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Associação cabo-verdiana em França junta jovens para praticar crioulo e cozinhar pastéis de milho


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A Associação Etoiles du Tarrafal, que actua em França e em Cabo Verde, uniu em Paris a língua e a gastronomia cabo-verdiana para aproximar um grupo de jovens franco-cabo-verdianos das suas origens. Entre batata doce, farinha de milho e atum, foram escapando algumas palavras em crioulo que trouxeram de volta os sons e os sabores da infância.

Em Cabo Verde, a oficialização do crioulo como língua oficial já é uma certeza nos 50 anos da independência do país. Para os filhos da diáspora cabo-verdiana, o crioulo, mesmo sem reconhecimento oficial é o fio condutor que os leva directamente às suas raízes. É a língua dos afectos, das férias em Cabo Verde, da música, da família. No entanto, esse fio está a desvanecer, já que em muitas famílias cabo-verdianas em França, o crioulo foi sendo substituído gradualmente pelo francês como o idioma familiar.

Assim, a Associação Etoiles du Tarrafal, ou Estrelas do Tarrafal, está a ajudar 15 jovens de origem cabo-verdiana a voltarem às suas raízes promovendo um curso de crioulo online, uma vez por semana. Para quebrar as barreiras da internet, a associação promove também encontros em pessoa. A RFI foi acompanhar um workshop de cozinha, em Paris, onde vários alunos das aulas de crioulo fizeram pastéis de milho pela primeira vez.

Elodie Mendes Tavares, vice-presidente da associação, explicou como surgiu a ideia de fazer uma aula de culinária.

"As aulas de crioulo e estes momentos de partilha têm a ver com a nossa própria história pessoal, porque somos filhos de pais cabo-verdianos que nasceram em Cabo Verde e vieram para a França e nós, como segunda, terceira e até quarta geração temos algumas lacunas. Muitos de nós não estão à vontade para se expressarem em crioulo e isso afecta-nos especialmente quando vamos a Cabo Verde ou quando falamos com cabo-verdianos. Esta aula de culinária vem na continuidade das aulas de crioulo que criámos. Organizamos aulas de crioulo uma vez por semana, on-line, com um grupo de cerca de quinze alunos. Acabámos por criar estes eventos fora das aulas para que os alunos pudessem continuar a praticar o crioulo e também para que pudessem mergulhar um pouco mais na cultura cabo-verdiana. As aulas de culinária pareceram uma boa ideia como actividade de grupo, para continuar a promover o diálogo em crioulo e falar então sobre a cultura cabo-verdiana", disse a líder associativa.

Já com quase oito meses de aulas, os alunos, como Jenny Varela, que vive na região parisiense, sentem progressos e mais legítimos como cabo-verdianos.

"Decidi aprender crioulo porque nasci na França e cresci com minha mãe francesa e entendia algumas palavras, mas não sabia como conversar quando ia de férias. Isso era muito frustrante. Em casa só falávamos francês em casa e lembro-me de poucas palavras de crioulo. Desde que estou nas aulas, sinto que fiz muitos progressos, tanto na escrita quanto na oralidade. Sinto-me menos intimidada quando falo crioulo agora. Com estes meses de aulas de crioulo, sinto-me mais legítima. Eu sinto-me muito mais legítima, já que aqui muitas pessoas me questionam se venho das ilhas da Martinica ou Reunião ou de outros territórios ultramarinos franceses e não, sou de Cabo Verde", declarou a jovem aluna.

Esta aula de cozinha foi liderada por Ayni Duarte, mais conhecida nas redes sociais como Sabura Kriolinha, e uma das mais conhecidas cozinheiras de comida cabo-verdiana na região de Paris. Ayni já nasceu em França e começou a cozinhar ainda criança para o pai, que trabalhava fora todo o dia.

"Eu cozinho desde pequena, aprendi a cozinhar arroz aos sete ou oito anos de idade. Eu já sabia como fazer arroz para o meu pai, assim, quando ele saía do trabalho, era eu que preparava a comida. E foi assim. Foi assim que aprendi a cozinhar e aprendi a cozinhar sozinha, a fazer coisas. Eu invento e eu acho que corre bem porque misturo os sabores e, no fim, dá um gosto especial. O importante é testar e ver o que funciona em termos de sabor", indicou a especialista em cozinha cabo-verdiana.

Para Ayni Duarte casar a cozinha tradicional como os pastéis de milho e a aprendizagem do crioulo é algo óbvio, já que através dos sabores também se pode viajar.

"É possível viajar através da cozinha porque há muitos sabores a descobrir. Há muitos produtos saudáveis em Cabo Verde, é diferente da França. Como dizemos nos países africanos, tudo vem da terra, portanto é saudável e natural. Simplesmente, é preciso amar a culinária. E, dentro do possível, podemos adaptá-la porque eu já fiz isso. Por exemplo, agora mesmo estamos a fazer esta aula sobre pastéis, que são pastéis de milho feitos de batata-doce e farinha de milho e com atum. Já experimentei com carne e também não são nada maus. Então, cada um coloca seu próprio sabor na cozinha e é isso que a torna original. Quanto a vários pratos cabo-verdianos, cada região e cada ilha fazem-nos de forma diferente. Por exemplo, na ilha de Santiago, é feito com batata-doce e na ilha de São Vicente, por exemplo, é feito apenas com farinha e água", explicou.

Com uma actividade social e humanitária em Cabo Verde há vários anos, a Associação Etoiles du Tarrafal quer também ter uma forte intervenção em França, junto da diáspora, e unir os franco-cabo-verdianos ao seu país de origem quer seja através da língua, da gastronomia ou da cultura.

"Nós já suspeitávamos que a falta de bases em crioulo era um ponto em comum entre muitas pessoas da segunda e terceira gerações. Sabemos que há uma necessidade real de aprender um pouco mais sobre a nossa própria cultura. Mas é verdade que, quando oferecemos o curso, recebemos imediatamente solicitações de informações e inscrições. Ficámos surpreendidas, mas, de alguma forma, já esperávamos. As aulas de crioulo e esta aula de culinária são a nossa contribuição para que não percamos a nossa cultura. Estamos a tentar passar este conhecimento para as próximas gerações e como associação é importante falarmos da nossa cultura em França, até porque o que aconteceu connosco foi que os nossos pais nos falavam em crioulo e nós já só falávamos francês. E sabemos que perpetuar esse tipo de comportamento também significa perder nossa identidade. Mesmo tendo essa consciência, quem tem filhos faz o esforço, mas nem sempre é fácil. É, no entanto, extremamente importante", disse Elodie Mendes Tavares.

Estas aulas abrem agora o caminho a que mais jovens em França com raízes cabo-verdianas se sintam mais próximos do país de origem dos seus pais.

"Hoje sinto-me muito mais próxima de Cabo Verde. Já não tenho vergonha de falar com outras pessoas e o nosso professor fez questão de nos falar também da história de Cabo Verde e da sua geografia, assim como das suas tradicionais. O crioulo é muito mais do que uma língua", concluiu Jenny Varela.

Os pastéis de midjo fizeram a unanimidade entre todos os presentes e muitos alunos já prometeram continuar as aulas de crioulo para o próximo ano.

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