As revistas francesas destacam nesta semana o chamado "caso de Mazan", em referência à cidade onde Gisèle Pelicot foi sedada pelo marido para ser estuprada por mais de 50 homens ao longo de dez anos. A revista Nouvel Obs traz o assunto em sua capa, classificando como uma “onda de choque” na sociedade francesa, enquanto a L’Express analisa o depoimento do psicólogo que atendeu a vítima.
O caso emblemático de submissão química ganhou repercussão nacional e internacional no início deste mês, quando começou o julgamento, sensibilizando os franceses. O processo começou em 2 de setembro e seguirá durante quatro meses, em um tribunal penal composto exclusivamente por magistrados profissionais em Avignon, no sul da França, a 700 km de Paris.
“Fora do comum em termos do número de réus envolvidos, o caso Pelicot mais uma vez levanta a questão da banalização da violência sexual e de gênero. De forma mais ampla, ele levanta questões sobre desigualdades sistêmicas nas relações entre mulheres e homens. E ecoa debates recentes sobre a definição legal de consentimento e a noção de uma cultura do estupro", começa dizendo a reportagem de capa da revista Nouvel Obs.
As agressões sexuais sofridas por Gisèle Pelicot ocorreram entre 2011 e 2020. Ao longo dos quatro meses de julgamento, serão ouvidos 51 acusados, incluindo o agora ex-marido da vítima, Dominique Pelicot, acusado de drogá-la para que os outros homens pudessem estuprá-la na casa da família.
A revista Nouvel Obs destaca a repercussão do caso na França, lembrando que “o assunto está em toda a parte. Na mídia e nas redes sociais, as audiências são noticiadas quase em tempo real”. A semanal argumenta que, ao pautar o “debate público”, o caso de Mazan extrapola as questões jurídicas envolvendo o julgamento, mas também levanta novamente debates sobre as relações de gênero na sociedade, como reflexões a respeito da “dominação masculina sobre as mulheres”.
“O caso de Mazan traz ao debate público noções anteriormente reservadas aos círculos ativistas feministas: como se exerce a dominação masculina sobre as mulheres? O que é masculinidade tóxica? Existe uma ‘cultura do estupro’ na França e em que consiste? Que lugar deve ser dado ao consentimento na lei? Este julgamento finalmente revela como o estupro, um crime eminente intimo, é fundamentalmente um assunto político”, prossegue Nouvel Obs. A revista lembra que 94 mil mulheres são vítimas de estupro ou tentativa de violação todos os anos na França.
“Especialista sob influência psicanalítica”
"Especialista sob influência psicanalítica” é o titulo da matéria da publicação L’Express, que se concentra no depoimento dado há 20 dias pelo psicólogo Bruno Daunizeau, que atendeu a vítima Gisèle Pelicot. Apontando uma eventual falta de “base cientifica”, a revista questiona o método utilizado pelo especialista para analisar a paciente e determinar o “impacto traumático” sofrido por ela.
“Bruno Daunizeau, psicólogo especialista e psicanalista, compareceu perante o tribunal criminal de Vaucluse, em Avignon. Seu papel: determinar o impacto traumático de Gisèle Pelicot ao saber que seu marido a estava drogando para que homens a estuprassem, durante dez anos (...) Um trecho de sua apresentação chama a atenção: durante o encontro com Gisèle Pelicot, o psicólogo disse que realizou o teste da página em branco para medir seu grau de ‘influenciabilidade’”, começa dizendo a reportagem.
“Pedi que ela assinasse um documento em branco, o que ela fez, [um sinal] de vontade de seguir a instruções sem questioná-las, por respeito ou confiança”, explicou o psicólogo em seu depoimento.
Em seguida, o especialista prossegue afirmando que "98% das pessoas encontram-se nesta configuração durante o teste, os 2% que se recusam mostram, pelo contrário, 'uma maior relutância em agir', o que pode indicar independência de espírito, uma desconfiança mais acentuada, ou um desejo de controlar a situação".
De acordo com Mickaël Morlet-Rivelli, outro especialista ouvido pela revista, o teste em questão não apresenta “base científica, e relembra outras teorias perigosas”, arriscando soar como “uma forma de dizer que é uma invenção da sua parte”.
“Assim que um instrumento de avaliação psicológica não atende aos critérios psicométricos estabelecidos há várias décadas pela pesquisa, não pode ser considerado válido (...). O discurso deste psicólogo especialista demonstra, mais uma vez, a distância entre a prática clínica ‘à francesa’, baseada principalmente na intuição ou na experiência, e uma prática baseada em evidências científicas”, critica Mickaël, psicólogo e jurista.