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"Papa Francisco tinha o talento de se tornar próximo, de sair do carro e ir dar um abraço"


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O mundo despediu-se este sábado do Papa Francisco, que marcou a Igreja e a cena internacional. Foi o primeiro jesuíta a tornar-se bispo de Roma, destacou-se num pontificado de 12 anos com apelos à paz, à justiça e ao diálogo entre culturas e religiões. Para compreender melhor esta dimensão espiritual e diplomática, ouvimos Manuel Cardoso, director-geral da Associação Cultural Brotéria, que sublinhou a proximidade do Papa Francisco às pessoas e o seu legado de paz e integridade.

RFI: O Papa Francisco foi o primeiro jesuíta a tornar-se Bispo de Roma. Que impacto é que teve essa pertença à Companhia de Jesus na forma como Francisco exerceu o papado?

Manuel Cardoso: Estava a viver na cidade da Beira, em Moçambique, nessa altura em que ele foi eleito, e nenhum dos jesuítas que lá estávamos acreditava que ele tivesse sido eleito. Achámos que eram informações trocadas porque, de facto, é muito curioso, assim muito fora do comum, não só único, mas no sentido estranho até, que o jesuíta seja Papa. Francisco, de facto, é um homem absolutamente extraordinário e que teve um papado com impacto transversal e grande. A Companhia de Jesus, de facto não tem tanta tradição, digamos assim, nem de bispos e de papas, evidentemente ainda menos, porque foi o único. Portanto, de facto, para nós não é assim uma coisa muito natural e o nosso carisma fará para outro tipo de missões, mas as pessoas têm os seus perfis e os talentos que têm. E Francisco, de alguma forma, foi maior do que aquilo que era só a sua vocação da Companhia de Jesus e, de alguma forma, abraçou também estes desafios que foram sendo colocados pela Igreja. Com benefício fantástico que deixou a todos nós, par a Igreja e para o mundo, diria também.

Viu-se ao longo dos 12 anos de pontificado um Papa muito presente em conflitos internacionais, muitas vezes como mediador ou até mesmo como uma voz solitária pela paz. E aí falo, nomeadamente, dos últimos meses, em que pareceu ser um dos poucos líderes mundiais a apelar para um cessar-fogo urgente na Faixa de Gaza. Essa atitude tem raízes na espiritualidade inaciana?

Eu acho que tem raízes na espiritualidade cristã e, portanto, também evidentemente na espiritualidade inaciana. O Papa Francisco tem muito consciente este soft power. O Vaticano não tem divisões armadas, não tem blindados, não tem drones. Este magistério de serviço, de procurar entendimento e diálogo, que em alguns sítios, estou a pensar, por exemplo, no caso de Moçambique, se tornou absolutamente decisivo. Ou seja, aqui e ali a Igreja conseguiu dar um contributo importante na construção efectiva da paz, não só, digamos assim, como uma exortação, mas também de facto como apoio e mediação política das partes beligerantes.

Acho que o Papa Francisco encarnou essa tradição de forma particularmente séria. Também os tempos que vivemos,  tenham pedido, exigido ainda mais atenção a esse ponto. Mas julgo que os Papas, e assim de repente todos os que me lembro, foram sempre alimentando esse tipo de perspectiva e de tentativa também através do corpo diplomático das nunciaturas do Vaticano, que no fundo são as embaixadas do Vaticano espalhadas pelo mundo todo e, directamente a partir da Santa Sé, procurando o entendimento e procurando que os desavindos se possam encontrar e construir a paz. Acho que faz parte de uma espécie de serviço à justiça que, para nós católicos, faz parte concomitante, idiossincrática. Quer dizer, que não dá para fugir dentro da própria da nossa missão e da nossa forma de ser.

Como é que o Papa Francisco equilibrou a tradição da diplomacia vaticana com o seu estilo, poderíamos dizer, mais directo, por vezes até mesmo desconcertante para a ala mais conservadora em termos de comunicação?

Não, eu acho isso uma pergunta muito interessante, uma reflexão que nós podemos fazer, porque, no fundo, eu acho que o Francisco irritava muita gente porque às vezes quebrava o protocolo. E Francisco era também, ao mesmo tempo, muito atractivo para muita gente que de alguma forma se sentia próxima, porque ele quebrava o protocolo. Deve ter sido uma dor de cabeça terrível para as equipas de segurança e para as equipas protocolares do Vaticano. Ao mesmo tempo, acho que isso também dava um golpe de asa que aproximava das pessoas. Acho que às vezes há algum tipo de encenação política e os ritos das organizações políticas, sejam nacionais ou internacionais, muitas vezes afastam-nos. E o Francisco tinha este talento, acho que esta graça pessoal de, de alguma forma, se tornar próximo, de reagir, de esticar a mão, de fazer um aceno, de sair do carro e ir dar um abraço. Portanto, acho que esta proximidade dele também, de alguma forma, nos permitiu encontrar não um chefe de Estado todo-poderoso ou rodeado de seguranças, mas uma pessoa que está genuinamente convencida e investida na construção do reino de justiça e de paz à sua volta. E, por isso, o reino não é na questão monárquica, é mais a tradição cristã de chamar reino, mas não é do ponto do regime político. Sim, acho que sim, acho que o estilo dele acabou por nos ajudar a perceber que as intenções dele não eram de manipulação, mas eram genuinamente de contribuir para uma solução.

Francisco deu grande destaque às periferias; geografias, sociais, espirituais. E a prova disso são os últimos dias: em dois dias, cerca de 150.000 pessoas recolheram-se na Basílica de São Pedro, católicos, de outras religiões, ateus...

Todas as pessoas de boa vontade e sérias reconhecem e são sensíveis à integridade de vida, à unidade de vida. Quando uma pessoa é séria e é íntegra, apesar de pensar como eu ou de não pensar como eu, acho que isso qualquer pessoa bem formada reconhece isso. Eu acho que o Papa Francisco, com as suas dificuldades e com as suas grandes virtudes, era um homem que sempre pautou o seu discurso e acção por uma procura de coerência muito grande e acho que isso é muito estimulante para todos nós. Acho que mesmo aqueles que possam não gostar de toda a Igreja Católica sentem que há aqui um desafio a serem íntegros e correctos e exigentes nos seus projectos de vida, tal como o Papa Francisco era.

Portanto, acho que este homem, de alguma forma, pelo seu carisma pessoal, também é em si mesmo um exemplo para a humanidade. E talvez seja isso que faz, como dizia ainda agora, que haja pessoas, até ateus, que possam sentir-se próximos do Papa Francisco e ter até desejo de participar nas suas cerimónias fúnebres, prestando homenagem a um homem que de alguma forma se tornou importante. De facto, também o ateísmo em Itália tem contextos muito específicos, mas não entrando na história política italiana, acho que sim. Acho que esta é uma figura grande que nos deixa com um legado tão bonito e tão provocador para que cada um de nós também possa viver a sério e de forma exigente as suas próprias vidas.

No fim deste ciclo, com o funeral que conta com a presença de tantos líderes internacionais, que legado diplomático e que legado deixa Francisco à Igreja e ao mundo?

Eu acho que o Papa Francisco ficaria radiante se, encontrando-se aqueles líderes uns com os outros naquele funeral, e em princípio estarão lá pessoas que estão de lados diferentes de barricadas e de trincheiras e que estão de lados opostos ideológica e politicamente, se à volta do cadáver de Francisco essas pessoas orarem umas pelas outras e se reconhecerem como seres humanos. E isso pode contribuir a humanizar o nosso universo, o nosso planeta, as nossas fronteiras e as nossas discussões. Eu acho que o Papa ficaria absolutamente radiante. Por isso, espero que seja um momento em que, à volta de um construtor da paz, se possa também construir efectivamente a paz, nem que seja por alterar discursos odiosos e violentos por olhares que reconhecem a humanidade dos adversários ou das pessoas que são diferentes de nós.

O que é que se pode esperar agora do sucessor do Papa Francisco? Alguém que continue o seu trabalho?

Sim, com certeza. Quer dizer, acho que os papas vão sucedendo uns aos outros. Cada um trará a sua especificidade, o seu talento. Não se pode exigir ao sucessor que tenha os talentos do Francisco. Também não vamos estar desatentos aos talentos diferentes que ele trará. Com certeza que cada pessoa, a partir da sua biografia, da sua formação, trará um ponto que acrescenta. Isso acho que também é riqueza. Bento XVI trouxe coisas fantásticas à Igreja que eram diferentes do Papa João Paulo II. O Papa Francisco trouxe coisas diferentes do Papa Bento XVI e, ao mesmo tempo, são três homens de uma continuidade muito grande e muito alinhados num grande número de assuntos. E, por isso, acho que, seja mais para a esquerda, seja mais para a direita, seja mais para cima ou mais para baixo, há aqui uma estrutura. O Papa Francisco é Papa e foi Papa. E o Papa, na Igreja Católica, não é a totalidade da Igreja. Ou seja, a Igreja tem bispos, tem padres, tem freiras, tem leigos, tem famílias. Quer dizer, a estrutura da Igreja em África é diferente dos Estados Unidos, que é diferente da Europa, que é diferente da Ásia. É uma riqueza imensa. Portanto, no fundo, e acho que este ministério do Papa, que é de presidir na caridade à união de todos e zelar para que nós não nos separemos uns dos outros, pode ser feito também de formas diferentes. Mas, no fundo, a Igreja Católica não se concentra numa pessoa. Portanto, também há esta riqueza das grandes comunidades, na sua grande diversidade geográfica, cultural, linguística, etc., que de alguma forma dão uma resiliência muito grande. E, por isso, venha quem vier, haveremos de rezar com o novo Santo Padre e de apoiá-lo. E ele, com certeza, também nos ajudará a todos a andarmos para a frente e sermos todos também mais sérios e mais coerentes na nossa vida e nos trabalhos que nos são confiados.

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