O coreógrafo brasileiro Volmir Cordeiro apresentou o espectáculo “Outrar” na Ménagerie de Verre, em Paris, no âmbito do festival "Les Inaccoutumés". A peça surgiu de um convite da coreógrafa Lia Rodrigues, em 2021, em tempos de pandemia e é uma resposta ao confinamento a que o mundo foi confrontado e aos muros que continuam a erguer-se. Dançar passa a ser uma forma de se “outrar” - um neologismo criado por Fernando Pessoa para se “tornar outro” - mas também passa a ser uma ponte para quebrar barreiras e se chegar a tantos outros.
Foi no festival “Les Inaccoutumés” que Volmir Cordeiro apresentou o espectáculo “Outrar”, a 3, 4 e 5 de Abril, na Ménagerie de Verre, em Paris. O solo de 30 minutos foi criado em 2021 a partir de um convite da coreógrafa brasileira Lia Rodrigues e em resposta ao confinamento provocado pela pandemia de covid-19. Lia Rodrigues enviou uma carta aos seus bailarinos quando o mundo estava confinado e isolado. Volmir Cordeiro respondeu com este solo que se transformou numa ponte entre continentes, mas também numa ponte para os outros - os que o vêem e os que o habitam dentro de si. São os seus “heterónimos” que se manifestam nas dezenas de camadas de roupas, de cores e de texturas e que se declinam em múltiplos gestos, movimentos e emoções. Os seus “outros” inspiram-se em Fernando Pessoa e o título da peça - “Outrar” - também aí vai beber. Esses “outros” são, ainda, uma alegoria dos estados da Terra, do planeta feliz e despreocupado ao planeta que ameaça colapsar. Foi por aí que começámos a conversa, no final do espectáculo, numa sexta-feira, na Ménagerie de Verre, em Paris.
RFI: O que conta o espectáculo “Outrar”?
Volmir Cordeiro, Coreógrafo e bailarino: “Este espectáculo parte de uma ideia que seria aquela de como é que eu poderia personificar a Terra, como é que eu poderia imaginar a Terra como uma pessoa, a Terra de hoje e a Terra tal como ela estava no momento da pandemia porque este projecto nasce durante o confinamento.
Então, a questão da Terra, a questão do isolamento, foi muito importante e porque ela também parte da trilha sonora, que tem essa camada bastante cavernosa de uma gruta, que me deu muito essa imagem do que a gente estava vivendo naquele momento do confinamento e tudo o que a gente inventava dentro de um quadrado, dentro das nossas casas.
Eu decidi que estava dentro de um quadrado e eu tinha essa ideia de ser a Terra, a Terra doente, a Terra feliz, a Terra que ainda dá para salvar, que ainda pode ser salva, a Terra florida, a Terra fértil, a Terra “clown”, a Terra palhaça, a Terra que precisa de ajuda. Eu fui imaginando várias versões dessa Terra que eu ia encarnando.”
A Terra é personificada por si?
“É. Eu seria esse desejo, esse desejo de chegar grande, chegar caminhando, caminhando nesse chão que está estável por enquanto, mas que está tremendo porque essa vibração do som coloca o chão, o espaço a tremer. Esse instante quase que precede o colapso, essa ideia que a gente tinha de como é que a gente vai sair da pandemia, para onde é que a gente vai, qual é que vai ser a continuidade do mundo, como é que a gente vai mudar as nossas relações com a vida, com a natureza, connosco mesmos, para podermos continuar a existir.
Como a trilha sonora é cheia de variações, cheia de pássaros, cheia de crianças brincando, cheia de vidro quebrando, ela tem um monte de imagens que me foram alimentando e que têm essa ideia de 'outrar', de se transformar em outro. Por isso é que eu fui juntando camadas de figurinos, de saia, de roupa, de pijama, de cuecas, de tudo que eu encontrava, para também trazer essa ideia de que a Terra é feita de todos nós, é feita de vários elementos, de vários outros e que, portanto, dentro desse quadrado, dentro dessa dança, eu tinha que ficar eu mesmo outrando.”
Já vamos ao conceito de “outrar”, mas ainda em relação a si como Terra, o Volmir entra em palco ao som de uma tempestade e entra de uma forma muito vertical, como uma árvore que é abanada por essa tempestade. Vive imensas coisas pelo meio e, a dada altura, cai por terra despido. Que gesto é este?
“Acho que tem totalmente essa ideia do desmoronamento. A ideia de chegar grande e festivo no vento, no carnaval, na festa, num grande desejo de modificação, num grande entusiasmo de colocar as pessoas que me estão a ver para também se imaginarem ali dentro, para se olharem, olhando o que eu estou fazendo e se verem no outro também - por isso, há este dispositivo de estar um de frente para o outro.
Tem essa transformação porque eu precisava 'outrar' também na minha figura global, essa figura não podia terminar assim, ela tinha que virar como a gente vira uma luva, como a gente vira uma meia do avesso. Ela tinha que virar do avesso para dar a ideia de que ela teria que viver uma transformação ali, diante do público. E ela se transforma nessa sereia que está muito perto do chão, que está esmagada, que está talvez nos últimos instantes da própria vida, mas que ainda carrega uma ideia de sublime, uma ideia de beleza e que ainda assim está pedindo ajuda e está procurando pelo outro. É o último chamado pelo outro, esse gesto de procurar, de pedir a esmola, de entregar alguma coisa, de se dirigir para o outro.
Então, para mim tem essa coisa desses outros que também vão-se amarrando em nós e que a gente está cheio de outros até ao ponto em que eu vou tirando as minhas camadas, vou-me transformando nessa sereia, mas essa sereia também vai-me impedindo de andar, vai-me impedindo de dançar, vai-me impedindo de me movimentar. O destino final é ir para o chão e ao ir para o chão, ela existe ali no que ela pode fazer naquela nova condição.”
É por isso que chamou ao espetáculo “Outrar”? O que quer dizer, para si, “outrar”?
“Outrar foi o nome que a Lia Rodrigues deu para o projecto dentro da pandemia porque ela não podia estar aqui na Europa para apresentar um trabalho, não podia fazer a viagem. Então, ela convocou alguns bailarinos que já tinham trabalhado com ela, que estão morando aqui, para ir no lugar dela. Foi ela que deu esse nome a partir de um poema de Fernando Pessoa -eu não sei exactamente qual é o poema, mas vem dele esse neologismo. E já era uma maneira de 'outrar', não era ela, era outro que estava no lugar dela. Foi ela que mandou essa trilha sonora e falou: 'Usem a trilha sonora e faça o que vocês quiserem'. Eu, como estou sempre carregado de figurinos em casa, pensei: 'Bom, para outrar eu vou ter que achar um jeito de criar múltiplos, de criar uma imagem de muitos...”
Heterónimos?
“Heterónimos, exacto, que seria essa saia, essa calça, esse pijama. Então, fui juntando coisas que eu já tinha de outras peças e quando cheguei no estúdio, eu tinha uma semana e meia para fazer isso, foi muito rápido, e decidi fazer essa figura que está carregada, que é densa e virou essa cebola. Eu chamo muito essa figura de uma cebola viva porque ela está cheia de camadas e o nó dela, o umbigo dela, o centro dela, se confunde com a periferia. Então, é por isso que é como se eu tivesse ali dentro uma interioridade vibrando, pulsando, e é por isso que ela tem que ser revelada também no final. Eu tenho que descascar a cebola, então vou tirando as minhas camadas e ela de cebola vira uma sereia.”
O problema é que quando descascamos uma cebola, ficamos a chorar. Em tempos de extremismos, de polarizações políticas, esta peça, este “outrar” tem também algum significado político?
“Tem sobretudo, para mim, uma vontade muito grande de valorizar o discurso e a potência do artista. Eu acho que é uma das coisas que eu mais sinto ameaçadas. Ameaçada hoje neste contexto, falando da questão da arte em si. Acho que a primeira coisa que eu queria lembrar é de a gente poder renovar o espaço de encontro e de uma imaginação forte que a gente pode ter quando a gente está em contextos artísticos, quando a gente se reúne para assistir uma peça de 30 minutos e que a gente testemunha de uma transformação. Acho que essa é a primeira camada que eu gostaria de salientar.
A segunda é lembrar a tragédia em que está o nosso mundo. Eu acho que quando entro para dançar, eu venho carregado dessa tragédia que é essa tragédia do fascismo, que é essa tragédia do corte do orçamento para a cultura, que é essa vontade de ir para Marte explorar, essa vontade de carro voador, esse delírio do homem, do patriarcado virilista de querer sempre mais, essa ganância. Eu estou fazendo tudo com os trapos, com as roupas que eu encontrei para construir uma figura que vem para lembrar a gente do que a gente precisa, talvez das coisas mais básicas que é vestir, comer, dormir, deitar, sentar, olhar para o outro, dançar, festejar, voltar um pouco para as nossas acções mais básicas e eu acho que a dança é uma ferramenta essencial para isso e pouquíssimo valorizada.”
Pode falar-nos um pouco mais da sua colaboração com a Lia Rodrigues? Como é que surgiu o convite?
“Eu trabalhei com a Lia entre 2008 e 2011, dos meus 21 aos meus 24 anos, foi um processo muito marcante na minha vida e isso resultou numa relação muito querida, muito gostosa, muito actualizada também. A gente está sempre em conexão, sempre conversando, sempre trocando. É uma presença que ficou muito marcante na minha vida.
Acho que as coisas que a gente faz muito jovem são muito determinantes nas nossas vidas. Eu vi a Lia quando tinha 14 anos, lá no interior de Santa Catarina, lá num lugar perdido no fundo do Brasil, no sul do Brasil, eu vi o trabalho da Lia e a partir dali eu quis dançar com ela. Então, depois de ter visto o trabalho com 14 anos, eu entrei na companhia dela com 21 anos. Com 24, deixei a companhia dela para vir morar na França e estudar na França.”
E desde então vive em Paris?
“E desde então estou aqui. Este trabalho é de 2021, então foi quase dez anos depois que a gente voltou a colaborar através dessa ideia do Outrar, que foi um encontro feito dessa natureza, diante de um contexto pandémico: “Eu não posso ir. Você iria no meu lugar?” Então ela manteve o projecto também, que era uma coisa importante para a sobrevivência da companhia dela. Eu fui lá e criei um projecto a partir da trilha sonora que ela me mandou.”
Ou seja, em vez de fechar, o confinamento, para si, abriu qualquer coisa. E para ela também…
“Sim, eu estava fazendo um outro projecto no meio desse caminho e este projecto foi como um sopro de fazer alguma coisa nesse estado da pandemia, que era um estado onde a gente não tinha mais a capacidade de antecipar as coisas, que na França tudo é muito antecipado, tudo é muito programado, tudo é muito articulado, com muita antecedência. E nesse momento na nossa vida não estava muito para se programar. A gente não sabia nem quando a gente ia parar de estar confinado, quando a gente ia voltar a sair de casa, as regras mudavam a toda a hora. Então, apareceu essa oportunidade que veio assim como um sopro mesmo. Eu apanhei isso, agarrei isso com muito carinho, muito desejo e com muita espontaneidade. Tipo: 'O que eu tenho em casa? O que eu posso fazer hoje?' Esse vocabulário corporal eu estava trabalhando já em algum momento para fazer essas outras peças , eu metabolizei isso de um jeito e virou este trabalho.”
É autor de um ensaio sobre figuras da marginalidade na dança contemporânea, intitulado “Ex-corpo”. Que figuras são estas e até que ponto é que se inscreve nessa linhagem?
“Esse livro é uma tese que eu defendi na [Universidade] Paris VIII, uma tese que estava muito voltada para uma ideia de analisar peças que marcaram a minha vida de espectador e que me impulsionaram a entrar na dança. Não são peças com as quais eu construiria necessariamente uma relação de filiação, mas uma relação de afinidade. Peças como Luiz de Abreu, “O Samba do Crioulo Doido”, peças do Marcelo Evelin, “Batucada”, “De repente fica tudo preto de gente”, a peça da Micheline Torres “Histórias de Pessoas e Lugares”.
São peças que marcaram a minha vida e são peças que, de alguma forma, estão abordando o que é hoje em dia colocar em cena, como é que a dança contemporânea acolhe um corpo negro, acolhe a questão do corpo migrante, acolhe os movimentos de massa, os movimentos de insurreição. Eu estava interessado nessa força da subversão daquilo que está instituído como marginalizado e que aparece justamente num contexto que permite que a gente mude a nossa maneira de receber a marginalidade, que mude a nossa maneira de conceber o corpo do outro, até que ponto o nosso corpo está submetido a um olhar que vem designá-lo como um corpo marginalizado. Então, são esses processos que me interessam.
Esses artistas são artistas muito importantes na minha história. Eu quis analisar como é que eles se interessam ao público, como é que eles se vestem para entrar em cena, como é que eles organizam a dramaturgia, como é que eles passam de uma cena para outra. São artistas muito inspiradores para mim, assim como a Lia.
Eu acho que eu estudei não na tentativa de tentar imitá-los - mas que a imitação é uma coisa muito típica da dança e quando a gente imita, a gente também se auto-imita, imita coisas de nós mesmos que a gente talvez desconheça até. Mas eu acho que o lugar deste livro foi mais de conhecer, de aprender como é que essas pessoas que tanto me marcaram fazem, como é que eu posso estudá-las para entender como é que eu faço também. Porque às vezes eu faço muitas coisas que eu não sei exactamente o que eu estou fazendo. Eu reclamo e reivindico muito essa parte inconsciente do trabalho.”