A Companhia de Dança Contemporânea de Angola prepara-se para celebrar 34 anos de actividade e é a única Companhia de Dança profissional no país.
Recentemente, a Companhia, que tem como directora artística e fundadora a bailarina e coreógrafa Ana Clara Guerra Marques, fez uma digressão que passou por diversas cidades de Portugal e Espanha.
Na capital portuguesa, em quatro datas no palco do Teatro da Comuna, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola apresentou a mais recente criação: O Vendedor de Inutilidades. A peça, coreografada por Andy Rodriguez sugere é uma reflexão sobre a identidade na era digital e o paradoxo de uma sociedade que, aparentemente, está mais conectada e, simultaneamente, mais isolada.
A RFI aproveitou a presença da Companhia em Lisboa e falou com Ana Clara Guerra Marques.
Já sem público na sala mas com os holofotes ainda ligados, a directora da Companhia falou-nos, entre outras coisas, de Angola, de África, do papel da dança contemporânea, dos desafios de manter em funcionamento uma Companhia de Dança Contemporânea em Angola, do reconhecimento do público, da criação de públicos e do mais recente trabalho, a peça Vendedor de Inutilidades.
Isto é uma peça que discute um tema que é, também, actual. É a discussão entre o mundo real e o mundo virtual. Até onde o mundo real ainda tem algum valor, dado que as pessoas estão cada vez mais postadas em criar uma segunda vida, uma segunda imagem, uma segunda personalidade no mundo virtual, que é completamente atractivo, mas que de repente ainda resta em nós alguma coisa de humano.
Portanto, há este conflito. Há sempre este conflito entre os pais e os filhos, entre os jovens e os menos jovens, entre os jovens e os próprios. E a peça discute um pouco isto, de que forma. E é, enfim, crítica, de certa forma. As pessoas estão a entregar-se, de tal forma, a esta realidade virtual que se esquecem de ser humanas. E, portanto, até se estão a esquecer, inclusive, de ser quem são. As pessoas, às tantas já não sabem que cara têm, porque os filtros ajeitam as caras todas. Enfim, nesse mundo virtual, tudo é possível. E, portanto, as pessoas, de repente, deixam de perceber que são seres sociais, que vivem numa sociedade rodeada de pessoas, de carne e osso, que têm filhos, que têm família, que há animais lá fora, árvores, plantas, que há o céu e as estrelas. As pessoas, de repente, deslocam-se todas, ainda que muitas vezes mentalmente, para um universo que não é, ainda, não sei, o universo em que nós vivemos.
A companhia esteve em Espanha, em Portugal esteve no Norte, Centro, agora em Lisboa. Como é que tem sido a recepção?
Tem sido muito boa. As pessoas gostam do trabalho, gostam de ver a companhia. Eu acho, e no fundo é, também, um bocadinho a nossa intenção e a nossa missão, é mostrar que Angola não é apenas um país, como outros países em África, que muitas vezes são formatados pela Europa, como países. Às vezes, é África, não é? Portanto, às vezes parece que aquilo é tudo um país, enfim, um território onde as pessoas ainda só dançam com batuques e com apelo às tradições, aos ancestrais, etc. Muitas vezes, tem-se esta ideia, e pretende-se, não é? Que tudo o que venha da África, ou, neste caso, venha da Angola, seja algo, assim, mais tradicional, digamos assim, mais étnico.
Esquecem-se que nós estamos todos no século XXI. A África também está. E nós somos um país com uma população muito jovem e que temos o direito, não é? Temos o direito a pensar e a reformular as formas de dança, as formas artísticas, os diálogos, as propostas estéticas, as linguagens. E, portanto, as pessoas gostam. Às vezes, ainda há uma ou outra pessoa a quem escapa, “ah, eu pensava que fosse outra coisa” e tal. Pronto, é normal esperarem isto. Nós temos que contrariar esta ideia, não é? Nós não somos os eternos atrasados, nós não somos os eternos tradicionais do calor, do pôr do sol, dos ocidentais. Portanto, é preciso perceber que nós também pensamos e nós também, enfim, equacionamos as linguagens de uma outra forma.
Tem sido bem recebido. As pessoas têm gostado muito. Por exemplo, em Espanha, a nossa ida lá foi realizada por uma universidade, pela UNED (Universidade Nacional de Ensino à Distância). Houve umas jornadas académicas à volta do trabalho da companhia. Uma mesa redonda, uma conferência, um workshop, foi muito interessante. Nós trabalhámos com os professores e com os alunos, pessoas que não estão ligadas à dança. Foi uma aula prática, digamos assim. E depois tivemos um ensaio aberto já numa instituição de ensino superior da dança, no Instituto Superior de Dança Alícia Alonso, que foi também muito interessante, porque já é outro tipo de público. E pronto, as pessoas gostaram, elas ficam sensibilizadas e acho que a mensagem passa.
Eu não sou muito de acordo com que as linguagens artísticas são universais, mas a verdade é que há temas que são universais. Há questões que atormentam toda a gente. Por exemplo, o que nós apresentámos em Espanha, o ensaio, chamava-se Onde o Vento Não Sopra, uma peça sobre a imigração. Foi a peça que nós criámos para a temporada do ano passado. Tem um tema que preocupa as pessoas e ao qual nós temos que dar atenção. Portanto, as pessoas identificaram-se, percebem os personagens e percebem tudo aquilo e ficaram muito sensibilizadas. Acho que o trabalho tem sido bem recebido.
E isto tem acontecido, mais ou menos, um pouco por todo o mundo onde nós já temos passado. Realmente, a companhia, nós achamos que é realmente a embaixadora desta cultura mais contemporânea, sobretudo a dança contemporânea, no mundo. Nós já visitámos muitos países, muitas cidades. Nós temos muito essa vontade de que as pessoas olhem para nós como algo que vem de um país que tem, enfim, muitas vezes uma má reputação cá fora, política, corrupção, etc. É um país que, como todos os países, tem coisas más e tem coisas que são, enfim, melhores. Portanto, acho que nós conseguimos dar esta imagem de qualidade de um país para o qual se olha, infelizmente, como sendo uma verdadeira balbúrdia, actualmente.
Quais são os objectivos de uma companhia de dança contemporânea num país como Angola? Quando olha para a população angolana, o que é que procura oferecer-lhe?
Nós queremos marcar a diferença e fizemos isso. Somos uma companhia histórica. Marcar o progresso, de uma certa forma. Ou seja, os nossos objectivos são, essencialmente, um trabalho experimental, um trabalho de buscar novas linguagens, novos conceitos, novas estéticas para a dança, num ambiente cultural, social e político, de certa forma, conservador, relativamente às artes. Por isso, o nosso trabalho não é um trabalho propriamente muito querido no nosso país, se bem que nós tenhamos o nosso público e pessoas que realmente gostam do trabalho, apreciam e entendem, e orgulham-se desta companhia. Portanto, a nossa missão, digamos assim, é realmente essa, é resistir contra tudo e contra todos, porque este tem sido o nosso percurso de obstáculos permanentes e, enfim, nós sobrevivemos por nós próprios, sem apoios, sem nada institucionais, ou seja, do Estado.
Mas a nossa ideia é justamente essa, é trazer as pessoas a um outro patamar da dança, ou a um outro domínio da dança. Ela tem muitas possibilidades, muitos domínios, enfim, ela revela-se de diversas formas. Não é substituir a tradição e etc., porque isto há-de ser sempre e vão ser sempre as nossas raízes, mas, em realidade, nós pretendemos que as pessoas percebam que, como forma de expressão de qualquer tema, nós temos que ter um trabalho como este, um trabalho técnico, um trabalho profissional, um trabalho em que os bailarinos têm que ter uma formação, em que os coreógrafos têm que ter uma preparação e uma formação.
A Companhia tem toda uma equipa que mais nenhuma Companhia em Angola tem. Os nossos bailarinos têm um salário mensal, descontam para a segurança social, para assegurar o seu futuro, etc… . Não há outra organização (assim). Nós temos os estatutos legais enquanto associação cultural, sem fins lucrativos e esta, no fundo, é a nossa missão. Ainda que as pessoas possam não entender muito bem. Eu acredito que não há pessoas incultas ou pessoas que não sabem ou pessoas que têm melhor acesso às coisas, ou fluem de uma maneira mais elevada, digamos assim, porque têm acesso a uma grande informação cultural.
Eu acho que todas as pessoas têm sensibilidade e, a partir do momento em que tenham sensibilidade, qualquer pessoa de qualquer estrato social e de qualquer proveniência pode, se quiser, deixar-se ir e estar aberta e disponível, pode tirar das peças que nós criamos alguma mensagem.
As leituras são múltiplas e as pessoas têm o direito de as ler. O que interessa é que as pessoas percebam que a dança não é só entretenimento e que tem este lado de arte, este lado de linguagem vanguardista. No fundo, se é preciso mudar, tem que haver uma companhia dança contemporânea que puxe por isso. Não é só divertir as pessoas, isso é o que as pessoas gostam, mas nós tornámos o trabalho, essa interpretação, mais difícil. Mas tem que ser, temos de evoluir.
Na Companhia de Dança Contemporânea de Angola, o trabalho não se cinge só às peças que apresentam em palco, há, paralelamente, um trabalho junto da comunidade.
Sim, nós fazemos programas, workshops, aulas abertas, enfim, organizamos encontros e conversas com as pessoas.
Realmente, nós gostaríamos de ter uma relação mais próxima, muito mais próxima com a comunidade, mas a Companhia de Dança Contemporânea, como eu te disse, tem muitas dificuldades para se manter, para se movimentar e para estar.
A equipa é muito pequena, nós somos muito poucos. Tu sabes que o trabalho profissional de bailarino é o dia inteiro. Começa por fazer uma aula de uma hora e meia e depois seguem-se ensaios e trabalho de criação etc. A professora sou eu, depois tenho mais dois professores, um deles é um dos bailarinos e temos outro professor, mas, muitas vezes, não temos espaço próprio.
Neste momento, por exemplo, estamos à procura, outra vez, de um espaço. Dificulta não haver uma sede, um sítio onde nós possamos organizar e haja permanentemente atividades a decorrer. Em realidade, nós não temos tanto esta possibilidade, mas, sempre que é possível, nós fazemos. Os espetáculos, realmente, são o grande espaço para as pessoas virem dialogar, ainda que em silêncio, com o nosso trabalho.
A companhia faz brevemente 34 anos de actividade. Olhando para trás, qual é o balanço que faz e o que é que gostava de alcançar no futuro?
Eu estou contente com o trabalho da companhia, destes 34 anos desde a sua fundação. Nós já tivemos várias gerações de bailarinos, nós formamos os nossos bailarinos e temos muita pena quando algum sai, mas eu acho que o trabalho é positivo. Em realidade, se hoje se fala em dança profissional em Angola, se hoje se fala em dança contemporânea, independentemente do que as pessoas saibam que isso representa, deve-se realmente à nossa companhia.
Portanto, o trabalho foi muito positivo, nós fazemos muitas actividades com o pouco que temos. Gostaríamos de ter feito mais, sim. Por exemplo, a Companhia tem um projecto paralelo, que é uma oficina de artes, um centro de formação não convencional, mas ter uma coisa mais prática, etc. Nós nunca conseguimos realmente pôr a funcionar essa oficina, a não ser a preparação de estagiários para ingressarem como profissionais e residentes na companhia. Gostaríamos de ter aulas, não aquele formato de aulinhas para os meninos fazerem balletzinho e ficarem as mães e os pais todos contentes e pagarem esse dinheiro, mas realmente um trabalho com outro tipo de populações. Que possam depois vir a ser ou futuros profissionais ou pelo menos um público.
Porque só faz sentido uma Companhia existir se houver um público, não é? E temos que ser nós, realmente, a formá-lo, porque o ensino não prepara as pessoas e também não existe nenhum plano de educação artística alargado para a população. Portanto, nós temos que fazer todo esse trabalho. Eu sinto-me muito contente, sei que poderia ter feito mais, mas não poderia com os meios de que disponho.