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Pedro Pires: "Toda a minha vida gira à volta dos projectos de libertação"


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Comemora-se esta quinta-feira, 12 de Setembro, o centenário do nascimento de Amílcar Cabral. Pedro Pires, antigo Presidente de Cabo Verde e um dos líderes da luta de libertação da Guiné e de Cabo Verde recorda a sua relação com Amílcar Cabral.

RFI: No Simpósio Internacional Amílcar Cabral, disse que "Cabral é uma personalidade excepcional, que não nasce todos os dias" porquê?

Pedro Pires: Na verdade é ou foi uma pessoa excepcional. Quando avaliamos o seu percurso pessoal, o seu percurso político, chegamos a essa conclusão porque Amílcar Cabral, quando decidiu dedicar-se 100% às lutas de libertação de Cabo Verde, da Guiné e das outras colónias portuguesas em África já era um técnico muito conhecido e tinha a vida organizada do ponto de vista material. Estava muito bem e é a pergunta que se coloca. Porquê? O que é que o motivou? Aí é que chegámos à conclusão da sua excepcionalidade, porque geralmente uma pessoa nessas condições teria dúvidas, teria reservas. Mas ele não teve dúvidas. Estava convencido daquilo que fazia ou estava convencido do valor das suas opções. É dessa forma que eu avalio a personalidade de Amílcar Cabral.

Ao mesmo tempo, o seu percurso político foi excepcional. Afirma-se naturalmente como um grande líder, um grande dirigente e afirma-se como um teórico, um pensador, alguém que foi capaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo: dirigir uma luta de libertação que obriga a um esforço grande e a ocupação do tempo disponível. Mas, ao mesmo tempo, há a reflexão, criatividade, a inovação, a busca de razões e a busca de explicações. Cabral, quando morreu tinha uma visão completamente diferente - espero que não esteja a exagerar - da luta que conduzia, das possibilidades e das capacidades dos povos que dirigia. Amílcar Cabral é o símbolo de tudo isso. O que marca ainda mais é a sua morte trágica. Apesar de tudo isso, não fugiu a uma morte trágica e isso também faz dele uma personalidade excepcional.

Lembra-se do primeiro dia em que conheceu Amílcar Cabral?

Quando conheci Amílcar Cabral já tinha tomado uma decisão, uma opção de integrar o partido que Amílcar Cabral dirigia. Depois desse encontro inicial, tivemos a oportunidade de conviver durante cerca de 12 anos. Isso deu-me a oportunidade conviver com ele, discutir com ele, debater com ele, de apreciar as suas qualidades de líder, apreciar as suas qualidades humanas. Tive essa oportunidade e as minhas conclusões derivam dessa convivência, mas também da avaliação que eu tenho estado a fazer do percurso dele.

Amílcar Cabral é para mim uma interrogação por que é que isso aconteceu: Por que motivo optou por isso? Por que motivo agiu assim? É sempre uma interrogação para mim. Para mim, há dois ou três conceitos. Nesse aspecto, a doação, a dádiva, o reconhecimento. Ando a reflectir à volta disso. Tenho gratidão por aquilo que fez, gratidão por aquilo que doou e reconhecimento por aquilo que fez.

Ele doou a sua vida?

O mais trágico é ter doado a vida. Isso é o final trágico de tudo isso. Esse final trágico, eu acho que talvez seja a razão da nossa ligação. A razão da minha dívida para com ele.

Que momentos mais marcantes viveu ao lado de Amílcar Cabral na luta pela independência?

Vivi vários momentos e, mais do que isso, tenho todas as correspondências trocadas com ele quando me encontrava no sul da Guiné. No simpósio estava a ver a plataforma apresentada para o Alfredo Caldeira e veio-me à memória o seguinte: afinal, quando ele foi interceptado no aeroporto de Orly, eu estava lá à espera dele, afinal a polícia francesa roubou-lhe os documentos que tinha, certamente algumas notas que tinha. Ele vinha da Suíça e polícia francesa roubou, retirou, mas o pior não era o ter roubado para uso próprio. O pior é ter enviado à PIDE essa documentação. Foi um momento extremamente complicado para mim, agora tenho os dados da polícia DGS, a polícia francesa tem os dados e posso avaliar os riscos que tínhamos corrido. Se ele foi interceptado depois Mantido, não diria detido porque seria exagerado utilizar a palavra detenção, eles identificaram que eu era companheiro dele. Quais os riscos que pairavam sobre mim? Ele podia ser mandado para Portugal. Eu podia ser preso.

Tinham consciência dos riscos que corriam na altura?

Não. Francamente, eu acho que fui nessa matéria - porque eu estive cerca de dez meses em França a fazer um trabalho clandestino. Talvez eu acreditasse que a polícia francesa não não se interessasse por aquilo que eu andava a fazer. Afinal, interessava-se, interceptou as minhas correspondências, interceptou o meu líder e tudo isso foi um momento de grande tensão e de grande risco.

Estávamos em 1968, mas eu tinha estado em França durante todo o ano de 65. Não diria que presenciei nem testemunhei, mas tive conhecimento directo do rapto do Ben Barka, que era o líder da oposição, líder esquerda da oposição marroquina, era o presidente da comissão organizadora da Conferência Tricontinental, foi raptado em França, numa outra avenida do Quartier Latin, é raptado em pleno Paris e desaparece para sempre. Quando aconteceu esse acidente ou incidente com Amílcar Cabral, eu lembrei me imediatamente do destino do Ben Barka. Esse foi o momento de grande tensão, mas ao mesmo tempo teríamos de ter alguma coragem para tomar as iniciativas que pudessem oferecer-lhe a garantia de que não seria preso e enviado a Portugal.

Há pouco falou da troca de correspondências quando se encontrava no sul da Guiné com Amílcar Cabral. Do que é que falavam na altura?

Já falava da luta armada na Guiné e dos objectivos que tínhamos em vista, era uma correspondência operativa sobre aquilo que nós deveríamos fazer, sobre aquilo que eu devia fazer, sobre algumas operações que ele achava que nós devíamos elaborar. Uma dessas cartas fala precisamente da operação que veio constituir o fim da guerra, que era o ataque ou assalto ao quartel de Guileje, no sul da Guiné. Houve três correspondências em que insistia nessa questão que era preciso resolver o problema de Guileje, que nós conseguimos resolver quatro meses após a sua morte.

Que problema era esse?

O problema é o facto de haver um quartel que devíamos eliminar. Esse era o desafio. Se não é problema, era o desafio. A operação decorre de Março a Maio 1973 e organizámos a operação fins de Fevereiro, início de Março até 22 de Maio de 1973. Foi o golpe final e o abandono do quartel pelas tropas portuguesas.

De que forma Cabral conciliava a luta armada, a diplomacia e a formação política do povo?

O Cabral era um líder excepcional porque, para além de tudo isso, ele formava-se, melhorava as suas capacidades, melhorava os seus conhecimentos. Essa excepcionalidade de conseguir fazer tudo isso ao mesmo tempo. Nesse aspecto, lembro-me de também eu estava em Paris, naquela missão de 1965. Ele pediu me um livro de um antropólogo polaco, mas trabalhou na Inglaterra de nome Malinowski. Andei o Quartier Latin inteiro para encontrar esse livro, até que o encontre. Ele disse Bom, tens de me arranjar e mandar esse livro. Encontrei o livro de Malinowski sobre uma das etnias da Nova Guiné. Isso é para dar ideia que, para além de tudo, ainda se cultivava, investigava. Aí está a sua excepcionalidade. A capacidade era muito maior do que a nossa para fazer tanta coisa ao mesmo tempo.

Ele ficou conhecido pela capacidade de unir diferentes grupos étnicos e culturais. Como é que ele conseguiu formar uma frente unida no contexto de uma luta diversificada?

Está claro que há perguntas para as quais não tenho resposta. A minha resposta vem da observação e da convivência pela entrega plena, completa. O espírito de entrega, a coerência, o seu sentido de compromisso, mas a sua fidelidade à causa. Só isso é que poderia inspirá-lo a fazer tudo isso ao mesmo tempo. Mas, ao mesmo tempo, posso introduzir um outro conceito ou uma outra avaliação é a ligação. Podemos chamar isso até o amor que ele tinha para os guineenses, para os cabo-verdianos, é esse amor, a identificação, o espírito de pertença, o sonho de ver esses povos livres.

Em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, decorre desde segunda-feira o Simpósio Internacional Amílcar Cabral. Numa altura em que já passaram mais de 50 anos da morte de Cabral, que legado é que ele deixa em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em África e no mundo?

O legado é interessante porque ia comentar como é que está a decorrer o simpósio. O interessante aqui é que o número de intervenientes, o número de conferencistas de Cabo Verde da Guiné em número elevado, significa que os jovens, a mensagem passou. A mensagem chegou. Caso não tivesse chegado, não haveria essa parte, a ideia, a presença ou pensamento de Amílcar Cabral está difundido. Veja tudo isso junto, diz-nos que, na verdade, Amílcar Cabral e seu pensamento está presente entre nós nas várias instituições de ensino. Para mim, esse é o lado mais importante.

O que é que significa para si Amílcar Cabral enquanto amigo e enquanto líder da libertação?

As nossas relações eram relações de amizade e de camaradagem. Diria que é algo que ultrapassa muita coisa porque nós corríamos o risco juntos, investíamos o que nós tínhamos nesse projecto e essa ligação e nós estávamos a correr o risco, mas sonhávamos o mesmo sonho.

Valeu a pena?

Acho que sim. Acho que valeu a pena pessoalmente. Toda a minha vida gira à volta desse projecto que é o projecto da libertação dos nossos países e ao mesmo tempo, o projecto da sua afirmação, mas também que é o projecto da mensagem de Amílcar Cabral: a mensagem da libertação. A mensagem que nós devemos pensar pelas nossas cabeças, mas nós devemos assumir o nosso destino.

O Miguel de Barros abordou essa questão da soberania, das nossas opções, da soberania, das nossas decisões. Nós devemos assumir como responsáveis pelo nosso futuro. Por vezes é extremamente complicado ou difícil porque há todo um movimento internacional no sentido de nos tirar, déposséder em francês, da nossa soberania de decisão, através dos métodos médicos e dos agentes mais diversos, de modo estamos sem saber, sem descobrir e estamos em competição permanente quanto ao futuro do mundo.

No início da entrevista falava das questões que se coloca, das respostas que ficaram por responder. Imagino que falava de quem disparou em 1973 contra Cabral. Acredita que tenha sido alguém dentro do partido do PAIGC?

A questão da traição nos movimentos de libertação, nas guerras, são fenómenos provocados pelos traidores. Ele são aqueles que são utilizados pelos nossos inimigos para trair a nossa causa e, eventualmente, assassinar os líderes. Foi o que aconteceu e Amílcar Cabral abordou a questão da traição de diversos ângulos: a primeira vez que ele aborda a questão foi em 1961 no Cairo, numa comunicação em que dizia que a crise africana é uma crise do conhecimento. Ele diz os imperialistas não dispensam os seus agentes, os traidores. Em 1961 já tinha abordado essa questão. Ele aborda essa questão da traição na homenagem a Kwame Nkrumah, em que aborda a questão do cancro, da traição. Isso dá-nos a ideia da dimensão do homem africano.

Ele aborda essa questão já num contexto interno, quando do assalto a Conacri, perguntamos por que é que os guineenses, depois de terem a independência, depois de ter ganho a dignidade da independência, da soberania, decidem trair a pessoa que encarna tudo isso Sékou Touré. Por que é que decidiram trair? O que é que faltava? Colocava-se a questão mas as instituições que nós criámos dão plena confiança às pessoas que dirigimos. A questão da confiança, a questão da desconfiança, o medo do futuro, mas isso vem de longos anos de dominação colonial que nos fez perder essa capacidade.

A traição é corrente no seio dos movimentos de libertação. O traidor, ou seja, aquele que ia assassinar Amílcar Cabral, teria que estar no nosso meio. Ele disse isso, alertou para isso várias vezes, não é nada de incomum que houvesse traição no nosso meio. O trabalho do nosso inimigo era precisamente criar traidores, alimentar traidores, fazer com que esses traidores traíssem a luta e isso é derivado da fraqueza enorme em matéria de consciência nacional, uma fraqueza enorme em matéria de dignidade e uma fraqueza enorme em matéria de confiança em si. São fraquezas que nos conduzem à traição.

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