas de Lula, temas como crise climática, emergência sanitária, desigualdade, ameaças à democracia, pobreza, combate à fome, futuro da União Europeia e integração da América Latina. Foi recebido com honras de chefe de Estado pelo presidente francês Emmanuel Macron, que passa longe da esquerda, aplaudido no Parlamento Europeu e ganhou espaço nos mais importantes jornais do continente.
Já Bolsonaro, antes de passear de motocicleta, falou de grafeno e bateu no peito para dizer que o Enem é a cara do governo, comemorando mais uma crise na política educacional. Emendou o chorrilho de asneiras dizendo que a floresta Amazônica é úmida e por isso não pega fogo. Ou seja, viajou para longe e gastou muito dinheiro para não sair do lugar onde sempre esteve. Para se sentir em casa, tinha até o governador de Minas, Romeu Zema, ao seu lado. Seu giro não teve repercussão na imprensa internacional e não eclipsou o vexame de sua recente viagem para a reunião do G-20.
Simbolismo das duas viagens
Não é o caso de insistir na lógica da divisão entre dois mundos inconciliáveis que vem dominando o cenário, mas há algo de simbólico nas duas viagens simultâneas dos nomes mais fortes, no momento, para as eleições de 2022. Bolsonaro procurou nos Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Catar seus semelhantes políticos: autoritarismo, apreço por lideranças autocratas e isolamento internacional. Num momento de redefinição das alianças políticas e econômicas, uma agenda que fortalece a posição de pária que parece orgulhá-lo.
Lula, ao abrir espaço para diálogo em espectro político ampliado e em torno dos temas mais sensíveis da pauta mundial, se apresenta como interlocutor confiável para a esquerda, para o bloco socialdemocrata e para os democratas da centro-direita. E até mesmo indispensável, quando se pensa na América Latina, na preservação ambiental e no papel a ser desempenhado pelas economias emergentes num cenário de grandes transformações tecnológicas e na composição de um novo mercado mundial.
Para alguns, a maior dificuldade é entender como o país se meteu na aventura fascista de Bolsonaro e companhia, a partir de fatos cada vez mais revoltantes do dia a dia. A tarefa dada frente à incessante onda de monstruosidades é a da vigilância máxima, a partir dos eventos autoritários que vão se somando, impedindo, na medida do possível, sua escalada inevitável.
Enquanto isso, outros pensam que o momento é de juntar forças, mesmo discordantes, para dar conta do enfrentamento urgente ao presidente e da retomada da via democrática que vinha sendo construída. Com a ameaça explícita de autoritarismo de Estado e de retrocesso das políticas populares, o maior desafio é interromper o projeto de poder incorporado por Bolsonaro em nome de seus patrocinadores, como laranja do neoliberalismo injusto em economia, autoritário nas relações sociais e reacionário em costumes. O pior dos mundos possíveis.
Já para um terceiro grupo, é preciso pensar grande, resgatar projetos mais ambiciosos e construir uma alternativa socialista desde já, considerando que o trabalho destrutivo do atual governo não é um acidente de percurso, mas a materialização ardilosa de um projeto de longo prazo. Que começa com a aniquilação de conquistas em várias áreas, para depois edificar estruturas orgânicas de manutenção do poder político e econômico voltado para o interesse do mercado e da minoria que domina suas engrenagens.
O francês Fernand Braudel (1902-1985), considerado um dos grandes historiadores do século 20, talvez possa ajudar nesse momento. Além de autor de trabalho clássico sobre o Mediterrâneo na época de Felipe II, escrito quando estava preso num campo de concentração, durante a Segunda Guerra, ele contribuiu para a criação da Universidade de São Paulo, onde chegou a lecionar entre 1935 e 1937. Seus estudos levaram a uma nova forma de relacionar a ciência da história com diferentes configurações do tempo.
Para Braudel, assim como o tempo pode ser entendido a partir da duração dos acontecimentos, a história precisa estar atenta a essa dimensão variável. Para um tempo curto, uma história que abarca eventos de curta duração. Para o tempo médio, a história deve contribuir com reflexões que levem em conta a conjuntura e sua maior complexidade. Já para o tempo longo, entra em cena a história das estruturas da sociedade. Na vida e na política, não é incomum confundir as três esferas.
O Brasil hoje tem problemas nas três durações do tempo. Bolsonaro a cada dia oferece um evento destrutivo, seja na educação, na saúde, no meio ambiente e na extinção do Bolsa Família, para ficar nas crises mais recentes. Os exemplos são vergonhosos. A desconfiança sobre o Enem com a demissão em massa de técnicos que denunciam aparelhamento ideológico na área da educação. A corrupção, a inépcia, o negacionismo e os crimes contra a humanidade no combate à pandemia.
Em meio a tantos absurdos que se somam a cada dia, foi revelado de forma quase natural a raiz de tanto horror no combate à pandemia pelo governo federal: doentes fazem mal à economia.
Depois de uma sequência de inépcia, descaso, militarização, charlatanismo, falta de empatia, desprezo à ciência, crueldade, corrupção e outros crimes, a verdade final foi dita com todas as letras. Havia um pacto, uma aliança, uma estratégia ditada a partir da economia. Ou melhor, como foi explicitado, do Ministério da Economia. As digitais de Paulo Guedes não estão apenas nas planilhas dos péssimos.
Todos devem se lembrar da antiga e insensata disputa apresentada entre a dimensão sanitária e econômica da pandemia. Parecia que havia se estabelecido um dilema entre sanitaristas e economistas, sobre a melhor forma de enfrentar a doença e suas consequências para a sociedade. Na falsa contraposição, um lado não se importava com as baixas para os negócios e empregos; o outro não tinha sensibilidade para a dor das famílias. O desprezo pelas ciências da vida se escorava numa preocupação com a vida material. Chegou-se a dizer que padeceríamos de mais mortes por desemprego e suicídio do que pelo vírus.
Na verdade, a divisão foi apresentada pelo governo federal como anistia para sua ação negacionista no combate à doença, que apostava na morte como saída biológica inevitável, travestida na ideia de imunidade coletiva ou de rebanho. Por isso não cabia investir em testes, vacinas, atendimentos e medidas não farmacológicas. Era só deixar a morte fazer seu trabalho saneador e suspirar um desumano: “e daí, todo mundo morre um dia”. Há um componente sadomasoquista no fascismo. De um lado, defende-se o extermínio dos fracos; de outro, submete-se ao poder como forma de se sentir próximo a ele. O fascista é antes de tudo um covarde.
Um espectro ronda o Brasil: o bolsonarismo. Para grande parte da sociedade, parece impossível entender como o presidente mantém um nível de aprovação popular, na casa dos vinte e poucos por cento, mesmo em meio a uma escalada de ignorância, grosserias, vexames e crimes. Não parece haver razão possível capaz de manter um núcleo-raiz depois de tanto descalabro. No entanto, o fantasma se mantém não apenas vivo, mas chutando.
Por muito tempo se defendeu a explicação de que Jair Messias estava autorizado a cometer sua cota de estupidez e defender suas pautas reacionárias, desde que atendesse aos interesses do mercado que o colocou no poder. Assim, seus parceiros ideológicos, com evangélicos e milicianos à frente, se contentavam com as promessas de mais preconceito, mais violência, mais armas e menos diversidade. Faziam a festa dos costumes para garantir a hegemonia do capital. Olavo de Carvalho era a caução para Paulo Guedes.
Nesse consórcio, entravam além dos empresários em suas variadas vertentes, da Faria Lima ao agronegócio, a imprensa dita profissional e até mesmo o poder Judiciário. A mídia fingia que não via o monstro para não ser vista, ela mesma, em suas vicissitudes (como o cenário de oligopólio alérgico à regulação) e a dependência de verba pública. Já o Judiciário afirmava uma visão teórica de liberdade e democracia, jogando lenha na fogueira do combate à corrupção, que lhe deu um protagonismo até então inédito na vida republicana.
De onde menos se espera é que não sai nada mesmo. A reação dos presidentes da Câmara e do Senado, do Supremo Tribunal Federal e do Procurador Geral da União se resumiu a uma sequência de vexames. As chamadas instituições, por meio de seus representantes, depois de enxovalhadas grosseiramente por Bolsonaro, numa fila de crimes vomitados no 7 de setembro, não reagiram à altura. É preciso ser muito ingênuo para alimentar expectativas com Lira, Pacheco, Fux e Aras.
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