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Tiago Guedes: “A dança deve ser um espelho do que se passa no mundo”


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É num momento histórico e de muita violência em diversas geografias que a arte e as instituições culturais devem tomar posição e assumir o seu “papel eminentemente político”, defende Tiago Guedes, o director artístico da Bienal de Dança de Lyon. Trata-se de um dos acontecimentos mais importantes da dança a nível mundial e posiciona-se como “um espelho do que se passa no mundo através dos corpos em cena”. A bienal arrancou a 6 de Setembro e decorre até 28 de Setembro, em Lyon, com 40 espectáculos de 14 países e muitos eventos paralelos. Fomos conversar com Tiago Guedes sobre esta 21ª edição.

Esta é a primeira edição da Bienal de Dança de Lyon assinada a 100% por Tiago Guedes, o seu director artístico, que assume que a arte e as grandes instituições culturais têm um “papel eminentemente político”. Aqui dança-se, mas não se está alheado ao mundo e há uma vontade de dessacralizar o lado institucional. O trabalho tem vindo a ser feito desde que começou a dirigir a bienal, há dois anos. O objectivo continua a ser o de “abrir o máximo de portas possíveis” para os artistas, para o público e para a dança. Tiago Guedes trouxe cinco curadores de cinco continentes para pensar outras formas de se fazer a dança. O português, que também lidera a Maison de la Danse e está na co-direcção da Bienal de Arte de Lyon, faz questão de sublinhar que convida artistas ainda desconhecidos dos programadores. Também gosta da ideia de os espectáculos ocuparem praças, museus e espaços menos comuns para palcos tradicionais. Quer, ainda, que o público veja, participe e conheça os nomes que estão a escrever a história contemporânea da dança.

Este ano, o programa tem espectáculos de 14 países, incluindo de vários artistas brasileiros, numa edição que coincide com a temporada cruzada Brasil-França. Também há peças de dois coreógrafos portugueses, Marco da Silva Ferreira e Tânia Carvalho, e do moçambicano Ídio Chichava.

RFI: A equipa e os artistas desta edição criaram um manifesto intitulado “Face à violência que atravessa o mundo, a dança como acto de liberdade”. Quer resumir-nos a mensagem deste manifesto?

Tiago Guedes, o director artístico da Bienal de Dança de Lyon: Sentimos necessidade de sublinhar que a dança, pela sua forma dialéctica, sem necessidade de tradução, sem necessidade de legendas, é uma linguagem universal que se pode conectar com toda a gente, e que os coreógrafos têm um espaço, um terreno para fazerem o que quiserem, serem influenciados pelo que quiserem e olharem para o mundo actual e transformá-lo de uma forma ou mais poética ou mais violenta, mas com uma linguagem universal. É importante também sublinhar que nós passamos um momento histórico, um momento político, geopolítico, onde os corpos estão em perigo em vários sítios, em várias geografias. Nós temos um Foco Brasil este ano, aliás, há um espectáculo de David Pontes e de Wallace Ferreira que fala sobre um corpo que tem de estar constantemente a defender-se, o que é ainda uma realidade muito presente no Brasil, nomeadamente em relação aos corpos trans.

A Bienal tem muito este discurso, este olhar sobre o que se passa hoje em dia. Então, achámos por bem fazer um texto que fala sobre isso, sobre essa liberdade. Um texto que sublinha também que, nestes grandes eventos, nós dançamos, mas não estamos alheados do mundo, antes pelo contrário. A dança deve ser um espelho do que se passa no mundo através dos corpos em cena. Esse texto ajudou-nos também ao que nós defendemos: estar do lado correcto, de onde as grandes instituições culturais também têm que estar, porque elas têm um poder de comunicação, de alerta, de influência e eu acho que é importante, nós temos o papel da arte que é um papel eminentemente político também.”

Falou na questão dos corpos, da necessidade de autodefesa, por exemplo. Que outros temas vão compondo esta Bienal que, este ano, é 100% assinada por si?

“A Bienal não é temática em si, não há um só tema. Ela é muito grande, ela tem na sua missão mostrar a grande diversidade que é a dança contemporânea, a dança que se faz hoje. A dança que se faz hoje é conectada com os dias de hoje e os dias de hoje têm uma abordagem muito diferente. Não é só uma abordagem política, é também os dias de hoje artísticos. Por exemplo, quando nós vemos um artista como o Christian Rizzo a fazer uma peça onde o que ele está interessado é de voltar a uma escrita coreográfica e super poética, super delineada, onde a intenção política não é de sublinhar um contexto social ou um contexto geográfico, mas - o que é bastante político, a meu ver - dar um tempo de suspensão às pessoas para elas poderem acalmar, pensar e poderem fazer um ‘reset’ nelas próprias também. Isso é altamente político numa sociedade completamente contaminada por informação, por imagens e tudo isso. Então, o que é bastante interessante é estas várias portas de entrada.

Depois há aqui também vários espectáculos – o que tem a ver também com a nossa organização que organiza a Bienal de Arte Contemporânea e de Dança - espectáculos que cruzam disciplinas e, nomeadamente, se cruzam com as artes visuais, onde as matérias coreográficas coabitam com as matérias visuais. Por exemplo, o espectáculo ‘Monument 0.10’, da artista húngara Eszter Salomon, que faz o seu espetáculo no TNP, mas que apresenta também uma instalação vídeo aqui na CIG. Ou o espectáculo da Lia Rodrigues, que trabalha só com matérias, não compraram nada, ou seja, esta ideia também de reciclagem. Todos os materiais da peça, os materiais coreográficos e os materiais físicos são reciclados, é só o que eles tinham à volta deles ou dentro deles.

Ou, por exemplo, a performance-instalação da Clarice Lima, que se chama ‘Bosque’, no espaço público, onde os corpos são suportes de uma imagem visual completamente conectada uns com os outros. Uma ideia de bosque, uma ideia de árvores que se conectam às outras. É uma paisagem que é colocada no espaço público, mas feita através do corpo. Portanto, mesmo quando há uma relação muito visual nestes projectos, o corpo está sempre muito presente e o corpo é o suporte de todas estas coisas.”

Ainda há espaço na Bienal de Dança de Lyon de se darem a conhecer novos nomes? Numa das conferências, ouvi a crítica que as bienais convidam programadores, mas estes já estão a apoiar espectáculos e acaba por ser tudo um pouco ensimesmado…

“Não só há espaço, como faz parte da nossa missão, em cada edição, apresentar novos artistas. Há mesmo uma linha do nosso programa que se chama ‘New Voices’ que são quatro jovens coreógrafos que se apresentam pela primeira vez na Bienal e em que o público de Lyon e os programadores não os conhecem. Em cada Bienal nós lançamos novos nomes e novos coreógrafos.”

O espaço Fórum também constitui o ADN da Bienal de Tiago Guedes. O que é que o Fórum trouxe?

“O Fórum é um projeto idealizado quando eu fiz a minha candidatura para Lyon, há três anos, e ele partiu desta ideia de que a Bienal de Dança é uma bienal europeia, eurocentrada - no bom sentido, até pelo contexto onde ainda se pode produzir com apoios, com uma força e uma pujança - mas ela olha o mundo a partir do centro da Europa. A dança está em todo o lado. Está nas cidades, está nas aldeias, está nos territórios autóctones, está em sítios o mais remotos possível. E eu achei que seria muito interessante a Bienal se poder inspirar de outras práticas e de outras visões do mundo, de outros artistas, de outros curadores que trabalham localmente num contexto muito afastado do contexto europeu.

Quando tu trazes uma companhia como Marrugeku, uma companhia aborígene da Austrália, a relação que eles têm com o tempo, com as instituições, com o dinheiro, é muito diferente. Ou, por exemplo, o colectivo Bomber Crew, um colectivo de artistas brasileiros que trabalham num estado completamente periférico, o estado do Piauí, onde cruzam também um trabalho muito coreográfico, mas também de vídeo e também de skate, sobre questões de ocupação social, ocupação habitacional. É muito interessante. São outras narrativas e outros discursos que na Europa não estamos habituados e o Fórum foi um bocadinho esta ideia de imaginar um evento que se instala na Bienal, mas que a organização da Bienal não tem mão nele. E isso é muito interessante. Ou seja, imaginar os contextos em cadeia de reacção.

O meu papel foi imaginar teoricamente o que poderia ser este projecto. Ele é muito diferente hoje do que eu pensei quando fiz a minha candidatura. O único gesto que eu fiz - assisti a várias conversas, mas sempre de uma forma muito discreta - foi convidar cinco curadores de cinco territórios diferentes, cinco continentes, Austrália, Taiwan, Moçambique, Brasil e Estados Unidos. Depois, cada um deles convidou os seus artistas, imaginaram as suas temáticas, imaginaram o que é que seria a ocupação deste sítio com encontros, conferências, experiências sensoriais, instalações. Eu estou muito contente porque esse projecto deu uma textura à bienal que a bienal não tinha, a bienal era muito centrada nos espectáculos, e fez com que o público e os curadores pudessem ocupar também o seu dia com outras formas de descobrir obras coreográficas, não através do que vêem nos palcos, mas através do que podem assistir num filme, do que podem discutir numa conferência através de troca de ideias, do encontro com os artistas de outra forma. Isso é mesmo o projecto que nós queremos desenvolver e tornar um pilar da Bienal de Lyon.”

Na Bienal de 2027, quem serão os curadores?

“Não posso dizer ainda, não está decidido.”

A ideia de ocupação que falou é uma ideia que parece cara ao Tiago Guedes. Esta ideia de não se restringir à bela sala de teatro é para manter? O que é que representa?

“Ela representa uma abertura da Bienal, uma dessacralização da Bienal, uma abertura a todos os públicos. A Bienal é paradoxal no bom sentido. Ela é muito popular com a sua enorme Parada de abertura, com vários projectos que nós apresentamos no espaço público, vários projectos também participativos, onde as pessoas podem participar, mas depois ela também tem um lado de pesquisa, muito de descobrir novas criações, de lançar novos artistas e é neste equilíbrio que ela tem que se encontrar.

O que nós estamos a tentar fazer nesta edição de uma forma até por vezes caótica, no bom sentido, para mim, é abrir o máximo de portas possíveis e pôr o máximo de ‘layers’, camadas possíveis na Bienal, para podermos fazer uma reflexão sobre o que há a burilar. Sabendo nós que ela terá sempre estes quatro eixos principais: os espectáculos; a reflexão com o Fórum; a formação, algo muito importante para nós. Nesta edição, temos 20 acções que os jovens bailarinos e bailarinas podem fazer com os coreógrafos desde masterclasses, workshops e muitas outras coisas. Podem fazer aulas de manhã com um coreógrafo da Bienal e à noite ir ver o seu espectáculo. E a parte do lado participativo, ou seja, projectos artísticos onde o público possa entrar nesse universo de outra forma. Estes quatro eixos vão ser eixos a desenvolver nos próximos anos.”

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