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By RFI Português
The podcast currently has 220 episodes available.
Neste programa Artes , vamos apresentar o projecto "Livro Zunga", da ONG Vitoria Luami em Angola. Uma iniciativa implementada por Baltazar Cateco, que trabalha para permitir que o maior número de pessoas tenha acesso à leitura. Foi na municipalidade de Cazenga, na província de Luanda, que tudo começou.
Com o seu grupo de amigos, Baltazar Cateco organizou-se para concretizar os seus planos, sem imaginar um dia que a sua associação se tornaria uma organização não governamental reconhecida pelo Estado.
Baltazar Cateco : "Nunca imaginei e nunca pensei em legalizar. Nunca pensei. Eu comecei no orfanato, um orfanato onde eu normalmente organizo eventos solidários. Eu sempre realizei eventos solidários com grupo de amigos. Para que chegasse a legalizar foi porque pediram-me. Alguém que gostava de também fazer parte e queria uma documentação que mostrasse que nós estávamos organizados oficialmente. Então, nunca pensei na legalização porque não me dedico 100% só nesta organização. Foi uma evolução que eu nunca pensei. Mas as coisas acontecem naturalmente, circunstancialmente. "
Apaixonado pela leitura, Baltazar propõe acções solidárias em diversos locais da cidade, de forma a promover o acesso aos livros.
"Nestes espaços eu posso colocar uma biblioteca e as pessoas aí vão procurar e consultar a minha biblioteca. Mesmo que eles não terminam de ler um livro, porque não estarei lá permanentemente, mas pelo menos vão ter noção do que é ver o livro X ou a capa do livro. E poderia, ao contrário, é procurar numa outra biblioteca. "
Uma biblioteca itinerante que ocupa o espaço público e que dá acesso à colecção pessoal do Baltazar, sem uma temática específica, mas simplesmente e puramente pelo prazer da leitura e pela valorização da cultura literária angolana.
"Sempre gostei de ler e adquirir muitos livros. Adquiri muitos livros. Normalmente não tenho ainda doações nem peço muitas solicitações de pessoas para me doarem livros, mas eu procuro mesmo os livros que tenho e que eu adquiri. Os livros são também de referência, até de estimação, são os meus livros de autores angolanos a autores estrangeiros são poucos. Deve haver muita, muita, muita literatura de crianças."
Além desta iniciativa, a associação também actua nos hospitais tentando alegrar de forma lúdica o quotidiano das crianças internadas, nomeadamente no Hospital Américo Boavida, na capital angolana, Luanda.
"A iniciativa vem depois de uma festa que eu tinha dado no Américo Boavida. Foi uma sopa solidária que levávamos e notámos que tinha lá também crianças. Eu me apercebi que nos hospitais muitas crianças passam mais de um, dois anos e três não só internados, com uma grave doença psicológica que não lhe permite ainda sair do hospital e que eu já fiz referência anteriormente, que essa criança passa a usar o hospital como sua segunda casa. Então, como é essa necessidade? E como base também as pessoas que conversaram connosco dentro do hospital? Então eu levei a iniciativa de que a criança, tendo a sua segunda casa ou hospital, também precisam de brincar, sobretudo aquelas crianças que estão em fase de recuperação. "
Para Baltazar Cateco a multiplicação dessas acções por todo o país é possível graças ao número de pessoas que trabalham para a ONG Vitória Lumi. Noutras províncias de Angola.
"Neste momento, é apenas em Luanda, mais as pessoas que faziam parte da nossa organização, porque a nossa organização tem muitos voluntário, pois já estão fora de Luanda e trabalham lá como professores e também pela experiência que eles tiveram da nossa associação. O objectivo é a biblioteca móvel, mas também pretendo criar biblioteca fixa, mas nesse sentido, eu pretendo colaborar com a administração local. Eu identifico alguns espaços e solicito a administração para criar um centro, não só como biblioteca, mas também simultaneamente como Centro de recolha de donativos."
Com esperança para o futuro, o criador do projecto Livro Zunga espera que a tecnologia possa permitir o acesso à leitura ao maior número de angolanos, sem se esquecer que o acesso aos tablets e smartphones ainda não é uma realidade para muitos habitantes de várias zonas de Angola.
"Eu acho que sempre que se trata de uma evolução, é bem-vinda seleção e modernização. Então, se alguém tiver acesso à leitura por intermédio de um tablet, um telefone ou qualquer outro dispositivo eletrônico é sempre bem-vindo. Para os angolanos está muito bom. Só que muita gente não tem acesso ao telefone. Por isso a importância mesmo da livraria móvel."
Através de bibliotecas itinerantes e iniciativas nos hospitais, Baltazar e a sua equipa trabalham para tornar a leitura acessível a todos, enriquecendo a vida das crianças e das comunidades. É o ponto final neste magazine que volta à antena já para a semana. Até breve !
Neste programa, vamos conhecer Fredy Uamusse, um retratista moçambicano de 23 anos que sonha viver da sua arte. Além dos formatos tradicionais, Fredy Uamusse também desenha no chão, incluindo no pátio da sua própria casa.
O pátio da casa de Fredy Uamusse tem sido tela para esboçar os rostos de várias personalidades, desde a figura incontornável da arte moçambicana Malangatana, a Cristiano Ronaldo que é para ele um ídolo no futebol e na forma intensa de trabalhar. O futebolista português "é uma figura internacional que inspira os jovens porque ele é determinado naquilo que faz", explica Fredy. Quanto a Malangatana, "foi alguém que representou a cultura" e o jovem artista também tem como desejo "representar Moçambique a nível internacional". O retratista também desenhou a humorista moçambicana Rebeca Cumbane e o músico moçambicano Twenty Fingers, entre outros.
Fredy Uamusse frequenta o último ano do curso de artes plásticas no Instituto Superior de Artes e Cultura de Moçambique. Faz desenhos em papel, mas também desenha no chão. E é na sua casa, nos arredores de Maputo, que usa o chão para esboçar as suas figuras, com cinza, carvão, luz e sombra. Depois, publica as fotografias do resultado nas redes sociais, tendo quase 100.000 seguidores no Facebook.
Trabalho no pátio de casa, debaixo de uma sombra, uma árvore de manga. Tenho de calcular o tempo da sombra, começar o desenho às nove e terminar até às onze para a sombra estar no desenho. Começo por enquadrar o pátio onde quero trabalhar, depois é tracejar com uma barra e seguir os contornos com o carvão. Em seguida, começo a trabalhar com luz e sombra, isto é, a trazer a diferenciação das areias vermelhas, brancas, amarelas, assim como o próprio carvão e a própria cinza. A cinza é para as partes brancas e que representam a luz.
O artista conta, ainda, que, em criança, só tinha "um único lápis" quando começou a desenhar, por isso, em adulto, decidiu que a falta de material não o poderia limitar e que iria trabalhar com o que tivesse facilmente disponível.
Fredy Uamusse sonha viver da sua arte e tem conseguido até agora, graças a muito trabalho e aos conselhos da avó para nunca desistir.
Oiça a conversa neste ARTES.
O Tarrafal assinalou no fim-de-semana passado o centenário do nascimento de Amílcar Cabral com o festival Pela Paz. "Com este festival queremos reforçar a referência do Tarrafal como um lugar de paz e símbolo de liberdade", conta-nos porta-voz do festival, Madair Feire.
O curador do evento, músico, escritor e antigo ministro da cultura de Cabo Verde, Mário Lúcio Sousa, explica a sua relação com Amílcar Cabral, líder revolucionário e intelectual que lutou pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. Uma inspiração na obra, literatura e música de Mário Lúcio. "Tenho uma relação espiritual com Cabral, em dimensões que nem eu entendo bem. Vejo-o com frequência e quando escrevi o romance sobre ele, tivemos vários diálogos. O livro apareceu por acaso, mas foi Amílcar Cabral que mudou a minha vida. Um dia encontrei um poema dele, recitava-o na rua e viram em mim uma criança um pouco precoce. Ajudaram-me a ter acesso a uma educação porque os meus pais eram pobres", conta.
Cabral mudou a vida de "todos os cabo-verdianos, ao dar a sua própria vida em troca da liberdade e da independência, defendendo sempre uma filosofia sem ódio. A guerrilha foi necessária, sim, mas ele tinha uma noção de paz. Escreveu várias cartas ao governo português a pedir diálogo, mas nunca obteve resposta. E quando a repressão aumentou, os outros tiveram que se defender e ele continuou a defender a via da paz", acrescentou.
Mário Lúcio nasceu e vive no Tarrafal e fez questão que a primeira edição do festival Pela Paz decorresse nessa vila: "Costumam dizer que temos um coração de pescador porque os pescadores têm uma enorme paciência; deitam a linha na água e ficam ali horas e horas sem apanhar um peixe. Aqui encontramos uma paz natural".
A cultura foi um dos pilares fundamentais no processo de libertação e desenvolvimento de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. Amílcar Cabral acreditava que a cultura era um dos principais elementos de resistência contra o colonialismo, defendendo a ideia de que a preservação e valorização da identidade cultural de um povo eram essenciais para o sucesso da luta pela independência.
"No Tarrafal tivemos a prisão e estiveram cá muitos prisioneiros. Conseguiram a liberdade com a luta de Amílcar Cabral e o Tarrafal tornou-se num símbolo de liberdade. Com este festival queremos reforçar a referência do Tarrafal como um local de paz e o símbolo da liberdade", sublinha o porta-voz do festival, Madair Feire.
A cantora cabo-verdiana, Mayra Andrade, subiu ao palco no sábado, 14 de Setembro. No final do concerto, contou-nos que a música é para ela a sua "forma de respirar, forma de ser". "Como cabo-verdiana, acho que é muito claro para mim que a cultura alimenta a música cabo-verdiana. Ela é a nossa maior bandeira no mundo. Fazer parte desta constelação de artistas que levam o nome de Cabo Verde, alimenta em mim um sentimento de muita gratidão pela oportunidade que eu tenho de poder fazer disto a minha vida", concluiu.
O festival Pela Paz foi organizado por Mário Lúcio em parceria com a Câmara Municipal do Tarrafal, com objectivo de reforçar mensagem de paz através da arte e homenagear o centenário de Amílcar Cabral.
Em França, arrancou esta quinta-feira a Semana do Design de Paris que conta com uma exposição dedicada ao design português. Chama-se “Made in Portugal naturally” e é uma vitrina da produção artística do sector. Neste programa, visitamos a exposição com a curadora e arquitecta de interiores Margarida Moura Simão.
Há uma “casa portuguesa” na “Paris Design Week”, que arrancou a 5 de Setembro e decorre até 14 de Setembro. Nesta "casa", situada na Galerie Joseph, no bairro do Marais, há cerca de 60 peças que mostram o que é o design português de hoje, entre inovação e tradição, entre o clássico e o contemporâneo.
O “showroom” chama-se “Made in Portugal naturally” e foi concebido como um apartamento, por onde se deambula entre as peças expostas. A curadora é a arquitecta de interiores Margarida Moura Simão, que nos fez uma visita guiada pelas diferentes salas e obras, desenhando um “Portugal cosmopolita” que produz “um design autoral, irreverente e sofisticado”, com um savoir-faire que alia tradição e tecnologia. Na conversa que pode ouvir neste programa, fomos tentar perceber o que é que têm de tão “naturalmente” português as peças de mobiliário, de iluminação, de têxtil e outros objectos decorativos ali em destaque.
A minha vontade de enaltecer o que de melhor se faz em Portugal foi de utilizar este 'showroom' como um espaço doméstico. É muito fruto da minha experiência profissional, da forma como Portugal evoluiu e recebeu tantas pessoas estrangeiras e do olhar - não só estrangeiro mas também português - muito cosmopolita... Era mostrar que temos essa oferta de design no mercado, à altura de pessoas exigentes, que viajam, que têm referências multiculturais. Portugal tem esses produtos que reflectem essa cultura, essa qualidade no saber-fazer, na produção, nas referências culturais que tem.
Entra-se, assim, numa “casa portuguesa” com produtos e design “feitos em Portugal”, em que o objectivo de Margarida Moura Simão é “despertar curiosidade e surpresa no percurso da exposição”. Logo no vestíbulo de entrada, a designer admite que se aposta num “Portugal de luxo, irreverência, com cunho sofisticado e autoral”, através de um banco de madeira curvado com longas almofadas prateadas, um tapete com diferentes tons de verde e efeito tridimensional ou um móvel lacado e misterioso da designer Luísa Peixoto.
Na sala principal, a zona de refeições convida a sentar em torno de uma grande mesa de madeira do designer Vasco Fragoso Mendes, sob uma tapeçaria da Manufactura de Portalegre com o desenho “A Viagem” da artista plástica Emília Nadal, que aponta para outra tapeçaria, ao fundo. O tríptico colorido de “Janelas” tecidas abre um espaço de recepção, onde se destaca um “sofá confortável, sofisticado e intemporal”, vencedor de um prémio internacional de design em 2019, entre outras peças, como uma poltrona de formas redondas, um biombo de madeira e puffs de veludo.
Há, ainda, um boudoir, ou seja, um espaço “mais íntimo”, decorado, por exemplo, com a tapeçaria “Cabo Verde do pintor Júlio Resende e com um banco chamado “Madonna”, dotado de pés de mármore e duas almofadas desencontradas e com padrões vibrantes.
Na zona que sugere a casa de banho, há uma banheira em pedra com “uma preocupação ecológica e sustentável”, esculpida a partir de uma assemblage de peças de mármore, algo que “é um material incontornável da cultura portuguesa”, relembra Margarida Moura Simão. O showroom conta, também, com um quarto onde se destaca a roupa de cama a homenagear os bordados portugueses.
No piso de cima, um escritório ecléctico combina o clássico de uma secretária com a irreverência da “Cadeira Alvor” do designer Daciano da Costa, uma peça icónica cor de laranja e com três pernas. Há, ainda, uma estante mais modular e industrial e uma “chaise longue” chamada “Lisboa” que ocupa o espaço “de uma forma mais diletante”, mostra-nos a arquitecta de interiores.
Depois, para sugerir uma varanda e um espaço da evasão, Margarida Moura Simão escolheu um banco de design minimalista e multifuncional, inspirado da carpintaria japonesa, e um conjunto de tapeçarias a desenharem nuvens.
No piso inferior, um sofá azul, cheio de volume, ladeia uma estante de azulejos de todas as formas, feitios e cores, em frente a um salão com exemplos de cadeiras dobráveis que são “uma peça de design português incontornável”.
Do outro lado, uma vasta mesa expõe uma série de peças de cutelaria e cerâmica de refeição das mais variadas marcas portuguesas e há também espaço para uma máquina de café desenhada pelo francês Philippe Starck para uma empresa portuguesa.
"Promover o design português" na "Paris Design Week"
A Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) organizou a iniciativa para promover o design português, nomeadamente a qualidade do produto e do material, a sustentabilidade e o “savoir-faire” português, como explicou Mariana Vieira da Luz, gestora da fileira casa na AICEP.
O objectivo desta exposição é promover o design português e colocá-lo num patamar de relevância comparativo com grandes marcas e com a qualidade de outros grandes países nesta área do design de mobiliário, de iluminação, têxteis-lar e porque os nossos produtos têm muita qualidade. Nesta exposição temos cerca de 55 empresas e que foram todas escolhidas pela arquitecta Margarida Moura Simão e o que pretendemos promover é a qualidade do produto e do material que também é feito em Portugal, em conjunto com o design e a sustentabilidade. E daí vem o nome "Made in Portugal naturally" que faz justiça tanto à área da sustentabilidade que está muito em voga, mas também à parte do 'savoir-faire' português e da tradição.
De 5 a 9 de Setembro, o Parque de Exposições de Villepinte, nos arredores de Paris, também acolhe a feira internacional de mobiliário e decoração Maison&Objet, na qual Portugal também participa.
A primeira longa metragem de Denise Fernandes valeu à realizadora cabo-verdiana o prémio de melhor cineasta emergente no Festival de cinema de Locarno que terminou a 17 de Agosto. "Hanami" tem como palco a Ilha do Fogo, no sotavento cabo-verdiano, onde Nana assiste à partida, mas também ao regresso de muitos habitantes do território, caso da sua mãe.
A cineasta, nascida em Lisboa, crescida na Suíça de expressão italiana, volta a pegar em Cabo Verde, as suas raízes, para este novo filme, "Hanami", a sua primeira longa metragem.
Ela começou por comentar à RFI qual a sua reacção com o galardão obtido na edição de 2024 do Festival de cinema de Locarno, na Suíça.
Recebi a notícia por telefone alguns dias antes do festival terminar, mas disseram-me para não dizer mesmo a ninguém. E eu ainda estava com as actrizes do filme presentes em Locarno. Então, sabendo que eu não podia dizer a ninguém também, é quase como se não tivesse nenhuma reacção. E senti que o acontecimento se concretizou dois dias depois, quando foi possível fazer essa partilha de informação. E então, junto com as pessoas da equipa e com as actrizes, vivemos esse momento de felicidade que esperamos que vá dar alguma visibilidade ao filme em si.
Então, já falou das actrizes. Poderíamos falar, por exemplo, de uma delas, que é a Sanaya Andrade. Como é que você escolheu este elenco?
Foi um processo muito, muito longo. Eu comecei a viajar ao Fogo a partir de 2016 de forma regular, durante a escrita do filme. E em 2021, fiz uma primeira viagem com duas pessoas da equipa que foi uma área de "repérage" [reconhecimento] e nessa "repérage" conheci uma menina de cinco anos que afinal é a Nana, criança que aparece no filme, é a Daílma Mendes. E em 2023, quando o filme entrou quase em pré-produção, fizemos mesmo os "castings" oficiais do filme e confirmei a Daílma Mendes como Nana criança.
E então a minha equipa, a directora do casting local e a minha assistente de realização foram mesmo visitar todas, todas, todas as escolas de toda a ilha para encontrar um "match" com a Nana, criança que de alguma forma já tinha escolhido. E a Sanaya foi uma dessas pessoas e afinal foi a pessoa que foi escolhida para o papel de Nana adolescente.
Já referiu que de facto, a intriga ocorre nesta ilha do Sotavento cabo-verdiano, que é a Ilha do Fogo. É uma história de partidas, de regressos e daqueles que teimosamente ficam na ilha, não é?
Sim, acho que essas dinâmicas são dinâmicas, que são a essência, acho de ser uma pessoa cabo verdiana. Mesmo que seja uma pessoa cabo-verdiana que vive na ilha ou uma pessoa da diáspora cabo-verdiana. Esses movimentos nos acompanham muito durante a nossa vida. Que seja uma pessoa que nos visita, uma pessoa que nunca conhecemos antes, um tio, uma prima, seja pessoas que ficam na ilha e que quando ligam por telefone sonham, quase idealizam o mundo fora. E depois há pessoas da diáspora que sonham de voltar e alguns voltam e alguns não voltam. Porque, de alguma forma, o Ocidente torna-se a nova casa. Então o filme fala também desses movimentos e dessas dinâmicas.
Já referiu que foi um processo longo e ia-lhe perguntar como é que foi precisamente a escrita deste guião ? Eu sei que a senhora, embora tenha nascido na diáspora, precisamente no caso em Portugal e depois radicou-se na Suíça. A senhora a dada altura, ficava incomodada com a invisibilidade de Cabo Verde no mundo. Por ser um país pequenino, por ser um país arquipélagico que, muitas vezes, as pessoas nem sequer sabiam situar no mapa. Então fazia questão, de facto, em que a sua primeira longa metragem tivesse foco precisamente nesta terra, no Oceano Atlântico e, no caso, esta terra vulcânica !?
Digamos que eu acho que a infância é o ponto de partida do trabalho de muitos artistas, e de forma consciente ou inconsciente. E eu lembro-me de criança na Suíça. Cresci na Suíça, naquela altura, nos anos 90 Cabo Verde era muito, muito desconhecido. E, na verdade, ainda hoje, viajando pela Europa, dependendo um pouco das culturas e dos países, é um país que não é conhecido e eu sempre a nível verbalmente, tenho sempre muito prazer em abrir o Google Maps e é mostrar às pessoas onde é e contar coisas sobre Cabo Verde.
Mas lembro-me de, quando era pequena, confrontar-me com as reacções de quem não conhecia e também como ainda se utilizavam mapas e globos para ver o mundo. Lembro-me de que muitas vezes essas ilhas eram... Eu estava a ver o Oceano Atlântico à procura de Cabo Verde, porque Cabo Verde mesmo não estava presente ! Para mim é uma metáfora de uma pequena invisibilidade, mas que não só tem a ver com Cabo Verde. Acho que muitas ilhas do mundo pequeninas sofrem um bocadinho de um olhar que é um bocadinho imposto pelo turismo. Um olhar que muitas vezes vem de fora e não de dentro. E quando surgiu a vontade minha de fazer uma longa para mim, foi muito claro que ia ser filmada em Cabo Verde.
Já agora, conviria que recapitulássemos um pouco da sua trajectória. Eu dizia que já tinha ligação ao Festival de Locarno porque já em 2011 teve lá uma curta metragem, depois "Pão sem Marmelada" e "Idillyum". Foram projectos feitos em Cuba, aquando dos seus estudos nessa ilha das Caraíbas. Mas houve, logo a seguir, um projecto precisamente já sobre Cabo Verde, que foi o "Nha Mila", foi em 2020. Quer-nos fazer um pouco o fio condutor da sua trajectória?
Sim, tudo começou: comecei a filmar na Suíça porque é onde eu cresci e onde fiz a minha primeira formação.
A Suíça de expressão italiana, não é? Daí o "Buona Notte", por exemplo ?
Exactamente, eu sou da Suíça italiana. E então os meus primeiros trabalhos foram filmados na Suíça italiana. Depois eu estudei em Cuba, fiz mestrado em Cuba. Então os trabalhos seguintes foram feitos em Cuba. E depois, quando eu voltei à Suíça de Cuba, fiquei assim com uma espécie de "E agora?"... Então, na verdade é interessante porque existe uma espécie de "gap" [fosso] de sete anos entre o meu último trabalho de Cuba até 2020, que é a curta "Nha Milla", que foi filmada em Lisboa, e é sobre uma escala. Uma mulher que faz uma escala, uma mulher cabo-verdiana que faz uma escala em Lisboa.
E ao chegar a Lisboa encontra outras cabo-verdianas. E, pronto, são trajectórias que acabam por se cruzar.
Exactamente, de alguma forma, eu própria viajei com os meus filmes porque então, depois de ter estudado em Cuba, vivi noutros países, na Europa. Mas depois, em 2016, decidi mudar-me para Lisboa. E é também a cidade onde nasci... E alguns anos depois nasceu "Nha Mila". Então, na verdade, os meus filmes me conduziram de volta para Portugal, antes, e , depois, para Cabo Verde.
E neste momento, então, reside em Portugal ou na Suíça, ou entre um e outro ?
Agora, principalmente em Lisboa.
E qual é o percurso que antevê para este filme? Imagino que se pense em estreias, nomeadamente em Cabo Verde. Sei obviamente, que há um festival de cinema importante, precisamente na Ilha do Fogo. Como é que a senhora se projecta em relação à vida deste filme?
O filme... estamos a ter o grande privilégio de, depois do Festival de Locarno, vamos apresentar esse filme em outros festivais internacionais. Então, de alguma forma, Locarno é o ponto do início. E depois temos uma grande, grandíssima prioridade, que é também no próximo ano de apresentar o filme na Ilha do Fogo, em Cabo Verde. Ainda não sabemos muito bem em que altura. E, depois dessa estreia em Cabo Verde, acho que paralelamente, talvez ainda o percurso dos festivais poder fazer uma estreia nas salas. Mas como são coisas que mais ligadas à distribuição do filme, deixo um bocadinho à distribuição a palavra.
O Som e Fúria, nomeadamente ! A produtora é "O Som e a Fúria". Perguntar-lhe-ia para esta trajectória e chegou-se à sua primeira longa metragem... E é sempre uma referência muito importante na vida de um cineasta: Quais foram as referências que foram importantes para si? Quais são os filmes de que gosta? Quais são os cineastas de que gosta? Eu estou a falar de África ou do mundo em que se revê o que teve peso para si para esboçar a sua carreira?
Eu tenho muitas referências. As primeiras, as mais primordiais para mim, são. Tem a ver com a literatura, a literatura grega, os contos clássicos, que sejam os irmãos Grimm, La Fontaine, a mitologia. A arte do conto, para mim, desde criança, me fascinava, mesmo muito. Depois, na adolescência, mais uma vez, a literatura. Eu cresci também com muita literatura italiana e existem obras maravilhosas, Pinóquio e outras. Então, digamos, foi sempre uma pessoa que amou muito o "storytelling" ligado à literatura. E o cinema chegou depois. Os realizadores de que eu gosto muito são Kiarostami [iraniano], Kieslowski [polaco], a Alice Rohrwacher [italiana] e o Diop Mambéty. também. Acho que tenho mesmo referências muito, várias.
E em África há assim, algum nome que lhe venha à cabeça ?
Para mim o Diop Mambéty [senegalês]: gosto muito de dos seus filmes: o "Touki Bouki", "A Menina que ia à procura do Sol". Eu acho que os seus filmes são fortemente enraizados numa realidade e, ao mesmo tempo, têm uma grande parte de fantasia. Então, digamos que gosto mesmo muito do trabalho dele.
Imagino que não seja fácil projectar-se para uma vida no cinema. Devem ser muitas dificuldades, muitas barreiras por ultrapassar. A senhora está determinada agora que já chegou uma longa metragem de facto, de apostar na sétima arte e, se calhar de fazer outros projectos sobre Cabo Verde ou outras latitudes ?
O "Hanami" foi uma grandíssima parte da minha vida, mas é verdade que agora que o filme estreou, isto também me vai dar espaço para alguma coisa nova. A primeira longa é sempre para quem cria. É um objectivo muito grande.
É um parto difícil !?
E agora, para mim, o passo seguinte está tudo em aberto. Eu própria estou curiosa porque ainda não sei exactamente o que vai vir.
O tempo o dirá ?!
Sim.
Eneida Marta é conhecida pelo seu estilo peculiar que busca casar nas suas músicas a modernidade com a ancestralidade dos povos guineenses. Dona de uma das mais belas vozes da música moderna guineense, Eneida Marta traz sempre nos seus trabalhos alguma reflexão sobre a difícil situação da maioria das crianças guineenses sem nunca descurar a canseira enfrentada pela mulher.
Como a própria diz, na história moderna da Guiné-Bissau, há e houve sempre grandes mulheres que não podem ser esquecidas. Uma dessas mulheres é a Okinka Pampa, aquela que foi a única mulher a ser coroada rainha de um dos povos da Guiné-Bissau, o povo Bijagó, das ilhas do mesmo nome.
"Okinka foi a rainha dos Bijagós. A rainha Okinka Pampa, como muitos sabem, sucedeu ao seu pai e foi encarregue de proteger os ancestrais da ilha e ser a guardiã das suas tradições. Numa época em que o colono português se preparava para ocupar o arquipélago dos Bijagós, como parte das suas reivindicações territoriais na África", começa por recordar Eneida Marta.
O reinado de Okinka Pampa ocorre entre 1910 e 1930, sucedendo ao pai, entretanto, falecido, mas foi tempo suficiente para enfrentar o colonialismo português, acabar com a escravatura nas ilhas Bijagós, pacificar aquele território, que estava devastado por guerras fratricidas e ainda fundar direitos da mulher que vigoram até os dias de hoje.
Entre o povo Bijagó, caso único na sociedade guineense, a mulher é quem escolhe o homem com quem casar e se um dia não gostar mais desse casamento, simplesmente despede o marido.
Eneida Marta explica que sempre quis homenagear os feitos de Okinka Pampa e através dela, todas as mulheres guineenses. Praticamente desde que começou a cantar de forma profissional nos finais dos anos 1990, que tinha em mente contar a história de Okinka Pampa, através da música.
"O tema ou a música, como se preferir, de Okinka Pampa, foi criada sensivelmente há quase um ano em Londres e então, desde aí deu-se o trabalho. Começou-se o trabalho desde da fase embrionária que começou em Londres e depois foi toda essa gravação ao longo dos meses e culminou com a filmagem do videoclipe, que foi em Dezembro de 2023. Esse projeto, no fundo, está a ser preparado há sensivelmente quase um ano," esclarece a cantora.
Agora que o projecto saiu da imaginação, Eneida Marta espera que a música e o videoclipe sejam apreciados nos quatro cantos do mundo. "Naturalmente, com essa bela homenagem feita a essa nossa rainha que foi tão importante para a Guiné-Bissau como para a África, é claro que eu quero atingir o mundo", diz.
Eneida Marta acredita ter trabalhado com os melhores realizadores de videoclipes no mercado português, daí o resultado que surpreendeu a própria. A ideia foi oferecer algo cinematográfico a quem assiste à música Okinka através do vídeo.
"O objectivo de fazermos um vídeo quase cinematográfico é propositado, claro. A ambição é muito grande em dar a conhecer a nossa Okinka Pampa. Não passa daquilo que eu disse. O objectivo deste trabalho é atingir o mundo e dar a conhecer Okinka Pampa. Trabalhei com um dos melhores em Portugal, que é o Wilson, que é o videógrafo com quem trabalhei e o Índio Nunes também na produção do vídeo. É claro que tem que chegar ao mundo. A história de Okinka Pampa realmente é e merece ser um filme", considera a artista.
A história de Okinka Pampa é tão valiosa quanto desconhecida até entre os próprios guineenses. Eneida Marta entende que se devia aproveitar o mote lançado pela sua música de homenagem à rainha do povo Bijagó para contá-la através de um filme. "É claro que o historiador Quinca Pampa daria um grande filme, digno de prémios. Disso não tenho a mais pequena dúvida", conclui Eneida Marta, cuja nova música pode ser encontrada nas várias plataformas das redes sociais.
No último ano, a voz de Ashley Fortes tem ecoado em diferentes estações do metro de Paris, o “maior palco” da capital francesa, onde milhares de pessoas passam diariamente. Fomos conhecer a cantora com origens cabo-verdianas, que homenageia Cesária Évora e que conquistou a etiqueta “Musicien du Métro”.
Estamos no “maior palco” de Paris, aquele por onde passam milhares de pessoas todos os dias. É nesta azáfama dos corredores do metro que ecoa a famosa “saudade” da “diva dos pés descalços”, cantada por uma jovem francesa, de 33 anos, com raízes cabo-verdianas.
Ashley Fortes começou a cantar no metro de Paris há cerca de um ano e faz parte do grupo de 300 músicos (seleccionados entre cerca de 1.000) que conquistaram a etiqueta de “Musicien du Métro”. Uma vitrina internacional que também permite ganhar a vida e complementar o seu trabalho de professora de canto.
“Eu adoro cantar no metro. Ontem, uma mulher parou e ficou uma hora a ouvir-me e disse-me ‘Você foi o meu sol neste dia’. Ver estas pessoas faz com que eu saiba porque canto. O metro é uma maneira de atingir muitas pessoas e eu adoro”, conta à RFI na estação de Saint-Lazare, durante a última semana dos Jogos Olímpicos de Paris.
Os corredores do metro de Paris foram também os primeiros palcos do músico americano Ben Harper ou do cantor nigeriano Keziah Jones. Ashley Fortes sabe disso e espera que novas oportunidades nasçam desta aventura.
Eu adoro porque tem gente de todo o mundo que passa. É outra dimensão. Eu canto para todo o mundo!
Ashley Fortes participou, em 2017, no programa televisivo em França “Nouvelle Star” e chegou à meia-final. Actualmente, está a preparar o seu primeiro EP e, em Junho, lançou o mais recente single intitulado “A Toutes les Femmes”.
Descubra a história de Ashley Fortes, as suas origens, as suas inspirações e os seus projectos neste programa ARTES de 14 de Agosto de 2024.
"Os Bantu na visão de Mafrano" é uma colecção que reúne os textos que Maurício Francisco Caetano, Mafrano, dedicou à Antropologia Cultural Bantu.
A publicação da obra vem colmatar lacunas e recuperar património essencial para o melhor conhecimento da história, cultura e tradições dos povos Bantu.
A riqueza da herança deixada por Mafrano, que é de particular interesse para os investigadores de áreas como a Antropologia, as Ciências Humanas ou a História, tem também o seu papel como pilar na construção da identidade africana.
Grande parte destes textos, agora reunidos numa colecção editada em Portugal pela Perfil Criativo, foram publicados ao longo de décadas em diferentes jornais e publicações de Angola no tempo colonial, outros encontravam-se nas mãos de amigos e familiares.
Durante mais de uma década, o jornalista e escritor angolano José Soares Caetano, filho de Mafrano, e restante família garimparam todos os locais onde suspeitavam que poderiam encontrar textos de Mafrano. Agora, publicados dois dos três volumes da colecção, está reforçada a afirmação da ancestralidade africana e da sua História.
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Toumani Diabaté é um dos mais reconhecidos intérpretes contemporâneos da kora, considerado por muitos como o “rei da kora”, um instrumento de 21 cordas, típico da África ocidental e da cultura mandinga. Toumani Diabaté morreu, na sexta-feira, aos 58 anos, mas deixa uma herança intemporal que alia tradições ancestrais e modernidade. Para o músico guineense Nino Galissa, Toumani Diabaté é “um ícone e uma lenda”.
Toumani Diabaté nasceu em 1965 numa família de contadores de histórias e de músicos e começou a tocar ainda em criança. O pai era Sidiki Diabaté, um dos intérpretes no primeiro álbum de kora gravado, o “Cordes Anciennes”, de 1970. Inspirado pelo ambiente onde cresceu e pelo instrumento de vários séculos, Toumani Diabaté tornou-se num embaixador da música africana e tocou com imensos músicos, desde outro virtuoso da kora, o maliano Ballaké Sissoko, e o cantor e guitarrista também maliano Ali Farka Touré. Também se interessou por outras sonoridades, incluindo o flamenco, o jazz, o blues, a pop e tocou com a islandesa Björk, o norte-americano Roswell Rudd, o brasileiro Arnaldo Antunes, o britânico Damon Albarn, o francês M, entre muitos outros. No meio da world music, é enaltecido pelo disco “In the Heart of the Moon”, gravado em duo com o guitarrista maliano Ali Farka Touré, e “Boulevard de l’Indépendance”, à frente da sua Symmetric Orchestra.
Neste programa, falámos com o músico guineense Nino Galissa sobre Toumani Diabaté. Para o também tocador de kora, que está a criar uma escola para ensinar este instrumento na Guiné-Bissau, Toumani Diabaté é “um ícone e uma lenda” que conseguia transmitir plenamente “o mistério” da kora.
Terminal (O Estado do Mundo) de Inês Barahona e Miguel Fragata é o segundo espectáculo de um díptico que aborda a crise climática. A criação mostra-nos uma “grande crise” que assenta em “desigualdades” e “escolhas políticas e económicas”, num lugar de onde “não há saídas”. A peça pode ser vista até ao próximo domingo, 21 de Julho, no Festival de Avignon.
Terminal (O Estado do Mundo) de Inês Barahona e Miguel Fragata é o segundo espectáculo de um díptico que aborda a crise climática. A criação mostra-nos uma “grande crise” que assenta em “desigualdades” e “escolhas políticas e económicas”, num lugar de onde “não há saídas”.
“Terminal (O Estado do Mundo)” é precisamente este espaço de tensão entre, por um lado, a aceitação e a resignação e, por outro, o desejo de “mudar o mundo”, rumo a uma saída.
Miguel Fragata: Quando nos decidimos lançar nesta aventura de criar, de pensar teatralmente sobre a crise climática, ficou logo muito claro que nos interessava esta dimensão do díptico. Ou seja, por um lado, de pensar como é que se podia falar sobre esta questão tão avassaladora com as crianças e pensá-lo numa escala que fosse mais reduzida, mais intimista, que pusesse também em cena - e essa era a premissa para o primeiro espectáculo - grandes catástrofes naturais numa pequena escala. O espectáculo joga muito nessa dimensão de manipulação de miniaturas, no sentido de criar grandes catástrofes.
Depois, criar um segundo espectáculo que fosse para o público adulto e que tivesse uma outra escala e que pudesse abordar a crise climática de uma outra forma.
Para o espectáculo “O Estado do Mundo (Quando acordas)” foi muito importante fazermos uma pesquisa em torno de estudos científicos, de uma dimensão objectiva da crise climática, também no sentido de criar um chão comum e democrático para todos. Uma necessidade de que todas as crianças e adultos possam ter domínio sobre o assunto para depois poder falar sobre ele. Esse primeiro espectáculo passa muito por essa premissa.
Para o “Terminal (O Estado do Mundo)” interessava-nos muito escutar aquilo que as pessoas no território tinham a dizer sobre a crise climática. Então, ao longo de todo o ano de 2023, nós levamos a cabo uma longa pesquisa em que lançámos muitas propostas diferentes, que envolveram também outros artistas, outros pensadores, outras pessoas de várias áreas do conhecimento, para auscultar os públicos de maneiras muito, muito diversas. Ao longo do ano, íamos fazendo estações, de uma semana em cada local, em que levávamos a cabo uma série de actividades, desde teatro que acontecia sem aviso prévio em lugares não convencionais, em que auscultávamos as pessoas de uma forma directa, interpelando-as. Tínhamos ocupações de rádios locais, bibliotecas itinerantes. Tínhamos a construção de dois documentários que exibimos agora também aqui, no âmbito do Festival de Avignon, no Cinema Utopia, e que são os dois resultados diferentes desse trabalho.
Um deles [“Regresso ao Futuro”] tem a ver com a relação de pessoas com lugares e relações emocionais com lugares que se alteram drasticamente ao longo da passagem do tempo, da passagem climática pelos lugares. O outro, os “Improváveis de costas voltadas” é um trabalho em que púnhamos pessoas improváveis de terem uma conversa em conjunto em diálogo. Todo esse trabalho alimentou o pensamento para a construção deste espectáculo.
A partir disso tudo, foram 27 localidades por onde passámos entre Portugal e França, reunimos todo esse material e começámos a pensar sobre ele e a construir este espectáculo, sabendo que nos interessava distanciar-nos também desse material. Ou seja, ele está de uma forma muito indirecta, muito imprecisa, através da escolha destas quatro personagens que habitam este lugar, com perspectivas muito diferentes sobre aquilo que é a realidade da crise climática. E é um pouco a partir daí o espectáculo nasce, a partir dessa experiência, a partir da relação com a pesquisa e a partir deste olhar muito mais filosófico, existencialista da questão que nasce este Terminal.
Isto é muito mais do que a crise climática, é a crise económica, a crise política e a crise social. Acaba por ser o mundo retratado numa peça de teatro.
Inês Barahona: Sim, porque, tal como a natureza nos ensina, tudo está ligado a tudo. Na verdade, a crise climática não é uma crise por si. Há até quem diga que não se deve dizer crise climática, é uma crise ‘tout court’.
Uma grande crise que assenta em grandes desigualdades, que assenta em escolhas políticas e económicas e que, para nós, à distância também tem a ver com uma certa crise da imaginação. Isso era uma coisa que nós queríamos pôr em cena. Ou seja, essa ideia de que estamos num lugar de onde nos dizem que nós não podemos sair, porque não há saídas.
Tudo o que se põe em cima da mesa é olhado com muita desconfiança e as pessoas deixaram de ter essa prática de se juntarem para, no fundo, fazer uma coisa que é pensar utopias, desafiar-se para o futuro, pensar em conjunto. Isso faz com que quando nos dizem não, não há saída ou isto é muito complicado e, portanto, nem vale a pena perderem tempo a pensar nisso, nós nos limitemos a um lugar de aceitação.
É, no fundo, essa tensão entre o desejo de fazer alguma coisa e a mensagem constante de que não é possível imaginar nada de novo, que estamos presos a isto para sempre, que não há alternativa nenhuma e que tudo vai acabar, não vai ser uma visão muito boa. Era essa confrontação e essa conformação das pessoas que nós queríamos de alguma forma trazer para a cena.
Ao mesmo tempo pensar como é que nós, artistas ligados ao teatro, podemos contribuir para pensar sobre isto. Nós não temos receitas. O teatro não pode salvar o mundo, mesmo que nós acreditemos um bocadinho nisso...
Pode ajudar a mudar comportamentos.
Exacto. E pode, sobretudo promover esse exercício de imaginação, de estar em conjunto, de escuta, de discussão, mesmo de encontro e desencontro com cada uma destas personagens, das coisas que elas dizem, dos sonhos que elas têm, daquilo que elas projectam e daquilo de que têm saudades. Tudo isso é um trabalho emocional e galvanizador que o teatro pode produzir.
Nós precisamos disso, porque só com as pessoas altamente inspiradas e galvanizadas é que é possível, de facto, começar a imaginar e rebentar os limites da impossibilidade - não se pode fazer nada, não há alternativa - para se poder realmente inventar uma utopia, um futuro, um lugar, um outro lugar.
“Terminal” é o fim, mas não só. Aqui também há uma esperança de que pode haver uma outra via?
Miguel Fragata: Sim, no fundo, “Terminal” também é o princípio de qualquer coisa e pode ser o princípio de qualquer coisa. Tal como esta crise ou estas várias crises que vivemos hoje no mundo podem ser o princípio de outras coisas, assim, nós nos permitamos a olhar para isso dessa maneira.
Se calhar o sistema capitalista não faz parte da natureza como nós estamos habituados a pensar, que não há outras possibilidades, não há outros caminhos. E nessa medida, às vezes, é mesmo preciso depararmo-nos com uma ideia de precipício para podermos olhar para outras possibilidades, para pontes que se podem construir em direcções que nós não imaginávamos.
É um bocadinho o desafio deste lugar, lançado também o próprio teatro nessa senda: ressignificar, repensar os sentidos e daí também esta escolha de um espectáculo que, no fundo, viva da palavra e viva de uma relação directa e do relembrar da necessidade de estabelecermos relações directas como uma chave não para salvar, mas se calhar como um caminho possível para nos reencontrarmos na nossa relação com as coisas. Nessa medida, "Terminal" também é o princípio de qualquer coisa.
A música tem aqui um papel fundamental. Além disso, tem a Manuela Azevedo, que também assume aqui um papel de narradora da própria história.
Miguel Fragata: Nós temos uma relação já longa, eu diria, com a Manuela [Azevedo] e com o Hélder [Gonçalves], com estes dois elementos dos Clã. Nasceu já com um outro projecto que lançámos em 2018, que continua a circular, a “Montanha-Russa”, que na altura nasceu de um desejo de fazermos um espectáculo que pudesse pensar sobre a adolescência e sobre as temperaturas várias do que é ser adolescente.
A escolha dos dois teve a ver, na verdade, com a minha própria adolescência, porque era uma banda muito importante quando eu era adolescente e, portanto, esse convite pareceu muito evidente nessa altura. Foi uma relação muito boa, muito especial, que se estabeleceu a partir daí. Na verdade, todos os nossos espectáculos que se seguiram tiveram música composta pelo Hélder [Gonçalves].
Aqui, [neste espectáculo “Terminal (O Estado do Mundo)”] interessava-nos muito também lançar esta ideia de outras linguagens. Claro, a palavra teria que ser fundamental e essencial para compor esta peça. Estamos a fazer teatro e é o teatro da palavra aquilo que nós sabemos fazer. Mas, ao mesmo tempo, interessava-nos muito este diálogo com a música, pensando que a música também pode trazer uma outra ideia de princípio. Uma ideia de emoção que pode surgir através da música, uma ideia mais sensorial, mais intuitiva.
Quando pensamos sobre estas questões ligadas à crise climática, estamos também a ter que trazer essa dimensão que muito esquecemos enquanto humanidade, esta dimensão que tem a ver com com o sonho, com a intuição, com com aquilo que é menos concreto, palpável. E a música tem essa dimensão, essa capacidade de nos fazer voar, sonhar sem grande necessidade de uma explicação racional. Daí essa certeza de que o espectáculo teria que ser um diálogo entre a música e o teatro.
A Manuela [Azevedo] tem esta extraordinária presença. Ela não é só uma cantora, ela é uma grande força da natureza. Tê-la em palco e poder tê-la também neste papel, que é o papel de uma espécie de mediador, narrador, consciência das personagens todas que, no fundo, também faz esta ponte directa com o público.
O espectáculo joga-se muito nesta ideia de construção e desconstrução, de interior e exterior, de narrativa e desconstrução. E a Manuela [Azevedo], no fundo, é a figura que está entre estes dois universos.
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