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Papa Francisco "deu o seu contributo para melhorar a Igreja"


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O Papa Francisco faleceu esta segunda-feira, aos 88 anos, um mês depois de ter tido alta de um internamento que durou cerca de cinco semanas, devido a uma pneumonia dupla. Em 2013, o Papa Francisco foi o primeiro jesuíta a chegar à liderança da Igreja Católica, o primeiro Papa não europeu em mais de 1200 anos, e o primeiro oriundo do hemisfério sul, da Argentina. Durante o seu pontificado de 12 anos, o Sumo Pontífice — conhecido como o Papa da periferia — tentou dar sinais de modernidade à instituição, reformando a Cúria, combatendo os abusos sexuais cometidos na Igreja, e entreabrindo as portas aos divorciados e homossexuais. Decisões que motivaram críticas por parte dos sectores mais conservadores da Igreja. Em entrevista à RFI, Dom Arlindo Furtado, cardeal de Cabo Verde, afirma que o Papa Francisco deu o seu contributo para melhorar a Igreja, que precisava de uma profunda reforma.

Como é que recebeu a notícia da morte do Papa Francisco?

Era expectável, mas, devido à sua presença permanente junto do público — e mesmo ontem, na celebração da Páscoa — esperava que esse acontecimento viesse mais tarde. Foi uma surpresa, por causa disso, mas parece-me que ele estava consciente do fim derradeiro. A visita que fez a Santa Maria Maior e à Basílica de São Pedro, horas antes do início da cerimónia da Vigília Pascal, dá a impressão de que queria despedir-se.

Há duas coisas que me parecem importantes de dizer: o Papa Francisco cumpriu a sua missão até ao fim e morreu no momento em que a Igreja celebra a ressurreição de Jesus Cristo.

Doze anos de pontificado. Um Papa jesuíta, argentino, que sempre teve um comportamento modesto. Que herança deixa este Papa?

[O Papa Francisco] procurou dar à Igreja o seu devido carácter, a sua personalidade. A Igreja é de Jesus Cristo, e deve viver ao estilo do Mestre, ou seja: "Aquilo que Eu faço, vós também deveis fazer". O Papa, sendo jesuíta e profundo conhecedor de Jesus Cristo, procurou também, nesse aspecto, seguir o exemplo, com simplicidade, despojamento, pobreza, generosidade e atenção a todos. Porque Cristo assumiu a humanidade de todos, e quer salvar a todos.

Mostrar que ser católico é estar no mundo com o mundo?

Ser católico é estar no mundo com todos, mas sempre em peregrinação rumo à Pátria. Portanto, estar no mundo, vivendo os valores da humanidade, mas com orientação para a nossa Pátria definitiva, segundo Jesus nos ensinou.

O Papa Francisco escolheu visitar a República Centro-Africana e nunca veio a Paris. Ele, que era conhecido como o Papa da periferia. Que mensagem pretendia passar?

A atitude dele é muito simples: aqueles que estão no centro, sempre estiveram no centro — podem continuar no centro. Mas aqueles que estão na periferia precisam também de estar mais ao centro. É também uma questão de justiça, de igualdade, de sentido, de nós sermos uma só família, uma só comunidade. É preciso promover os que estão mais em baixo, para que possam alcançar, pelo menos, um nível de mediania.

O pontificado de Francisco fica ainda marcado pelo escândalo Vatileaks, que revelou corrupção. O Sumo Pontífice levou a cabo uma reforma da Cúria, reforma que lhe valeu alguns inimigos no seio da Igreja…

Sim. Em todo o lado, ele falava muito de modernidade. Também dentro da Igreja, onde está o ser humano, há mundanidade, há prevalência da tentação. O Papa tentou reformar a Igreja, reformar a Cúria, para que fosse uma estrutura ao serviço do Evangelho, da missão da Igreja, para além dos interesses privados ou pessoais.

Foi o que procurou fazer. Mas nós sabemos que o próprio Jesus Cristo não escapou à traição, porque, no grupo de apóstolos que escolheu, também houve traidores.

A Igreja não está imune a essas coisas, mas deve estar atenta, para que aconteçam o menos possível ou, se possível, sejam evitadas, prevenidas, para que a Igreja corresponda mais à imagem de uma família de gente de bem, ao serviço de todos. À imagem de Jesus Cristo. O Papa deu o seu contributo para melhorar a situação da Igreja, que precisava de uma profunda reforma.

Ele queria que muitas das reformas fossem irreversíveis. Isso será possível?

Espero que sim. Parece-me que a sua grande preocupação era fechar um ciclo, no sentido de não facilitar o retrocesso. Mas, de qualquer maneira, há reformas que não sofrerão retrocesso, porque se criou uma dinâmica na Igreja que, com a ajuda do Espírito Santo, irá prosseguir.

Em 2014, o Papa Francisco criou uma comissão para combater os abusos cometidos na Igreja. Onde estamos agora, nessa luta?

É um processo complexo, longo. Esta questão não pode retroceder, pois trata-se de uma dinâmica de clarificação, de purificação, de orientação para o futuro. Não pode parar.

É um processo que não termina com um Papa. Vai, agora, fazer parte da dinâmica da Igreja ao longo da sua história. Não tem um fim à vista.

Essa prevenção, esse cuidado e acompanhamento de todos os abusos, de toda a ordem — não só o abuso sexual, que infelizmente também existe na Igreja — são fundamentais.

Várias afirmações do Papa Francisco, de certa forma, chocaram a Igreja. Lembro-me da declaração: “Se uma pessoa é gay e quiser procurar Deus, quem sou eu para o impedir?” Ou quando falava das famílias numerosas: “as pessoas não se devem comportar como coelhos”. Estas afirmações vieram revolucionar a Igreja?

Não acho que tenha sido uma revolução, mas sim uma clarificação de alguns pontos onde podia haver ambiguidade. Cristo não nos pediu para julgarmos ninguém — não temos esse direito.

Não temos dados sobre a vida das pessoas para as julgarmos, porque, muitas vezes, julgamos pelas aparências. Deus criador não nos permite descartar pessoas que Ele criou por amor.

Não podemos julgar o foro interno das pessoas diante de Deus — só Ele o poderá fazer.

Quanto à questão da família numerosa: é verdade, não somos coelhos. A paternidade responsável já era um tema abordado há muitas décadas, pelo menos desde o Concílio Vaticano II — mesmo antes disso.

Aqueles que geram filhos devem ser responsáveis pela prole — pelo conjunto dos seus descendentes.

E, também, em relação ao aborto, o Papa foi claro. A Igreja é clara nesse aspecto: a vida humana deve ser respeitada desde a concepção até à morte natural.

O Papa Francisco mostrou-se chocado com o encerramento de fronteiras, com o tratamento dado aos migrantes, com os conflitos globais. Alertou para estes dramas. Também aqui, deixou um legado importante?

O Papa era um homem sensível a todos, sobretudo aos que mais precisavam — à periferia e à ultra-periferia.

É verdade que cada região, cada continente, cada país tem as suas responsabilidades e as suas estruturas. Mas o ser humano não pode fechar os olhos aos dramas de outros seres humanos.

Em 2015, Dom Arlindo Gomes foi nomeado cardeal de Cabo Verde pelo Papa Francisco. Que homem era este Papa?

Felizmente, tive muitas oportunidades de estar com ele. Era um homem de Deus, um homem ao serviço da Igreja, e que tinha uma visão do conjunto. Procurava reduzir a situação de periferia de certos sectores do mundo e da própria Igreja, para que todos se sentissem em família, com dignidade, em todas as circunstâncias.

Senhor acredita que o próximo Papa poderá vir do continente africano?

Penso que, como aconteceu no passado, também agora Jesus providenciará um Papa à altura dos desafios da Igreja e do mundo de hoje. O Papa é da Igreja — por isso pode vir da Europa, da Ásia, das Américas, de África ou da Oceânia.

Deve ser um homem da Igreja, e que desempenhe um papel suficiente — se não mesmo extraordinário — para que a Igreja continue a sua missão no mundo, ao serviço da humanidade.

Dom Arlindo Gomes poderá desempenhar esse papel na Igreja?

O Espírito Santo saberá. Aqui não há ambições pessoais, nem palpites.Confiamos no Espírito Santo e temos a certeza de que surgirá um Papa de que a Igreja precisa, nos tempos de hoje — seja ele quem for.

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