O filme Les Habitants estreou esta segunda-feira, 24 de Março, no festival documentário Cinéma du Réel, em Paris. A realizadora Maureen Fazendeiro filma a cidade onde cresceu, Périgny, na região parisiense, onde a instalação de um acampamento de ciganos gera xenofobia e divisões. Através das cartas que recebe da sua mãe, a realizadora retrata o dia-a-dia desta cidade e a solidariedade de alguns habitantes. Maureen Fazendeiro faz um filme sobre "a negação do mal-estar, da pobreza — tudo aquilo que a sociedade não consegue integrar, acolher e acaba por marginalizar".
RFI: O filme Les Habitants estreou no Festival de Documentário Cinema du Réel, em Paris. O que a motivou a fazer um filme sobre Périgny-sur-Yerres e sobre a comunidade cigana?
Maureen Fazendeiro: Eu vivo em Portugal há dez anos e vejo França ao longe. A minha mãe nunca me escreve cartas, mas quando apareceu uma comunidade de pessoas ciganas na cidade onde ela vive, sentiu a necessidade de me contar o que se estava a passar. A primeira carta foi enviada de maneira completamente espontânea, pedi-lhe para continuar a escrever sempre que fosse visitar o acampamento, porque senti que havia algo a acontecer naquela cidade que, ao mesmo tempo, era muito específico. Era a história da minha mãe, mas também uma história muito comum em França, nos arredores das grandes cidades: famílias que se instalam, constroem bairros de lata e, poucos meses depois, são expulsas, vivendo neste ciclo desde a entrada da Roménia na União Europeia, sem que haja nenhuma transformação, nenhuma reacção ao nível da sociedade, como se fosse algo aceite — que as coisas acontecem assim.
Como se fosse normal.
Sim, como se fosse normal. E foi isso que quis retratar no filme. Ou seja, a minha mãe conta, nas cartas, o que aconteceu durante os meses em que essas pessoas estavam a viver naquela cidade. Nós vemos o dia-a-dia, a banalidade do quotidiano, tal e qual como é. E a verdade é que o que aconteceu nessa cidade acontece em todas as outras. São 3.000 habitantes e há apenas dez pessoas que vão ver se precisam de mantas, de comida, de alguma coisa. Eu quis retratar esses gestos. Não gosto de falar de doença, mas, para mim, havia um sintoma da sociedade francesa. Ou seja, o filme não é só sobre a comunidade cigana que não é bem recebida, é sobre a maneira como olhamos para os outros, como recebemos aqueles que têm um modo de vida diferente. Acho que o racismo está muito presente na sociedade francesa, e foi isso que quis retratar no filme.
É também um filme sobre não olhar para o outro?
Sim, é um filme sobre não querer ver os outros. A minha mãe explica, nas cartas, que quase toda a gente naquela cidade queria que eles fossem expulsos, usando palavras muito duras para com essas comunidades. Mas ninguém foi lá ver. Eles estavam escondidos atrás de uma zona de bosque, e ninguém se preocupou em perceber realmente quem eram. Porque acho que, a partir do momento em que fossem ver, perceberiam que são pessoas que vivem numa situação difícil. Eu quis fazer um filme sobre a negação do mal-estar, da pobreza — tudo aquilo que a nossa sociedade não consegue integrar, acolher e acaba por marginalizar.
O seu filme Les Habitants procura retratar o dia-a-dia desta comunidade sem a mostrar. Essa comunidade é invisível. O que vemos, durante pouco mais de 40 minutos, é o dia-a-dia da sua mãe, Valérie, que tem um olhar curioso e se aproxima dessa comunidade. Em que momento, na troca de correspondências com a sua mãe, percebeu que havia um filme para fazer?
Acho que logo na primeira carta percebi que não sabia se havia um filme, mas havia algo a explorar. Quando lhe pedi para continuar a escrever, ainda não sabia se conseguiria fazer um filme ou que tipo de filme seria, mas queria perceber melhor. As cartas que ela me escreveu tinham descrições muito concretas dos lugares e de tudo o que ela estava a viver. Ela ia buscar roupa suja ao acampamento para lavar em casa e devolvê-la depois. Ia todas as semanas tratar da roupa das pessoas. Achei que as descrições eram tão detalhadas que, através delas, eu já conseguia visualizar tudo. Por isso, percebi que não precisava de filmar o acampamento, mas sim outra coisa: o resto da cidade que decidiu não ver essa comunidade e a forma como essas pessoas vivem. A estrutura do filme só começou a ganhar forma para mim depois de tudo ter terminado — depois de parar de receber cartas, depois da expulsão. Foi então que comecei a filmar e a procurar uma outra maneira de olhar para aquela paisagem.
As imagens do filme são muito bonitas. São imagens da natureza, do renascer, da construção. Como é que as escolheu?
Procurei explorar a cidade como se fosse um lugar que não conhecia. Aprendi coisas que nem sequer sabia. Por exemplo, que, nos anos 70, a cidade teve uma produção de flores muito importante, exportando rosas para Paris. Isso explica por que havia tantas estufas abandonadas onde as pessoas ciganas montaram o acampamento. Também descobri que as ruas daquela cidade têm nomes de flores. Compreendi melhor a história: campos transformados em estufas para produzir flores lindas, depois abandonadas durante uma crise económica, quando a produção foi deslocada para a Índia e para outros países. O único espaço abandonado que ainda estava de pé foi precisamente onde os ciganos tentaram instalar-se. Há algo de irónico nisso. A rua que ladeava o acampamento chamava-se "Allee de l’Europe" (Rua da Europa), e era exactamente ali que os romenos, não aceites, tentaram viver.
Esse acampamento acabou por ser desmantelado em 2018. Acompanhou a história da chegada desta comunidade cigana ao acampamento e ao seu desmantelamento. Chegou a filmar o acampamento, mas não o mostra no filme. Porquê?
Sim, fui ao acampamento, conversei com eles, ajudei a minha mãe a ajudar. Mas não achei que mostrar a história de uma relação individual tornaria o filme mais impactante. Eu não acho que o cinema mude a realidade, por isso quis fazer um filme mais seco e talvez mais duro. O final do filme é muito duro, porque percebemos que este é um ciclo sem fim. As cartas terminam porque as pessoas se vão embora, e o filme quase tenta procurá-las, mas elas já não estão lá. Esse fim deixa-me sempre zangada, porque reflecte o ciclo infernal que estas pessoas vivem.
O seu filme propõe uma reflexão ao público. Como espera que ele reaja?
Espero que o filme seja um espaço para o espectador pensar sobre o seu papel na sociedade. Não quero impor uma opinião, mas sim proporcionar um espaço de reflexão.
De que forma é que a sua história pessoal, o facto de ter crescido nesta cidade, influenciou a forma como aborda o tema da habitação e da integração?
Bom, eu tenho uma relação complexa com essa cidade porque não foi o melhor lugar para ser adolescente. É muito estranho como essas cidades são construídas sem nenhum lugar para as pessoas estarem juntas. Acho que isso também tem a ver com esse afastamento e essa impossibilidade de se relacionar com os outros. O individualismo é um modelo que domina essa cidade, até na sua construção e na maneira como as pessoas não estão juntas, porque nem sequer há um lugar para estarem juntas.
Apesar de tudo, tentei filmar todos os lugares onde as pessoas estavam, mas são muito poucos – uma cascata, uma ponte. Mas não existem cafés, não existem padarias, não há uma vida social local ou, se há, é muito fraca. Nunca pensei que ia filmar esta cidade antes de isso acontecer e, quando aconteceu, achei que tinha que o fazer.
Porque é uma cidade também de imigração, não é?
É uma cidade de imigração. Todos os arredores de Paris são, não é? Espanhóis, portugueses, italianos que chegaram nos anos 60 e 70 ficaram mais perto de Paris. Depois, com o tempo, segunda e terceira gerações foram-se afastando de Paris e ocupando estas zonas mais suburbanas com casas.
Eu questionei um bocadinho o lugar da minha família nesta cidade e o lugar das famílias romenas. A minha mãe escrevia-me: "Eles são como nós". Ela estava a perceber que eles poderiam ser como o meu avô, que chegou ao final dos anos 60 a França. Ou seja, havia um paralelo entre a minha história familiar e o que estava a acontecer agora. Só que, entretanto, os portugueses já se integraram na sociedade e agora estava a ver outra comunidade que ainda não tinha lugar na sociedade francesa.
Acha que o facto de termos uma família imigrante nos leva a ter um olhar mais atento em relação às novas comunidades imigrantes?
Infelizmente, acho que não. É uma coisa muito triste, mas vejo esse medo. Acho que o filme também fala disso, não é? Do medo do outro. Parece quase que há um receio de que esses recém-chegados ocupem o lugar que nós conquistámos.
Essa cidade tem resultados eleitorais em que a extrema-direita é sempre muito forte. Apesar de serem cidades com franceses – são franceses –, quase toda a gente vem de outras origens, tem uma história de imigração. Para mim, é espantoso como esquecemos o nosso percurso, o percurso da nossa família, e como, para defender aquilo que conquistámos, fazemos quase o contrário do que deveríamos fazer ao pensar na nossa história.
Les Habitants estreou na segunda-feira aqui no Festival do Réel. O seu filme está em competição. Como é que foi apresentá-lo pela primeira vez ao público?
Sim, foi uma noite bonita. Foi importante porque a minha mãe estava na sala. Ela escreveu-me cartas, assim como outras mulheres que foram visitar o acampamento, e elas também estavam presentes. A equipa também estava lá. Foi uma noite bonita. Acho que o filme foi bem recebido.
De que forma acompanha e assiste, mesmo à distância, uma vez que vive em Portugal, aos sucessivos cortes orçamentais deste governo? O Orçamento do Estado para a Cultura deste ano teve um corte de 50 milhões de euros. Isto é grave?
É grave. Muito grave, e é sempre uma grande preocupação. Vivo há dez anos em Portugal e nós olhamos sempre para França quase como um modelo.
É grave porque não é um bom augúrio para os outros países. Ou seja, quando começa assim em França, o risco é que o resto também siga esse caminho. Acho que nem é só sobre França – podemos falar da Europa.
Muitos festivais de cinema, por exemplo, são um espaço muito importante para apresentar filmes fora do circuito comercial. Há muitas regiões que têm cortado orçamento e, no próximo ano, muitos festivais não sabem se vão conseguir continuar a funcionar e a existir. Isso é muito grave porque um festival de cinema ou todas as outras formas de arte são maneiras de nos juntarmos, de trocarmos ideias e de estarmos juntos numa sala de cinema.
E isso é muito importante. Quanto mais deixamos de estar juntos e de pensar juntos, mais ficamos isolados – e quanto mais ficamos isolados, mais a extrema-direita cresce.