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By RFI Português
The podcast currently has 228 episodes available.
"Grand Tour", que obteve o prémio de melhor realização no Festival de Cannes, em Maio passado, chega agora aos cinemas franceses. O filme é a adaptação de uma obra do romancista britânico Sommerset Maugham e relata um périplo pela Ásia de dois noivos, ele a tentar fugir dela e a noiva que vai no encalce daquele com quem se deveria casar.
O realizador português, Miguel Gomes, falou com a RFI sobre o impacto do galardão, as peripécias de um filme que tem como palco uma longa viagem pela Ásia e respectivos projectos.
O cineasta começa por se referir à sua surpresa com a obtenção desta prestigiosa recompensa, proeza inédita na história do cinema português no Festival de cinema de Cannes.
Como é que vive esta estreia francesa após o prémio para o seu filme no Festival de Cannes ?
Foi surpreendente. Eu não esperava nada. Se calhar é uma atitude defensiva da minha parte, mas à partida eu acho que estatisticamente é mais provável não haver prémios do que haver. E então segui esse princípio. Desta vez também, portanto, achei que não ia haver prémios nenhuns. Lembro-me que nesse dia fui para para uma ilha que existe a alguns quilómetros de Cannes, assim a uma meia hora de barco. Há uma ilha de monges, de que eu não me recordo o nome e fui com os meus filhos.
Estava com a minha mulher, estava com as pessoas da equipa, com os actores, com os produtores e fomos todos para para essa ilha nesse dia. À espera que não acontecesse nada. E às tantas o telefone tocou e disseram nos "Onde é que vocês estão? O que é que vocês estão a fazer? Mas vocês têm que voltar. Têm que ir para a cerimónia ! Vai haver um prémio." E havia muito pouco tempo. Aliás, estávamos meio perdidos nessa ilha. Apesar da ilha ser simples e só haver uma estrada, tínhamos decidido ir a um restaurante, mas tomámos a direcção contrária, então estávamos quase a fazer o perímetro da ilha para chegar ao restaurante e tivemos que nos despachar e apanhar o barco para estar presentes na cerimónia.
E acho que isto: esta recompensa, este galardão, este prémio recompensa o quê, exactamente ? A estética do filme? Porque porventura talvez seja a matéria prima que está a mais a dar nas vistas e que evoca, obviamente, projectos já seus no passado, que tinham tido bastante incremento, nomeadamente aqui em França. Eu penso no "Tabu" há 12 anos.
Eu não sei, eu não consigo separar assim as coisas desta maneira... E essa história da estética e do fundo. Eu acho que são as duas coisas. Um filme conta-se, mas sobretudo, vive-se e vive-se com a imagem, com o som. Com as coisas que o filme conta também, mas sobretudo com as coisas que o filme mostra. E tudo faz parte do mesmo sistema.
E para mim não existe assim uma distinção entre aquilo que é o aspecto do filme e aquilo que é o que o filme conta, por exemplo. Faz tudo parte do mesmo sistema e, portanto, acho que a experiência do filme é um filme que tem as suas peculiaridades, tem a sua personalidade.
Eu, felizmente não tenho ninguém a dizer-me que tem que fazer as coisas assim, que tenho que por este actor e que tenho que aos 30 minutos de filme tem que haver esta cena e aos 40 minutos esta outra cena.
Ou seja, não tenho uma pressão da produção, não tenho uma pressão industrial que me deixe refém de uma mecânica mainstream industrial e, portanto, posso fazer aquilo que me apetece. O que pode ser algo para algumas pessoas bastante chato porque não corresponde àquilo que normalmente as pessoas associam ao cinema mais recorrente.
E você pensa mais nos planos contemplativos, na duração das sequências, quando se refere a possíveis vozes detractoras do cinema que você faz?
Há vozes detractoras e há...
Há vozes muito elogiosas, com certeza !
Há vozes muito elogiosas ! Eu não sei se há muitos planos contemplativos... A contemplação também me aborrece um bocadinho. Ou seja, os planos têm que durar o tempo que duram para mim por uma razão precisa. E não porque estamos embasbacados perante qualquer coisa. Isso não funciona assim.
Eu penso muito no lugar do espectador dos meus filmes. Para mim, o cinema é um bocadinho como fazer um edifício. Ou seja, quando se fala: qual é que é a arte que terá uma relação maior com o cinema? Há quem diga que é pintura, há quem diga que é literatura. Enfim, o teatro, a música... A música eu acho que é bastante importante, mas eu diria que é a arquitectura.
Ou seja, no sentido em que inventar um filme, fabricar um filme é inventar um espaço que vai ser percorrido por alguém, um espectador. E cada espectador é diferente do outro, porque cada um vai accionar a sua sensibilidade, o seu sentido de humor, enfim, os seus interesses. E vais esperar certas coisas do filme. E, portanto, é um encontro: é um encontro entre uma pessoa, com a sua própria personalidade, e um filme que existe no ecrã e nas colunas de som da sala de cinema. E é assim que pode ser um encontro ou um desencontro.
Mas o meu trabalho como realizador é inventar um espaço que vai ser percorrido por esse espectador, que não deve ser nem uma prisão. Ou seja, no sentido em que o filme não o deve coagir, de uma maneira completamente autoritária, e dizer "Agora vais para a esquerda, agora vais para a direita. Agora há que sentir isto. Agora tens que pensar isto, porque isto é como tu deves pensar". E, por outro lado, também não deve ser um espaço completamente aleatório onde o espectador fica completamente perdido. Portanto, esse equilíbrio entre inventar uma estrutura que possa acolher alguém que será livre o suficiente para poder percorrer aquele espaço, sem estar completamente coagido, e ao mesmo tempo que não esteja ali perdido... É o nosso trabalho e que é quase um trabalho de arquitecto.
Então entremos precisamente mais na obra e no seu filme. Como é que da obra do romancista britânico Sommerset Maugham se chega a este produto final?
O "Grand Tour" era um ritual nalguma alta sociedade, precisamente, de fazer um grande périplo antes de assentar arraiais, de contrair matrimónio e de constituir família. E vai ser o pretexto para "um périplo e peras", pela Ásia. Como é que foi, então chegar-se aqui?
Essa questão é interessante: do que o que é que era o lado quase pedagógico do Grand Tour que estava estabelecido ? O Grand Tour asiático... Havia um Grand tour europeu também. Mas havia o Grand Tour asiático. Ou seja, muita gente do Ocidente ia fazer um itinerário, no princípio do século XX, do Oeste para este.Normalmente de um ponto da Índia ou da Birmânia, que eram os pontos mais a oeste do Império Britânico, para este. Terminando normalmente no Japão e na China. E havia de facto essa ideia de que era necessário confrontar os elementos, os filhos dessa alta sociedade europeia ou americana com o outro. Ou seja, com uma cultura bastante diferente, nos antípodas. Para que, de facto, pudessem regressar mais iluminados.
Neste filme esse Grand Tour é feito, mas quase com a ideia contrária. Ou seja, os personagens não fazem esse Grand Tour porque querem encontrar um caminho e um rumo. Enfim, é como diz, chegar mais bem preparados, voltar mais bem preparados para a vida. Eles estão completamente perdidos !
Há um quer fugir da noiva. O noivo, o Edward, quer fugir da noiva porque está com dúvidas sobre o casamento. Tem uma espécie de um ataque de pânico, uma crise, e decide fugir dela.
E ela vai atrás dele para tentar-se casar com ele de uma forma igualmente desesperada e meio perdida. E portanto, o filme esta. Eles acabam por fazer esse caminho não como como uma fuga e não como um momento para fazer um encontro, para conhecer coisas. Eles estão basicamente em movimento para escapar ao seu destino ou para tentar concretizar aquilo que eles acreditam ser o seu destino.
Mas como é que você tropeçou neste enredo e decidiu pegar nele e levá lo?
Esta história dos noivos deste casal, o noivo e a noiva: um a fugir, ela a perseguir. Veio deste livro do Sommerset Maugham, que é um livro de viagens. Existe uma tradução em português chamada "Um Gentleman na Ásia". E eu estava a ler esse livro. Eu gosto muito de ler livros de viagens: de ver como é que os escritores contam a experiência de viajar e o que é que eles viram. Enfim, essa essa questão do olhar de alguém sobre um relativamente a um território que lhe é estrangeiro, que lhe é desconhecido, que que é uma coisa distante, interessa-me muito.
E portanto, eu gosto de ler livros de viagens. E li este por acaso e deparei-me com esta história que o Sommerset conta. Às às tantas, em duas páginas desta história, ele diz que conheceu um senhor que trabalhava para a administração na Birmânia, inglesa, e que contou a história de como fugiu à sua noiva. Porque entrou em pânico, porque teve dúvidas sobre o casamento e sobre a responsabilidade desse casamento. E decidiu partir e deixar-lhe uma nota a explicar-se, a escusar-se com trabalho. E partiu para Singapura. Mas quando chegou a Singapura já tinha uma nota, um telegrama da sua noiva a dizer "Meu querido, eu estou a chegar. Percebo perfeitamente. Mas estou a chegar e já já nos vamos casar." E ele lá partiu de novo. E esse, digamos, movimento que é uma espécie de um "Jogo do gato e do rato", durou vários meses e acabou por ser feito ao longo deste deste "Grand Tour", ou seja, deste itinerário todo que de muitos milhares de quilómetros.
Foi um "Jogo do gato e do rato" também para si e para a sua equipa. Porque obviamente, o confinamento e o COVID veio perturbar as rodagens e a preparação do filme. Portanto, houve aqui sequências, pelo que eu entendi, nomeadamente a rodagem na China, que tiveram que ser recebidas a posteriori. Houve uma interrupção óbvia por causa do COVID Portanto, foi necessário congelar o projecto durante X tempo ?!
Sim, ou seja, nós decidimos, antes de escrever o argumento, fazer nós próprios a viagem e filmá-la. Filmar a viagem que seria feita pelas personagens, mas que seria feita a posteriori, em estúdio, rodada em estúdio. E decidi-mo-la fazer no mundo de hoje, nós próprios, pelos países. E estavam previstas sete semanas de viagem em Janeiro e Fevereiro de 2020.
E nós fizemos as primeiras cinco. Chegámos ao Japão e faltava o último país onde havia uma parte considerável dessa viagem, porque mesmo dentro da China, de Xangai e até quase próximo do Tibete, iríamos fazer 3000 quilómetros, acompanhando mais ou menos o curso do rio Yangtse.
E quando chegámos ao Japão percebemos que o ferry boat que ia cobrir a distância entre Osaka, acho eu, e Xangai, tinha sido anulado uma semana antes devido ao COVID, à pandemia.
E então, o que nós nós pensamos nessa altura? Bom, "Vamos esperar um mês, dois meses e vamos retomar a viagem quando for reposta a normalidade". Porque nessa altura éramos tão ingénuos, como toda a gente, e achávamos que que era uma coisa meramente circunstancial e que não ia ocupar tanto tempo na nossa vida e ter tantas consequências como teve.
E depois percebemos que estávamos enganados. O tempo foi passando, passou um ano, passaram dois anos e passado dois anos nós pensamos: "É impossível. Nós não conseguimos entrar na China para concluir a viagem. Portanto, vamos concluir a viagem em Lisboa, filmando com uma equipa que serão os nossos olhos. Com o material, eles vão filmar esta parte da viagem na China. E nós vamos estar em Lisboa". Alugámos uma casa em Airbnb no bairro do Areeiro e estávamos lá durante a noite. Éramos poucos, dois ou três, e havia uma uma equipa na China que fez os tais 3000 quilómetros, enquanto nós estávamos sempre nessa casa no Areeiro E, enfim, fizemos o filme, assim. Concluímos essa parte da rodagem na China, assim, à distância.
É fundamental falar do encadeamento entre planos a preto e branco e a cores. A cores são, de alguma forma, momentos algo etnográficos relacionados com o périplo. O preto e branco é a versão hodierna, actual. O porquê de sua opção por estes planos, ora a preto e branco, ora a cores ?
O filme é quase o tempo todo a preto e branco. Eu diria, 90% é a preto e branco. Existem planos a cores por uma questão técnica. Porque nós filmámos em película e na película preto e branco existe apenas uma sensibilidade para 200 ASA para a luz. Portanto, 200 ASA é bom para fotografar, para filmar sequências durante o dia. Mas sequências à noite ou em interiores escuros é necessário outro tipo de sensibilidade: 500 T... que isso só existe em cores. E, portanto, nós decidimos filmar a maioria do filme a preto e branco em 200 D.
E depois ter película a cores para em 10% do tempo, para situações de noite ou em interiores muito escuros. E a ideia era montar o filme completamente a preto e branco. Mas houve uma altura em que nós estávamos um bocadinho, estávamos a montar o filme, já tinham passado várias semanas, estávamos um bocado fartos do preto e branco e lembrámo-nos de que havia as cores ali. E portanto decidimos voltar a pôr. "Vamos voltar a pôr o plano tal como ele foi filmado a cores !" E, portanto, não existe nenhuma lógica a não ser por uma questão meramente técnica.
Não existe uma lógica racional, não existe um significado dos planos a cores quererem dizer qualquer coisa em especial. É só porque por uma questão técnica. Mas decidimos colocar mesmo que as pessoas se perguntassem "Porquê que estes planos são a cores... e o resto do filme é preto e branco ?"Não havendo razão nenhuma racional, é só pelo prazer de que é uma coisa que me que é importante para mim a lógica do prazer. OK, num filme a preto e branco... o que é que faz falta? Olha, de repente aparecem uns planos a cores e a cor é incrível !
Fala em prazer. Já há muito tempo que, imagino, tenha prazer em rodar com Crista Alfaiate. Agora há também a opção pelo Gonçalo Waddington. O porquê deste elenco ?
Para nós foram escolhas óbvias: a escolha dos actores que fazem os dois protagonistas. O Gonçalo tem esta capacidade... Ele pode ter um ar assim, perplexo. E eu acho que ele é um actor com grande potencial cómico, mas com a capacidade de transformar esse lado de comédia numa coisa com um outro peso. E, portanto, ele pode fazer a transição entre comédia e drama muito com uma grande facilidade.
E a Crista? Eu acho que ela, já disse noutras ocasiões... Eu acho que ela é a melhor actriz daquela geração à volta dos 40 anos. E, portanto, nem sequer pusemos nenhuma outra opção. Para nós, a Molly sempre foi a Crista Alfaite e ficámos muito contentes, depois com depois de ter filmado, com aquilo que... Percebemos, que não estávamos muito enganados relativamente a essas escolhas.
E a questão da opção pelo português não foi complicada ? Não é complicada para Gonçalo Waddington, para Crista Alfaiate, mas você põe pessoas do Vietname, do Japão, nomeadamente, a terem diálogos bastante profundos em português. Como é que foi isso? Foi um desafio, imagino, também pô-los a contracenar em português fluente ?!
Sim, o facto dos personagens serem britânicos e falar em português para mim foi uma opção, mais ou menos fácil... Porque eu sou português, não sou britânico. E, portanto, eu não queria... Eu acho que a verdade do filme também passa por isso. Ou seja haver um filtro teatral em que, como no teatro... Quando se faz em Portugal, ou que em França se faz Tolstoi ou se faz Tennessee Williams, faz-se em França e faz-se em Portugal. Em França faz-se em francês, em Portugal faz-se em português.
E nessas peças de teatro as personagens têm os nomes que tiveram nas peças do Tolstoi: os nomes russos ou nomes americanos, no caso do Tennessee Williams. E é uma convenção, ou seja, as personagens falam na língua do país onde está a ser visto o espectáculo com os actores desse país.
E no cinema há mais dúvidas relativamente a isso. Ou seja, parece uma questão completamente resolvida no teatro e no cinema menos. Porque no cinema existe mais a ideia de que o cinema está mais próximo da realidade da vida. Que eu acho que é uma falsa ideia.
Há um realizador francês que já morreu, mas que foi muito importante para mim, que também fazia isto. E fez isto com uma grande lata e muito bem, que era o Alain Resnais !
Por exemplo, eu lembro-me de um filme dos anos 90 que era um díptico que se chamava de "Smoking" e "No smoking", que era uma adaptação de uma peça inglesa feita com dois actores que entravam muito nos filmes deles dele. Esse filme é muito, muito importante para mim. E portanto, se o Alain Resnais pode fazer em francês, eu acho, também posso fazer em português.
E obviamente que existe este lado de sermos todos mais ou menos dominados, colonizados por uma língua que é uma espécie de língua que é comum a todos os países.
Foi a língua que ganhou a batalha das línguas, que é o inglês. E não é problemático ver, sei lá, ao longo da história do cinema, ver imperadores romanos a falar inglês de Brooklyn ! Ou ver, enfim... todas essas coisas passaram a ser normais. E porque não ter em português a mesma coisa? Porque não ter personagens britânicos a falarem português? Eu acho que é mais e mais verdadeiro fazer assim, porque...
Também já foi língua franca no mundo [o português]... E finalmente, obviamente, Cannes você já vinha há muito tempo. Mas esta edição de 2024 fica na história por este prémio. Perguntar-lhe-ia: E agora, depois de Cannes e do seu prémio, como é que você se projecta para a sequência da sua carreira?
Agora eu, antes de fazer o "Grand Tour", eu estava a tentar fazer um outro filme, um filme no Brasil, que é uma adaptação de um livro do Euclides da Cunha chamado "Os Sertões" e o filme chama-se "Selvajaria". E estive muitos anos a tentar fazer esse filme. E foi muito difícil, por várias razões. É um projecto exigente em termos financeiros e na altura em que eu estive a tentar fazer esse filme, havia um governo no Brasil que paralisou completamente os apoios públicos ao cinema. O governo do Bolsonaro e também apanhámos a altura do COVID. Portanto, foi tudo muito difícil e houve um momento em que eu pensei que tinha que renunciar a esse projecto.
E foi muito complicado para mim, porque apesar de tudo, trabalhei anos nesse filme e estou convencido que é o projecto mais... com o qual eu acho que, provavelmente, existe um um potencial mais incrível do que tudo aquilo que eu fiz até hoje ! Ou seja, estou muito envolvido com esse filme e acho que existe a possibilidade de haver ali um filme que possa nascer, que seja muito, muito forte ! E é, portanto, quase que desistir do filme.
Mas depois do "Grand Tour" e de repente passei para o "Grand Tour" e depois do "Grand Tour", o que tem acontecido foi que nós decidimos voltar a esse projecto. E tem havido notícias muito animadoras ! Ou seja, de repente, pela primeira vez, há financiamento do Brasil para esse filme. Tudo parece estar a andar muito rápido e assim uma perspetiva de haver a possibilidade de fazer, de filmar esse filme no final do próximo ano.
Portanto, acho que isso também é uma consequência do prémio de Cannes e daquilo que aconteceu com o "Grand Tour em Cannes" e que existe um entusiasmo renovado em torno deste projecto. E vou aproveitar a conjuntura porque sabemos que isto vai mudando e nos momentos em que estamos em alta, é preciso aproveitar esse momento para poder concretizar coisas que estavam mais difíceis de concretizar.
Foi em busca do tempo perdido e das memórias quase apagadas que o cineasta francês Pierre Primetens realizou o seu mais recente filme "La Photo Retrouvée" ["A Fotografia Encontrada"]. A obra autobiográfica parte da ausência de imagens da sua mãe e da sua infância para resgatar a sua própria história. É com imagens de arquivos de outras famílias que ele reconstitui um passado do qual não tinha registos, e que lhe foi negado, num percurso de vida que o leva a reencontrar-se com as suas raízes portuguesas.
Pierre Primetens nasceu em França, três dias antes da Revolução dos Cravos. Perdeu a mãe portuguesa aos cinco anos e cresceu num ambiente que tentou extinguir a memória materna, as raízes lusas e uma parte da sua identidade. O filme “La Photo Retrouvée” conta essa história e o título responde a outro filme sobre a emigração portuguesa “La Photo Déchirée” [“A Fotografia Rasgada”] de José Vieira, uma referência para Pierre Primetens que, tantos anos depois, acabou por encontrar a fotografia que lhe faltava.
O título é uma referência ao filme de José Vieira que é um filme bastante conhecido sobre a emigração portuguesa para França. "La Photo Déchirée" conta que quando uma pessoa ia para França, deixava uma parte de uma fotografia rasgada e quando chegava ao destino, enviava a segunda parte da fotografia à família para mostrar que chegou em segurança. No meu filme uso imagens de outras famílias e só há uma imagem da minha família no fim que é da minha mãe que emigrou para França. Chamei-lhe “La Photo Retrouvée” porque encontrei essa única fotografia dela e o fim do filme é a revelação dessa fotografia.
Foi a partir da falta de imagens da mãe que nasceu o filme. Pierre Primetens juntou filmagens em Super 8, rodadas entre 1940 e os anos 70 e reunidas num fundo de arquivos familiares [CICLIC Centre-Val de Loire]. Foi contando a sua história ilustrada com essas imagens alheias que começaram a ser as suas e agora são também do público. E assim foi reconstruindo uma memória retalhada, como uma colagem aleatória que foi ganhando sentido ou como um puzzle que se foi completando com peças oriundas de diferentes colecções. “Não tenho fotografias minhas quando era criança. Há uma falta de imagens na minha família. No filme, conto porque é que esta família não fez nenhuma imagem”, descreve.
Pierre Primetens cria um filme com múltiplas leituras e entrelaçamentos, através do cruzamento do texto autobiográfico, com imagens de arquivo de outras famílias, sons também de arquivos, incluindo uma canção de embalar portuguesa, numa associação de ideias e imagens que não pretende ilustrar mas abrir possibilidades. O único fio condutor é a história de um menino de cinco anos que perde a mãe e fica entregue a um pai que decide apagar completamente a mãe das suas vidas, com toda a violência que isso acarreta para uma criança. Até ao dia em que, já adulto, um familiar aparece à procura dele e o reencontro com Portugal acontece.
Pierre Primetens já tinha feito uma trilogia autobiográfica com "Un voyage au Portugal", "Des vacances à l’Île Maurice" e "Contre toi", em que já estava inscrita uma certa viagem em busca de quem se é. "La Photo Retrouvée" talvez seja o completar de um ciclo sobre essa tentativa de resgate de memórias e identidade.
O filme já foi apresentado nos festivais Chéries-Chéris Paris, Sicilia Queer filmfest 2024, Queer Lisboa 2024, Family Film Project Festival 2024 e États généraux du film documentaire de Lussas 2024.
O historiador e co-organizador do livro "O Mundo de Amílcar Cabral", Victor Barros, apresentou-nos o livro que aborda as várias geografias que Amílcar Cabral percorreu; Portugal, Paris, URSS ou ainda Cuba, e como a sua luta se inseriu num contexto de revoluções no sul global. "Este livro tenta trazer para o público um conjunto de ensaios que nos dão uma visão mais alargada dos vários palcos por onde passou Amílcar Cabral", começa por explicar Victor Barros.
RFI: O historiador Victor Barros acaba de publicar o livro "O Mundo de Amílcar Cabral", uma obra redigida por três coordenadores. O livro refere-se ao contexto político e social vivido por Amílcar Cabral, líder revolucionário e intelectual africano nas décadas de 50 a 70. O mundo de Amílcar Cabral foi um mundo de resistência contra o colonialismo, de procura pela soberania africana e pela justiça social, mas foi muito mais?
Victor Barros: Foi muito mais, inclusive o livro que acabamos de coordenar -eu e os meus dois colegas do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa - comprova isso. É um livro que nós tentamos trazer para o público geral, com um conjunto de ensaios que abordam temas diversos, temas que conectam com as múltiplas geografias onde Cabral circulou, mas também que nos dá uma visão mais alargada dos vários palcos por onde passou Amílcar Cabral. Também nos dá uma percepção mais ampla daquilo que é a geopolítica do mundo na altura. Nós conseguimos captar a história do mundo dessa altura a partir da trajectória e das conexões e interações políticas e geopolíticas que Amílcar Cabral teceu nessa altura.
Que pontos geográficos são abordados neste livro?
Poderíamos tomar isso como percurso, mas teríamos de enquadrar esses percursos. Ou diria, cada percurso dentro de um contexto muito específico, de um contexto geográfico muito específico do processo da luta. Esses percursos são percursos que conectam Amílcar Cabral dentro da cartografia da luta. Estamos a falar de espaços tanto com Portugal, onde ele estudou e começou o processo de militância, passando por Paris, onde ele tinha militantes e simpatizantes da revolução do PAIGC, da revolução anticolonial, passando pela URSS até Cuba, China e vários outros pontos do globo. Dá-nos uma percepção dos movimentos geográficos, das viagens, das circulações, mas também ajuda-nos a compreender como é que a luta do PAIGC, conduzida por Amílcar Cabral é uma luta que conecta simultaneamente várias geografias e várias cartografias e pontos e interacções de luta.
Uma luta que se conecta também com outras lutas e que acompanha outros movimentos sociais?
Sim, exactamente. É uma luta que se conecta com várias outras lutas porque este era um dos princípios essenciais do lema do Cabral e do PAIGC, criar ligações entre lutas, ou seja, colocar a revolução anticolonial para a independência da Guiné e Cabo Verde dentro de um contexto geral específico das lutas anticoloniais no sul global e das lutas para a independência das colónias portuguesas dentro do contexto global das revoluções anticoloniais que estavam a decorrer no terceiro mundo. Estamos a falar de lutas dentro de uma cartografia de várias outras lutas, na qual a luta do PAIGC para a independência da Guiné e Cabo Verde representava apenas uma antena de várias outras manifestações e demandas pela soberania e pela independência e de outros povos.
Em todos os momentos, o PAIGC reclamou que a sua luta seria um contributo para a emancipação não só dos guineenses e dos cabo-verdianos, mas também para a própria emancipação dos portugueses na metrópole que estavam subjugados pela ditadura de Salazar. Era um contributo de uma revolução para as revoluções que estavam a decorrer, para a emancipação de outros povos que estavam sob dominação e da ocupação imperialista e colonial.
Aquando da redacção deste livro, houve alguma história que despertou o seu interesse. Uma história que desconhecesse e que quis absolutamente contar nesta publicação?
Sim, particularmente no ensaio que eu escrevi, um dos episódios que despertou a minha atenção foi o facto de, a dada altura, perceber que Cabral faz isso com muita precisão. Ele dá o número de litros de sangue, sangue fresco que era transportado a cada 15 dias de França para Conacri. Esse sangue era utilizado para tratamento dos feridos de guerra. Então ele dá, com precisão, e no ensaio têm lá os elementos, essa informação. É incrível. Esse sangue era sangue colectado através de voluntários que faziam parte do Comité de Apoio Francês, que eram militantes anti-colonialista, anti-imperialistas e simpatizantes da revolução anticolonial guineense do PREC e que se disponibilizavam a colectar no fim-de-semana, através de campanhas de recolha de sangue, clandestinamente, obviamente, porque tratava-se de um comité informal e de um conjunto de outras ramificações na forma a preservar o sangue, até chegar ao hospital de campanha, onde estavam confinados os feridos de guerra.
Esse detalhe foi um detalhe bastante interessante, no sentido em que, quando imaginamos ou quando pensarmos a delicadeza do processo de preservação, que é o tratamento que um sangue fresco deve ter para ser preservado e depois para ser colocado à disposição de pessoas que precisavam num contexto de guerra, ou seja, de sangue que transita da periferia de Paris e que passa por vários outros processos para chegar a Boké e que acaba por ser útil para a manutenção do esforço de guerra dos combatentes do PAIGC e para a sobrevivência de muitas pessoas.
Estamos a falar de uma grande quantidade de sangue, existe uma descrição da quantidade de litros?
Sim, estamos a falar de uma grande quantidade. Se pensarmos duas coisas: primeiro, se pensarmos no contexto da época e depois se pensarmos na temporalidade entre a recolha e a partilha. A cada 15 dias, segundo Cabral, chegava ao Hospital de Boké, a partir do Paris de avião, 80 litros de sangue. É um número significativo para o contexto da época. Isto é revelador da mobilização e do impacto da boa reputação política que a revolução anticolonial do PAIGC estava a ter à escala internacional.
Este aspecto permite perceber à escala transnacional aquilo que é a persuasão que a luta do PAIGC estava a ter em indivíduos. Estamos a falar de indivíduos que vão a comités de apoio, que são grupos informais de militantes e de activistas e simpatizantes que reúnem e mobilizam pessoas para fazerem doações tanto de sangue como de roupa, de cadernos e materiais escolares para estudantes e para as escolas, das zonas libertadas, de alimentação, de medicação, ou seja, de recolha de medicamentos.
Como é que a luta do PAIGC estava a ter impacto em pessoas no Norte global, ou seja, na Europa, de forma a potenciar nessas pessoas um ímpeto para essas pessoas produzirem uma agência e essa agência retornar de volta, em termos de resultado, de colecta de apoio para os militantes e para as pessoas nas zonas libertárias do PAIGC. Isto é extremamente importante, na medida em que esse impacto é de tal forma que quando a Guiné e Cabo Verde ganham independência, no programa de formação de militância política, o conceito de solidariedade acabou por entrar no léxico da educação política de forma a demonstrar que a luta do PAIGC não foi uma luta conectada com várias frentes de luta e com várias pequenas bolsas de resistência e de colaboração e de solidariedade, dado não só por país de forma formal, ou seja, de Estado para o movimento de libertação, mas também dado de forma como pequenos grupos informais da sociedade civil que apoiavam as demandas de independência da Guiné e Cabo Verde.
No colóquio que decorreu na cidade da Praia em Setembro, apresentou o texto "Cabral e as pontes para o novo diálogo Norte-Sul e Sul-Sul". Que diálogo é esse?
Normalmente, costumamos, por regra, numa perspectiva eurocêntrica, tendemos a imaginar ou a analisar os processos históricos do norte para o Sul. Ou seja, a Europa é a causa dos eventos que acontecem noutras partes do mundo. Este é o paradigma dominante, hegemónico, eurocêntrico. Então, a perspectiva aqui é do sul para o norte, que é como é que sujeitos históricos do Sul, neste caso da Guiné, Cabo Verde, África, estão a produzir agências e essas agências estão a impactar a imaginação política de actores no norte global, na Europa.
A segunda questão essencial também é perceber como é que as acções desenvolvidas no sul global, através de sujeitos históricos africanos acabaram por gerar interações com sujeitos na Europa. Ou seja, eles conseguiram persuadir outros sujeitos políticos que acabaram por introduzir nas suas linguagens políticas na Europa aquilo que são as demandas dos actores e dos sujeitos políticos africanos e sul-sul. Basicamente porque a conexão que se fez entre a luta ou as lutas na Guiné e Cabo Verde e outras colónias portuguesas com outras lutas que estavam a decorrer no sul global, também é um aspeto a ter em conta e as várias conferências que foram realizadas, conferências internacionais e destaco a Conferência de Cartum, de Janeiro de 1969 - que é uma conferência que acaba por ter um impacto tremendo na medida em que é realizado em Cartum, no Sudão. A partir dessa conferência há um conjunto de movimentos que desencadeiam na Europa, com a criação de comitês, com a criação de grupos de apoio, com a criação de grupos que trabalham especificamente na questão da propaganda, ou seja, de dar a ver para a opinião pública internacional e sobretudo europeia, aquilo que eram as lutas que estavam a ser desenvolvidas no sul global, nomeadamente na Guiné, em Angola, Moçambique e outros territórios.
Esse aspecto do sul para o norte dá lugar a esses sujeitos históricos que são sujeitos importantes, em vez de olharmos para a história da descolonização e da luta apenas a partir das lentes da metrópole e dos seus sujeitos da metrópole, é ver pelo viés dos sujeitos africanos, da agência dos africanos, da forma como as agências dos sujeitos históricos africanos impactaram a imaginação política de sujeitos históricos e de actores políticos na Europa e noutras partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos.
Por que é que teve de ser a conferência de Cartum a evidenciar, a dar visibilidade ao que estava a acontecer em África. Os países ocidentais estavam cientes e acompanhavam o que estava a acontecer em África?
Sim, os países ocidentais sabiam, mas uma boa parte dos países ocidentais eram na altura e continuam a ser membros da NATO, inclusive Portugal. Sendo membros da NATO, esses países estavam a apoiar a guerra colonial, ou seja, apoiavam Portugal com vários meios na manutenção do esforço de guerra, inclusive com equipamentos militares. Apoiavam politicamente Portugal com o veto ou simplesmente com abstenção, quando resoluções das Nações Unidas tentavam condenar o colonialismo português e a guerra colonial nas colónias portuguesas.
A Conferência de Cartum é importante na medida em que ela põe em cena vários tipos de actores. Põe em cena actores estatais, ou seja, Estados que apoiavam movimentos de libertação. Ela põe em cena os movimentos de libertação enquanto tal, enquanto actores que estão a produzir a história da luta pela independência. Põe em cena também os grupos de militância activista política que vêm de diferentes partes do mundo da Europa, inclusive do Brasil, do Vietname, da China, etc. Cartum desencadeia um conjunto de resoluções. Nessas resoluções, Cartum outorga, ou seja, legitima a grupos individuais nos países respectivos no Ocidente, de formarem grupos e comités de apoio, denunciando o envolvimento dos seus respectivos governos no apoio à guerra colonial. É essa a questão que é fundamental levar em conta da importância e do peso que Cartum tem ao estimular esse processo.
A criação destes movimentos vem mudar o percurso da história?
Vem mudar o percurso da história depois, sim. A partir de Cartum surgem na Europa vários outros comités de apoio, comités informais, vários outros grupos de apoio. Cartum vai dar lugar a uma outra conferência que vai acontecer nos Países Baixos, na Holanda, e levando para lá os mesmos comitês de apoio, os mesmos movimentos de solidariedade, os mesmos movimentos de libertação. É da Holanda que também se prepara, influenciado por Cartum, a Conferência de Roma, que acontece depois - em que os líderes dos movimentos de libertação serão recebidos pelo Papa. Cartoon está na genealogia desse processo e do impacto posterior que os movimentos de libertação acabam por ganhar à escala transnacional. Cartum prepara todo um caminhar porque depois de Cartum há duas outras conferências chaves que acontecem, como eu disse, na Holanda e depois em Roma. E isto tem um impacto forte em termos daquilo que são as conquistas do ponto de vista político e do ponto de vista moral, daquilo que é a imagem dos movimentos de libertação que acabam por conquistar à escala transnacional.
De 15 a 23 de Novembro decorre em Nantes, França, a 46a edição do Festival des 3 Continents (Festival dos Três Continentes). Um encontro que apresenta longas-metragens provenientes de África, América Latina e Ásia.
A figurar na selecção oficial estão dois filmes lusófonos: “Manas” de Marianna Brennand e “Hanami” da cabo-verdiana Denise Fernandes.
De 15 a 23 de Novembro decorre em Nantes, França, a 46a edição do Festival des 3 Continents (Festival dos Três Continentes). Um encontro que apresenta longas-metragens provenientes de África, América Latina e Ásia.
Em entrevista à RFI, Aisha Rahim, programadora do Festival des 3 Continents, sublinha que a edição deste ano visa homenagear duas grandes figuras indianas: a actriz Shabana Azmi ao cineasta Raj Kapoor, “também conhecido Charlie Chaplin, do cinema indiano”.
A figurar na selecção oficial estão dois filmes lusófonos: “Manas” de Marianna Brennand e “Hanami” da cabo-verdiana Denise Fernandes.
“Hanami” de Denise Fernandes foi filmado na Ilha do Fogo, em Cabo Verde. Conta a história de uma família da “remota ilha vulcânica” de onde todos querem partir, mas onde Nana aprendeu a ficar.
Nós, enquanto programadores, vemos muitos filmes, visitamos festivais, chegam-nos filmes que nos são enviados pelos mais diversos interlocutores da nossa indústria do cinema e penso que teremos visto o “Hanami” no Festival de Locarno. Foi uma uma descoberta para nós.
Este filme da Denise Fernandes é a sua primeira longa-metragem. Uma das raras longas metragens de ficção filmadas em Cabo Verde.”
Questionada sobre o que a seduziu neste filme, Aisha Rahim fala no “olhar original” e “carácter autoral” da película: “Eu gosto muito de “Hanami” pela nova visão do mundo que ele também põe em prática. O filme, em vez de se posicionar do lado do sofrimento, da separação, posiciona-se do lado da união ou da reunião, do diálogo, do perdão, da cura, da reconciliação, neste caso entre uma mãe e uma filha. E neste sentido, penso que é um filme, também ele único, que nos traz uma nova visão do mundo.”
“Manas” é a primeira longa-metragem de ficção de Marianna Brennand e resulta de uma década de investigação. O filme retrata a vida de Marcielle, que vive na Ilha do Marajó, na Amazónia, lugar onde meninas e mulheres são sistematicamente violadas, exploradas e abusadas.
A 46a edição do Festival des 3 Continents (Festival dos Três Continentes), decorre em Nantes, de 15 a 23 de Novembro. Um encontro que apresenta longas-metragens provenientes de África, América Latina e Ásia.
A 4ª edição do DjarFogo International Film Festival está a decorrer esta semana em Cabo Verde. O evento destaca filmes tanto do continente africano quanto da diáspora, e tem como tema "Libertação através da Cultura". Esta edição presta uma homenagem ao centenário de nascimento de Amílcar Cabral, com uma selecção de filmes que abordam temas como "resistência, identidade e a luta pela liberdade", como explica o director do festival, Guenny Pires.
RFI: Como é que arrancou o festival?
Genny Pires: Arrancou muito bem. Não podia ter sido da melhor forma, uma vez que tivemos actividades na Universidade de Cabo Verde, actividades também no Centro Cultural Português com a exibição do filme Mário, sobre Mário Pinto de Andrade. Tivemos uma sala cheia com estudantes e professores e vários convidados. Foi uma coisa muito linda. O festival está a decorrer da melhor forma possível, tivemos uma excelente abertura com a apresentação de um grupo, as Batuquinhas PBS, que apresentaram três temas ligados à luta de libertação e músicas muito importantes no contexto da criação ou da reafirmação da identidade cabo-verdiana. Estamos muito felizes e esperançosos de que o projecto vai continuar e vai ter cada vez mais oportunidades de poder trazer mais cineastas aqui e contar com a contribuição, de forma humilde, da produção que se faz no país, mas sobretudo trazer o mundo para Cabo Verde e poder fazer com que o mundo possa filmar aqui em Cabo Verde e possa partilhá-lo com o resto do mundo.
Como sabemos, Cabo Verde é um país que tem uma diáspora muito grande. Este festival focaliza nos filmes do continente africano; temos 25 filmes do continente e os outros filmes da diáspora, que também são filmes daqui de Cabo Verde e estamos muito agradecidos e muito contentes com a abertura. O festival continua nos próximos dias na Ilha do Fogo. Vamos ter uma homenagem especial ao ex-Presidente de Cabo Verde, o comandante Pedro Pires que foi agraciado pelo DjarFogo International Film Festival com o prémio ícone cultural. Estamos satisfeitos e que temos muito, muito trabalho pela frente.
Na Ilha do Fogo vamos ter actividades nas escolas e vamos aos três concelhos da ilha. Também teremos a finalização do evento com a entrega de prémios. O festival decidiu entregar 20 a 25 prémios durante o encerramento do festival.
O festival tem como tema Libertação através da Cultura. O que é que este tema significa e como é que se reflecte nos filmes seleccionados?
É precisamente por causa da homenagem que estamos a fazer desde o início do ano em torno da personalidade de Amílcar Cabral. Este tema reflecte a luta de libertação de África, dos países que falam português. Mais do que isso, os filmes foram seleccionados com base nos temas dos filmes que vão de encontro com o tema principal do festival. Começando pelo filme de Samir Amin, que é franco-egípcio francês, um intelectual e político, este filme passou na Universidade de Cabo Verde. Temos um outro filme sobre música em Lisboa... Tudo a ver com africanidade que discute questões culturais e identitárias.
Que filmes ou eventos específicos estão alinhados ao centenário de nascimento de Amílcar Cabral?
Temos o filme Sonhos de uma Revolução, um filme de Moçambique. Temos um filme da Guiné-Bissau que Mon di Timba. Temos outro filme da Guiné-Bissau que é antigo e temos um filme também de São Tomé sobre aquela história de 1953 que morreram várias pessoas no massacre..
de Bafatá...
Sim. Há filmes desses países, outros da diáspora, por exemplo, temos um filme sobre Oakland, na Califórnia, que trata questões de afro-descendentes, que fala sobre a questão da brutalidade policial e discriminação. Depois temos filmes de animação, um filme da Austrália que também vai, neste sentido, de redescobrir a sua pessoa através do cinema. Todos os filmes que temos têm a ver com o tema principal do festival, que é sobre a liberação através da cultura. Nós escolhemos este tema para poder fazer um casamento agradável com o centenário de Amílcar Cabral.
Como referiu, o cinema permite-nos reflectir sobre o mundo e sobre as problemáticas actuais, nomeadamente sobre a questão da violência racial. É importante que a arte e, neste caso, o cinema, crie um espaço para o pensamento?
É verdade que se tivermos em conta que o cinema como uma das ferramentas mais poderosas para ensinar, até para conhecermos quem somos, os filmes e o cinema podem ajudar-nos a desbravar e conhecermo-nos. Mas, mais do que isso, dar-nos a possibilidades de, por exemplo, contarmos a nossa história a partir da nossa própria perspectiva e de uma perspectiva africanista, mas também numa perspectiva de mistura de culturas. Este festival é uma forma de também as pessoas poderem ver coisas que, muitas vezes, são invisíveis ou acessíveis de outra forma.
Esse é um dos principais desafios desta4ª edição?
Sim, porque um país pequeno como Cabo Verde, com várias dificuldades, sobretudo num ano de eleição em que as dificuldades são muito maiores, há uma certa tendência a esperar até o último minuto para resolverem as coisas. Para nós, tudo isso é uma aprendizagem constante, uma aprendizagem agradável, embora com vários constrangimentos, sobretudo financeiros porque queremos trazer vários cineastas e queremos criar condições porque o cineasta vive de ir ao festival e é ali que, de facto, pode ser reconhecido e pode trocar experiências por criar co-produções. Nesse sentido, este ano propomos oito projectos de documentários, de filmes documentários, com o nosso parceiro da Colónia Pitch the Doc, que vai seleccionar oito projectos, entre os quais três destes projectos de Cabo Verde.
Cabo Verde ainda não tem uma indústria de cinema. Estamos numa fase muito incipiente, de modo que a nossa preocupação é sempre trazer algo que possa ajudar localmente, mas também que possa ir entrando e sinalizar o cinema cabo-verdiano. É poder contribuir para o desenvolvimento da sociedade cabo-verdiana e poder projectá-lo e criar uma marca de Cabo Verde. Estamos muito animados e muito determinado e confiante no resultado que terá que levar o seu tempo naturalmente, mas pouco a pouco estamos a dar um salto e estamos a internacionalizar cada vez mais este cinema.
A Guerra Civil em Moçambique é um tema que tem sido alvo de um silêncio que não tem contribuído para a redenção do país.
Para revelar histórias não contadas e fazer o filme "As Noites Ainda Cheiram a Pólvora" (recentemente apresentado no Festival DocLisboa), o realizador Inadelso Cossa regressou à aldeia da avó.
Na aldeia, o realizador junta memórias fragmentadas da infância vivida durante a guerra civil em Moçambique, recordações dispersas que a avó se esforça por partilhar e os testemunhos de perpetrador e vítima.
O documentário, marcado por um arrojado sentido estético e uma mistura entre realidade e ficção, é como a fogueira onde, com o cair da noite, se reunia toda a aldeia e se ouviam histórias. Num desafio para quebrar silêncios e reduzir novas tensões, Inadelso Cossa tira da escuridão uma parte dos fantasmas da guerra civil.
A exposição "Pour voir, ferme les yeux" [ Para ver, fecha os olhos] da artista plástica portuguesa, Ana Vidigal, está patente até ao dia 9 de Março, no Centro de Criação Contemporâneo Olivier Débre, em Tours. Em entrevista à RFI, Ana Vidigal diz que é pintora graças ao 25 de Abril, reivindica-se feminista para não ser masoquista e alerta para as constantes ameaças à democracia.
RFI: Num mundo onde somos constantemente bombardeados pela informação, onde as câmaras dos telemóveis se sobrepõem ao nosso olhar. Que mensagem pretende passar com esta exposição?
Ana Vidigal, artista plástica portuguesa: penso que as pessoas devem, em vez de reagir instintivamente, parar para pensar em que situação estamos a viver. Hoje em dia, aqui na Europa ou em qualquer parte do mundo.
Daqui a menos de um mês, vamos assistir ao que se vai passar nos Estados Unidos, ficámos todos um pouco esperançados com esta nova candidatura. Confesso que também fiquei contente com o resultado das eleições aqui em França, porque seria, na minha opinião, perigosíssimo que a França perdesse valores democráticos, digamos assim, que demoraram muito tempo a ficarem consolidados.
Porém, tive muita pena que Portugal comemorasse os 50 anos do 25 de Abril com 50 deputados da extrema-direita. Uma coisa que nunca tinha acontecido.
Talvez devamos parar um pouco para pensar que devemos tratar melhor a democracia que temos. A democracia também “se gasta” e no dia em que ela se gastar, vai ser muito difícil recuperá-la.
Estamos tão baralhados com a informação toda que temos, com toda a confusão mental que as imagens nos provocam, que fechar os olhos para pensar, nessas mesmas imagens, não quer dizer fechar os olhos para não ver! É fechar os olhos para pensar e poder fazer uma opção do que queremos ver.
Nas suas obras explora o universo da verdade e da mentira. Em muitas das suas obras há uma parte que se pode ver e a outra não pode.Há presença do Pinóquio. É uma alusão ao que é verdade e ao que é mentira?
Sim, hoje em dia estamos muito sujeitos a isso. São valores que nos foram incutidos desde crianças, para não mentirmos. Mas é inevitável que todos nós mentimos ao longo da vida. A mentira está a tornar-se cada vez mais uma ferramenta que é utilizada sem limites. Acho isso muito perigoso.
No trabalho que faz recorre frequentemente a colagens, materiais têxteis, materiais ligados à sua infância- ao passado da sua infância- ou com carácter biográfico. Ao usar estes materiais, que importância lhe dá?
A minha primeira escolha é sempre porque tenho uma grande identificação formal com esses objectos. Porém, a história dos objectos também me interessa bastante e gosto de saber [a sua história] mesmo quando eles me são oferecidos. Gosto de saber o que é que as pessoas fizeram com eles. Há sempre qualquer coisa a aprender com esses materiais.
Muitos dos materiais com os quais trabalha foram-lhe deixados pela sua avó…
Sim, a minha avó era uma excelente arquivista e guardou todas as coisas de família. Fê-lo porque podia, tinha uma casa grande. Foi professora, mas quando se casou deixou de trabalhar e, portanto, pôde fazer isso. E tinha esse prazer de delicadamente guardar todas essas coisas que chamava recordações. E foi extremamente generosa porque, era a única neta rapariga, disse-me sempre que podia mexer em tudo. Que podia abrir as caixinhas, os pacotinhos, as fotografias e os álbuns. E eu, confesso-lhe, espatifei tudo.
Nesta exposição há uma instalação onde a Ana coloca uma série de porta-retratos da sua família, todos virados para a parede, não se vê as fotografias. Uma obra que lhe foi pedida para trabalhar a memória. É importante proteger-se a memória da família?
A memória é uma coisa que trabalhamos e também só mostramos aquilo que queremos. Quando me pediram para fazer um trabalho sobre a memória, lembrei-me imediatamente dessas imagens e da imagem que eu tinha do escritório do meu avô. Em casa, o meu avô tinha uma prateleira, ao longo de todo o escritório, com todas as fotografias de antepassados familiares. Quando se desmanchou essa casa, o meu pai quis imediatamente deitar fora aquelas molduras todas e ficar só com as fotografias. Eu não deixei porque pensei sempre que aquilo era a memória que eu tinha do meu avô e quis sempre preservar aquilo. Sabia que um dia eu iria utilizar esses porta-retratos em qualquer coisa. Não sabia quando, nem como e nem em que contexto.
No 25 de Abril a Ana tinha 14 anos…
Foi em Abril e eu fiz 14 anos em Agosto.
Que lembranças e vivências trouxe dessa época para o seu trabalho?
Eu não trouxe propriamente nada do 25 de Abril para o meu trabalho. A única coisa que aconteceu é que hoje sou pintora porque houve o 25 de Abril. O 25 de Abril foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. Foi muito bom ter acontecido com 13 anos, porque o resto da minha adolescência foi passado em liberdade.
Eu não sabia que não se era livre. Pensava que toda a gente vivia como eu, o que não era verdade. Eu vivia numa bolha, andava num colégio de freiras, só convivia com pessoas da minha situação familiar e, portanto, achava que era tudo assim. Com o 25 de Abril caí na realidade. E foi óptimo ter caído na realidade porque pude, tipo esponja, criar os meus próprios valores. Valores que a democracia me deu.
A sua mãe dizia-lhe que era preciso ser uma menina limpinha. A Ana criou uma obra a que deu o nome “Menina limpa e a menina suja”. O 25 de Abril permitiu-lhe ser a menina suja, a menina que se porta mal?
O 25 de Abril permitiu que eu tivesse a noção de que podia optar e podia fazer escolhas e que essas escolhas teriam consequências. Coisa que possivelmente não aconteceria se não tivesse havido o 25 de Abril.
Nesta exposição faz também uma homenagem às várias pintoras portuguesas…
O 25 de Abril trouxe às mulheres portuguesas uma coisa absolutamente maravilhosa, que foi aquela ideia de liberdade. Mas nunca esquecer que o nosso 25 de Abril aconteceu em 2008, quando foi aprovada, na Assembleia da República, a despenalização da interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher. Só aí -nós mulheres portuguesas- fomos donas do nosso próprio corpo. Não quer dizer que a lei seja completamente cumprida.
A Ana afirma que se tornou feminista para não ser masoquista…
Claro! As mulheres ganham menos que os homens. As mulheres são preteridas porque engravidam. Com todas essas injustiças, só se eu fosse masoquista é que achava que essas coisas estavam correctas. Quando eu percebi que o movimento feminista só lutava para por um fim a essas desigualdades, exigir a paridade...É lógico que me tornei feminista.
Nesta exposição o público pode ver a obra "Tornei-me Feminista para não ser Masoquista"Nela vêem-se imagens da Ana com pioneses colados na cara, outra onde tem um saco na cabeça e a última surge com uns cornos de diabo. Que mensagem pretende passar?
Foi um domingo à tarde e é assim que se chama esse vídeo. Eu não gosto de trabalhar ao fim-de-semana, mas estava um bocado entediada e fui para o atelier. Não me apeteceu pintar e resolvi começar a fazer aquilo e foi uma sequência de coisas que foram acontecendo e mais tarde, quando eu vi o vídeo, comecei a identificar situações com aquelas coisas que eu tinha feito.
Na obra está a frase de Mae West: ”Quando eu sou boa, sou boa. Mas quando sou má, sou ainda melhor”.
Ao fim e ao cabo estou quase a rir-me de mim própria. Quer dizer, porque já me vi em situações tão caricatas que pensava que nunca me iria ver na vida, que só posso rir. Não posso fazer mais nada.
Atrás de nós está uma obra que a Ana fez em homenagem à Masha Amini. O que é que representa esta obra?
Esta obra representa exactamente esse retrocesso. Há imensas obras, que estão aqui na exposição, onde utilizo [as revistas francesas Paris Match e Jour de France] que eu li desde miúda, porque a minha avó as assinava. A censura não as proibia porque só deviam ver a Brigitte Bardot e o Alain Delon, nem percebiam que à frente tinha o Vietname e críticas ao Xá da Pérsia.
Eu lembro-me de ver imagens do que era a Pérsia, agora o Irão, com todos os defeitos possíveis e imaginários, porque era uma ditadura, mas havia também o outro lado, que era o de abertura para as mulheres terem alguma liberdade.
Hoje em dia, no Irão as mulheres são completamente esmagadas. Uma mulher que é morta porque não pôs o véu como meia dúzia de homens acham que ela deve pôr é inconcebível. Todavia é isto que acontece na maior parte dos países.
Uma obra de arte também é uma arma para se veicular aquilo que se pensa?
Acredito que se isso acontecesse, se calhar não teria havido a Segunda Guerra Mundial, não teria havido Hiroshima. Isto porque todos os artistas se manifestaram contra esse tipo de posições que os políticos tinham, mesmo contra o nazismo e [nada mudou]. Mas eu gostaria que fosse.
Na sua obra há também referências a um acontecimento que é eminentemente político, a guerra colonial. Há um desenho que o seu pai fez das ex-colónias portuguesas. O seu pai que esteve na guerra na Guiné-Bissau. Que recordações guarda desse tempo? A Ana fez uma instalação com a correspondência que os seus pais trocaram, nesse período, “Penélope”.
Sim, o meu pai fez a tropa, no tempo normal, e depois em 1967 foi chamado a segunda vez para fazer o curso para capitão. Esteve dois anos na Guiné-Bissau , esteve sempre no mato. Mas como ele era oficial veio a Lisboa, um mês em cada ano, mas ficámos praticamente dois anos sem o ver.
Apesar de sermos crianças e de termos sido muito protegidos pela minha mãe, pelos meus avós, penso que tínhamos a noção de que ele poderia não voltar, poderia levar um tiro. Claro que também tínhamos aquela noção de que ele era o bom e os outros eram os maus, coisa que não era correcta. Hoje temos outro tipo de informação, sabemos outro tipo de coisas. Naquela altura não sabia que vivíamos uma ditadura. Eu penso que não há ninguém da minha geração que não tenha tido um primo, um tio, um pai ou um irmão na guerra colonial.
A Ana considera que nunca se olhou para essas feridas. Nunca se olhou para o facto de que as mulheres ficaram à espera, sozinhas…
Sim, é uma lacuna. Nunca se falou das mulheres que cá ficaram. Aguentar o barco porque os homens iam e as mulheres ficavam.
Estamos aqui em frente a duas obras- dois labirintos – onde explora o passar do tempo. De que falam estas obras?
São obras, em termos formais, sobre a alienação do espaço e do formato, em termos de concepção, de uma série que se chama “Matar o Tempo”. Foi uma série que fiz a partir de labirintos encontrados em revistas, que estão nas salas de espera dos hospitais, num período da minha vida em passei muito tempo nessas salas. Estava a acompanhar uma pessoa que estava a fazer uns tratamentos muito complicados e era uma maneira de eu matar o tempo e de sobreviver.
Numa entrevista que deu, em 2010, à jornalista Anabela Mota Ribeiro, ela descreve a da seguinte forma: Ana Vidigal pinta quem é como os outros escrevem quem são. Continua a rever se nessa definição. Pinta como os outros escrevem quem são?
Não sei!
Mas é-lhe mais fácil falar de si e da sua história através da pintura, de manter vivo o universo infantil?
Como são materiais que eu utilizo, penso que essa afirmação está correcta. Eu acho que sim. E como eu digo, muitas vezes, trabalho com esses materiais há 40 anos. Se em 2010 era assim, em 2024 também. Continuo a trabalhar de forma diferente, mas com os mesmos materiais.
E nessas caixas ainda há mais materiais?
Há imenso material. Tenho imensa coisa. Acho até que é um problema para as minhas sobrinhas. O que é que vão fazer com aquilo um dia que eu vá, como eu costumo dizer, para o Alto São João? Vai ser um problema...
Mas acho eu, nestas coisas, sou muito prática. Tenho um amigo que é também um excelente arquivista, bastante mais novo que eu, e vou dizer-lhe para ajudar em tudo. Temos de ser práticos e pensar nestas coisas. Não deixar problemas para as gerações seguintes.
Em Paris, a Revolução dos Cravos saiu à rua na recta final das celebrações dos 50 anos do 25 de Abril para mostrar aos parisienses e aos visitantes de todo o Mundo não só o dia emblemático da democracia portuguesa, mas o processo revolucionário que se seguiu. Uma exposição de acesso livre permite até dia 20 de Novembro ver os momentos-chave desta revolução.
"La Révolution des Œillets 25 avril 1974 : Ode à la démocratie" é uma exposição de 24 fotografias que pode ser vista na vedação da Tour de Saint Jacques, um dos monumentos mais emblemáticos de Paris, e que dá precisamente para a rue Rivoli, uma rua de comércio por excelência na capital francesa. Esta ode é guiada pela lente de três fotógrafos que estiveram em Portugal entre 1974 e 1976 Alécio de Andrade, Jean-Claude Francolon et Guy Le Querrec.
Yves Leonard, historiador francês especialista na História de Portugal, é o conselheiro científico desta exposição e explicou em entrevista à RFI como foi feita a selecção destas fotografias.
"A selecção é um exercício muito difícil de fazer, desde logo porque houve muitos fotógrafos e nós decidimos escolher três, dois franceses e um brasileiro. A vontade foi de fazer uma selecção não só sobre o dia do 25 de Abril, até porque nesse dia só Jean-Claude Francolon estava em Lisboa, mas também depois do 25 de Abril, do início de Maio, da Primavera de 74 e todo o processo durante um ano, até às eleições para a Constituinte em 75", declarou o historiador.
Esta história é contada a quem passa nesta atribulada rua parisiense através de 24 fotografias, desde as chaimites nas ruas, até ao regresso de grandes figuras da revolução como Mário Soares ou Álvaro Cunhal, até ao regressos dos portugueses que viviam nas colónias, as organizações sindicais um pouco por todo o país e ainda a primeira eleição livre a 25 de Abril de 1975 que elegeu os deputados da Assembleia Constituinte.
A ambição desta exposição é assim devolver uma revolução popular ao povo, agora de uma das maiores capitais do Mundo, dando a conhecer aos franceses e aos visitantes de Paris a história da Revolução dos Cravos para além do dia 25 de Abril de 1974.
"É um processo revolucionário, é uma história que não é só de um dia, mas de um processo que durou dois anos, com o voto da Constituição de 1976 e as eleições a seguir. A ideia é mostrar que foi um processo com dificuldades, com ambiguidades, para encontrar o caminho para uma democracia ocidental, liberal. E também destacar o papel do povo, dos militares, dos partidos e de falar de tudo isto em 24 fotografias", concluiu Yves Leonard.
Neste programa Artes , vamos apresentar o projecto "Livro Zunga", da ONG Vitoria Luami em Angola. Uma iniciativa implementada por Baltazar Cateco, que trabalha para permitir que o maior número de pessoas tenha acesso à leitura. Foi na municipalidade de Cazenga, na província de Luanda, que tudo começou.
Com o seu grupo de amigos, Baltazar Cateco organizou-se para concretizar os seus planos, sem imaginar um dia que a sua associação se tornaria uma organização não governamental reconhecida pelo Estado.
Baltazar Cateco : "Nunca imaginei e nunca pensei em legalizar. Nunca pensei. Eu comecei no orfanato, um orfanato onde eu normalmente organizo eventos solidários. Eu sempre realizei eventos solidários com grupo de amigos. Para que chegasse a legalizar foi porque pediram-me. Alguém que gostava de também fazer parte e queria uma documentação que mostrasse que nós estávamos organizados oficialmente. Então, nunca pensei na legalização porque não me dedico 100% só nesta organização. Foi uma evolução que eu nunca pensei. Mas as coisas acontecem naturalmente, circunstancialmente. "
Apaixonado pela leitura, Baltazar propõe acções solidárias em diversos locais da cidade, de forma a promover o acesso aos livros.
"Nestes espaços eu posso colocar uma biblioteca e as pessoas aí vão procurar e consultar a minha biblioteca. Mesmo que eles não terminam de ler um livro, porque não estarei lá permanentemente, mas pelo menos vão ter noção do que é ver o livro X ou a capa do livro. E poderia, ao contrário, é procurar numa outra biblioteca. "
Uma biblioteca itinerante que ocupa o espaço público e que dá acesso à colecção pessoal do Baltazar, sem uma temática específica, mas simplesmente e puramente pelo prazer da leitura e pela valorização da cultura literária angolana.
"Sempre gostei de ler e adquirir muitos livros. Adquiri muitos livros. Normalmente não tenho ainda doações nem peço muitas solicitações de pessoas para me doarem livros, mas eu procuro mesmo os livros que tenho e que eu adquiri. Os livros são também de referência, até de estimação, são os meus livros de autores angolanos a autores estrangeiros são poucos. Deve haver muita, muita, muita literatura de crianças."
Além desta iniciativa, a associação também actua nos hospitais tentando alegrar de forma lúdica o quotidiano das crianças internadas, nomeadamente no Hospital Américo Boavida, na capital angolana, Luanda.
"A iniciativa vem depois de uma festa que eu tinha dado no Américo Boavida. Foi uma sopa solidária que levávamos e notámos que tinha lá também crianças. Eu me apercebi que nos hospitais muitas crianças passam mais de um, dois anos e três não só internados, com uma grave doença psicológica que não lhe permite ainda sair do hospital e que eu já fiz referência anteriormente, que essa criança passa a usar o hospital como sua segunda casa. Então, como é essa necessidade? E como base também as pessoas que conversaram connosco dentro do hospital? Então eu levei a iniciativa de que a criança, tendo a sua segunda casa ou hospital, também precisam de brincar, sobretudo aquelas crianças que estão em fase de recuperação. "
Para Baltazar Cateco a multiplicação dessas acções por todo o país é possível graças ao número de pessoas que trabalham para a ONG Vitória Lumi. Noutras províncias de Angola.
"Neste momento, é apenas em Luanda, mais as pessoas que faziam parte da nossa organização, porque a nossa organização tem muitos voluntário, pois já estão fora de Luanda e trabalham lá como professores e também pela experiência que eles tiveram da nossa associação. O objectivo é a biblioteca móvel, mas também pretendo criar biblioteca fixa, mas nesse sentido, eu pretendo colaborar com a administração local. Eu identifico alguns espaços e solicito a administração para criar um centro, não só como biblioteca, mas também simultaneamente como Centro de recolha de donativos."
Com esperança para o futuro, o criador do projecto Livro Zunga espera que a tecnologia possa permitir o acesso à leitura ao maior número de angolanos, sem se esquecer que o acesso aos tablets e smartphones ainda não é uma realidade para muitos habitantes de várias zonas de Angola.
"Eu acho que sempre que se trata de uma evolução, é bem-vinda seleção e modernização. Então, se alguém tiver acesso à leitura por intermédio de um tablet, um telefone ou qualquer outro dispositivo eletrônico é sempre bem-vindo. Para os angolanos está muito bom. Só que muita gente não tem acesso ao telefone. Por isso a importância mesmo da livraria móvel."
Através de bibliotecas itinerantes e iniciativas nos hospitais, Baltazar e a sua equipa trabalham para tornar a leitura acessível a todos, enriquecendo a vida das crianças e das comunidades. É o ponto final neste magazine que volta à antena já para a semana. Até breve !
Neste programa, vamos conhecer Fredy Uamusse, um retratista moçambicano de 23 anos que sonha viver da sua arte. Além dos formatos tradicionais, Fredy Uamusse também desenha no chão, incluindo no pátio da sua própria casa.
O pátio da casa de Fredy Uamusse tem sido tela para esboçar os rostos de várias personalidades, desde a figura incontornável da arte moçambicana Malangatana, a Cristiano Ronaldo que é para ele um ídolo no futebol e na forma intensa de trabalhar. O futebolista português "é uma figura internacional que inspira os jovens porque ele é determinado naquilo que faz", explica Fredy. Quanto a Malangatana, "foi alguém que representou a cultura" e o jovem artista também tem como desejo "representar Moçambique a nível internacional". O retratista também desenhou a humorista moçambicana Rebeca Cumbane e o músico moçambicano Twenty Fingers, entre outros.
Fredy Uamusse frequenta o último ano do curso de artes plásticas no Instituto Superior de Artes e Cultura de Moçambique. Faz desenhos em papel, mas também desenha no chão. E é na sua casa, nos arredores de Maputo, que usa o chão para esboçar as suas figuras, com cinza, carvão, luz e sombra. Depois, publica as fotografias do resultado nas redes sociais, tendo quase 100.000 seguidores no Facebook.
Trabalho no pátio de casa, debaixo de uma sombra, uma árvore de manga. Tenho de calcular o tempo da sombra, começar o desenho às nove e terminar até às onze para a sombra estar no desenho. Começo por enquadrar o pátio onde quero trabalhar, depois é tracejar com uma barra e seguir os contornos com o carvão. Em seguida, começo a trabalhar com luz e sombra, isto é, a trazer a diferenciação das areias vermelhas, brancas, amarelas, assim como o próprio carvão e a própria cinza. A cinza é para as partes brancas e que representam a luz.
O artista conta, ainda, que, em criança, só tinha "um único lápis" quando começou a desenhar, por isso, em adulto, decidiu que a falta de material não o poderia limitar e que iria trabalhar com o que tivesse facilmente disponível.
Fredy Uamusse sonha viver da sua arte e tem conseguido até agora, graças a muito trabalho e aos conselhos da avó para nunca desistir.
Oiça a conversa neste ARTES.
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