As mortes trágicas de Fernanda Lind, influenciadora digital brasileira de 31 anos, e do ciclista francês Paul Varry, 27 anos, ambos atropelados nesta semana, na região parisiense, por motoristas que desrespeitaram as regras do trânsito provocam um amplo debate no país. Estudos têm demonstrado que os franceses estão mais agressivos ao volante.
A percepção de que a agressividade no trânsito em Paris piorou é compartilhada por franceses e estrangeiros que residem há algum tempo no país. A influencer brasileira Fernanda Carolina Lind Silva foi atropelada quando atravessava uma faixa de pedestres, às 9h de quarta-feira (16), em uma área nobre dos subúrbios da capital. Com o forte impacto do carro, ela sofreu um grave traumatismo craniano e teve morte cerebral declarada algumas horas depois de ser socorrida.
O outro acidente foi de uma violência raramente vista na capital francesa. Na véspera da morte da brasileira, um motorista de 52 anos, dirigindo um SUV Mercedes-Benz, com a filha de 16 anos no carro, invadiu uma ciclofaixa nas proximidades da igreja Madeleine, em Paris, para "escapar do trânsito", segundo declarou à polícia, pois “estava atrasado para levar a filha ao médico”. Ao invadir a faixa reservada às bicicletas, o motorista apressado passou com o carro em cima do pé de um ciclista militante. Os dois tiveram um bate-boca e na hora de ir embora, o motorista atropelou intencionalmente o rapaz de 27 anos, que morreu de parada cardíaca no local.
Na tarde desta sexta-feira (18), este motorista foi indiciado por homicídio doloso, ou seja, assassinato, e deverá permanecer em prisão preventiva até seu julgamento.
A disputa por prioridade no trânsito piorou com a instalação de ciclovias em Paris. Por falta de espaço, as ciclofaixas predominam e muitas são de mão dupla, às vezes nas duas margens de uma via pública, obrigando motoristas e ciclistas a uma coexistência que se tornou uma guerra permanente.
Existem placas de sinalização, mas das duas partes existem abusos: ciclistas que não respeitam as regras, invadem faixas de circulação de carros – por se sentirem "mais éticos" e preocupados em não agravar a crise climática – e motoristas que descontam nos pedestres e ciclistas o aumento do trânsito pela redução das faixas de circulação.
Desafio para municipalidades
É um desafio para as cidades enfrentar essa fase de adaptação. Como na região parisiense o trânsito é bastante denso, os motoristas estão cada vez mais irritados.
Com a repercussão das mortes da brasileira e do ciclista, o psicólogo e pesquisador Jean-Pascal Assailly, membro do comitê de especialistas do Conselho Nacional de Segurança Viária, confirmou que existe uma correlação entre densidade de tráfego e agressividade do motorista.
Em países como Holanda, Dinamarca, Alemanha ou Suécia, com mais experiência na integração de ciclovias, a fluidez é maior e há menos acidentes letais. Nesses países, a questão do respeito às leis também é mais consensual na sociedade. Estudos de dez anos atrás já mostravam que franceses e italianos eram mais agressivos no trânsito do que motoristas suecos, alemães, ingleses e espanhóis.
O especialista francês do Conselho Nacional de Segurança Viária diz que o comportamento do motorista piorou na França com as comodidades dos carros novos. Segundo ele, o carro se tornou um objeto tão confortável, "com telas para ver filmes, ouvir música, que o motorista se isola do exterior e perde a noção da velocidade". Alguns motoristas simplesmente "esquecem" a existência do outro na rua.
Na França, os homens estão na origem de 75% dos acidentes. Dos 25% de acidentes causados por mulheres, nenhum envolve agressão, do tipo bater o carro intencionalmente em alguém para ferir ou matar, como aconteceu com o ciclista em Paris.
Morte de brasileira tem forte repercussão
O jornal Le Parisien, que tem edições locais para diferentes subúrbios de Paris, presta uma homenagem à brasileira, nesta sexta-feira, na capa do suplemento vendido na área onde ela morreu.
O jornal entrevista o marido dela, Pedro Angelo Abatayguara Rosal, que conta a vida do casal desde que se mudaram para a França em 2018, para fazer mestrado. A manchete diz que ‘Fernanda teve a vida arruinada’ (La vie fauchée de Fernanda) no momento mais feliz da trajetória do casal. Os dois, muito bem empregados, tinham acabado de comprar um apartamento em Saint-Cloud, ao lado de um hipódromo que tem pista de corrida e ciclovia demarcadas. Fernanda foi atropelada numa faixa de pedestres de um cruzamento sem farol, por imprudência do motorista, que também é investigado por homicídio.
Mas o que mais surpreendeu a imprensa francesa foi a generosidade da família em relação à doação de órgãos. Neste mês de outubro, há 21.866 pacientes inscritos na lista de espera de transplantes em todo o país e desse total, 11.422 são pessoas prontas para receber um órgão assim que o doador compatível aparecer.
Doação de órgãos marca pela generosidade
Tanto o marido quanto a irmã de Fernanda, Aline, disseram que os órgãos doados pela influencer – coração, fígado, pâncreas, córnea e rins – foram transplantados, dando a várias pessoas a chance de continuar vivendo.
Para um transplante de rim, o de maior demanda, há mais de 3.300 pessoas na fila, sendo que é o que parentes podem doar com mais facilidade, por compatibilidade genética. Para um coração, a espera média é de quatro meses.
Os médicos apontam um paradoxo: cerca de 80% dos franceses afirmam ser a favor da doação de órgãos, mas menos da metade comunicam essa decisão à família. Embora todas as pessoas sejam doadoras potenciais, a menos que tenham deixado registrado a recusa em doar no cadastro nacional de doações, os médicos sempre confirmam a vontade com os familiares. No caso da brasileira, o marido e a família dela confirmaram esse desejo.
Em 2023, havia 36% de franceses que registraram oficialmente a recusa em doar. Os principais motivos de resistência alegados são a desconfiança nos médicos, o receio de que os órgãos sejam usados para pesquisa, e não para salvar a vida de alguém, e crenças religiosas. O Ministério da Saúde reconhece que ainda é preciso trabalhar o assunto em campanhas de sensibilização.
Por essas razões, a morte de Fernanda Lind marca os franceses e brasileiros que a seguiam no perfil @parislowcost no Instagram, onde dava dicas de turismo na capital francesa: um exemplo de generosidade e amor pelo país de adoção.