"Não sei o que o amanhã trará" é um verso do poeta português Fernando Pessoa repetido várias vezes no espectáculo "Pessoa, desde que eu sou eu", encenado pelo mestre do teatro norte-americano, Robert Wilson. O espectáculo de Bob Wilson nasce a partir de textos de Fernando Pessoa é falado em português, italiano, francês e inglês, idiomas que se reflectem também nas diferentes origens do elenco, do qual faz parte a portuguesa Maria de Medeiros.
A actriz Maria de Medeiros interpreta Fernando Pessoa no espectáculo Since I’ve Been Me, Pessoa, desde que eu sou eu, de Bob Wilson. O último espectáculo do encenador norte-americano que, aos 83 anos, explora o universo do poeta português através de uma linguagem visual única que Bob Wilson inventou nos anos 60.
No final do espectáculo, Maria de Medeiros descreveu-nos o trabalho de Bob Wilson, um trabalho que se baseia na intuição e no uso da luz, movimento e cenografia para recriar o universo pessoano. A actriz portuguesa descreve este espectáculo como uma representação lúdica e infantil do próprio Fernando Pessoa, um poeta que questiona constantemente a identidade e o "não ser". Segundo a actriz portuguesa, o trabalho visual e os movimentos lentos no palco criam um espaço de concentração e interioridade que permite ao público embarcar numa viagem profunda, reflectindo sobre a multiplicidade dos heterónimos de Fernando Pessoa.
RFI: O espectáculo desde que eu sou eu encenado por Robert Wilson explora o universo complexo do poeta português Fernando Pessoa. O espectáculo mistura texto, movimento, luz, escultura. Explora temas como a identidade, a auto-representação, a multiplicidade do eu, além de homenagear a criatividade de Pessoa. O espectáculo utiliza elementos como espelhos, distorções para ilustrar a dificuldade de apreender a verdadeira essência de alguém. Maria de Medeiros interpreta uma das personagens de Pessoa ou até várias personagens de Pessoa e esta é a minha primeira questão.
Maria de Medeiros: Pessoa tinha o Fernando Pessoa [ortónimo ] e tinha os seus heterónimos. Sou como pessoa que, um pouco, organiza esse espaço lúdico interior que existe no Pessoa. Tudo o que referiu efectivamente está na peça. Para mim foi muito interessante ver a forma intuitiva do Bob Wilson trabalhar, onde vai buscar finalmente expressões pela luz, pelo trabalho visual, pelos movimentos, para de alguma forma restituir ou apreender o universo de Pessoa, mas sim a grande intuição e a infância porque ao longo da obra de Pessoa, há referência à criança, aos amigos imaginários, como se todo o universo sistema pessoano fosse uma organização lúdica de uma criança. O Bob tratou isso de alguma forma ou se apoiou nisso.
No texto, na interpretação ou na sonoridade. Há muito esta questão e lembra muito a infância, a questão do berço, da mãe. A primeira questão que se coloca é : quem é Fernando Pessoa? É preciso colocar a questão quem é a pessoa para perceber de onde é que vem esta multiplicidade de personagens?
Eu não sei se a questão é quem é Pessoa porque justamente ele é a multiplicidade, mas sendo essa multiplicidade, é matéria fértil para o teatro porque há um jogo de máscaras, há um jogo de vozes, há uma dança das imagens fugazes das personagens e efectivamente, o texto vai buscar fragmentos muito diversos. Todo o final é o Fausto, há uma grande parte do guardador de rebanhos, há Ricardo Reis, há pouco Álvaro de Campos, mas está também um bocadinho presente. São como impressões e acho que o espectáculo assume isso através dessas impressões, o Bob também conta alguma coisa de si no fundo da sua relação à poesia, que passa sempre pelo visual, porque foi interessante vê-lo trabalhar porque tudo parte sempre de uma imagem e, em geral, de uma imagem que ele desenha.
Neste caso, qual é que foi a imagem?
São várias imagens que ele traz desenhadas e que procura criar no espaço e com a luz. Só a partir daí é que se vêm escrever os textos como relâmpagos de sentido que aparecem, mas dentro de um espaço que é essencialmente visual.
E é também o uso de diferentes línguas no espectáculo. Isso contribuiu para explorar a identidade e as múltiplas facetas de pessoa?
Sim, acho que Pessoa é um poeta que se deixa traduzir muito bem. Existem grandes, excelentes traduções do poeta, tanto em francês como no italiano, que é a tradução do Tabucchi. Então é muito belo realmente sentir a vibração destes textos nas diferentes línguas e como não perde nunca no fundo a sua força poética.
Sentiu-o quando os recita em três línguas diferentes neste espectáculo?
Sinto absolutamente, claro, e cada língua Imprime uma perspectiva, um dramatismo diferente. Eu gosto muito desse exercício. Ainda por cima eu sou uma europeia convicta e acho que de alguma forma, é o Pessoa da Europa. É um poeta nosso, absolutamente nosso, mas é um poeta universal.
Como é que chegaram a este impacto visual e emocional da integração com a luz? Vocês são sete actores em palco que dançam com as luzes.
Sim. É um trabalho muito meticuloso, de muitas horas, sobretudo para definir a luz e as posições no espaço. Achei muito interessante dar esse protagonismo à dança, ao movimento, porque há muito trabalho do Bob sobre a lentidão, a imobilidade. Isso também está presente. Por exemplo, todo o início não é realmente um trabalho sobre a quase imobilidade. Mas depois há também o contraste com os corpos em movimento, exprimindo-se absolutamente pela dança.
O espectáculo começa com o público a entrar na sala porque a Maria de Medeiros já está em cena e o espectáculo começa nesse momento?
De alguma forma, já está ali uma figurinha do Pessoa a receber. Mas lá está a receber só com movimento e o movimento muito lento, uma coreografia muito, muito lenta. É engraçado porque muitas vezes as pessoas dizem 'você está completamente parada', quando eu não estou nunca parada, estou sempre em movimento, mas é tão lento que as pessoas têm a sensação da imobilidade e de alguma forma é acolher o público. Já para o universo no qual vamos todos viajar.
E por que esse movimento mais lento? Porque é que o Bob Wilson faz esta proposta, de haver movimentos num tempo muito menos acelerado?
Penso que é a lentidão, justamente essa dimensão de concentração e de interioridade, de nos prepararmos de alguma forma a entrar porque é uma viagem interior e uma grande viagem interior que vamos fazer juntamente ao público.
Essa viagem reflecte a relação de Pessoa com a própria identidade e com o desejo de ser ninguém. Como é que consegue interpretar esta personagem?
Somos máscaras, mas atrás de outra máscara, há outra máscara e há outra máscara é outra. Poder se á chamar a isso, ninguém. O assumirmos, sermos tantas máscaras, mas ou somos tudo isso ou nada.
Fernando Pessoa dizia há pouco continua a ser actual e muito mais hoje?
Muito. Há uma modernidade na língua que é absolutamente extraordinária. Tem sido muito bom voltar a esta poesia, a esta língua. Na verdade, a maior parte dos textos parecem escritos hoje. Daí, realmente, o génio do poeta.
Relativamente a esta questão que provoca um questionamento em relação às fronteiras, às fronteiras entre o outro é o nós mesmos. Essa foi a grande inquietação que ele escrevia e assinava como Bernardo Soares.
Realmente ele questiona até as últimas consequências o ser, e questiona o que é ser no Fausto e também no Livro do Desassossego há ânsia pelo não ser e como lidar com a angústia de ser. Justamente, eu acho interessante é abordar tudo isso numa perspectiva lúdica porque talvez não seja tão dramático nós sabermos ser.
Este não é o trabalho também de uma actriz. Essa procura em relação a outro ser é uma procura pela qual vocês passam e cada trabalho?
Absolutamente é uma representação. É uma imagem do teatro e do que é ser actor. No fundo, o assumir, o não ser ao ser outro, mas como um jogo com a alegria da infância.
A relação entre Bob Wilson e Fernando Pessoa oferece uma visão do poeta que vai além da sua "imagem portuguesa", propondo ao público francês uma leitura mais universal e profunda do poeta português, através da estética visual e poética de Bob Wilson. Para o director do Théâtre de la Ville, Emmanuel Demarcy-Mota, este é um momento aguardado há muitos anos, já que Bob Wilson é um dos maiores artistas da cena internacional, reconhecido pela revolução na arte cénica, que desafiou as convenções com a criações visuais únicas e inovadoras.
RFI: A peça resulta de uma colaboração entre o Théâtre de la Ville de Paris e o Teatro della Pergola de Florença e põem em cena o mundo multifacetado de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, abordando temas da infância, da identidade e da multiplicidade das máscaras humanas?
Emmanuel Demarcy-Mota: Estava à espera deste momento há muitos anos. Este momento em que um dos maiores artistas da cena internacional que é o Robert Wilson, um artista americano que cresceu nos Estados Unidos nos anos 60, que saiu do meio onde ele estava, emancipou-se e foi para Nova Iorque, onde conheceu os maiores artistas internacionais, num momento fundamental da história americana e europeia, onde a ideia da criação da liberdade é diferente do que se estava a passar no mundo. Estamos nos anos 60 e o que é que ele vai inventar? Ele é o criador do grande espectáculo, que é o que chamou "o olhar do surdo", que é um espectáculo em que não havia palavras e de repente as pessoas vão descobrir um espectáculo onde nenhum actor fala e o espectáculo dura 7 horas. Ele faz essa revolução. Ele é para o mundo um génio do espaço cénico.
A ligação que tenho com ele é muito forte há muitos anos. Depois de ter feito vários espectáculos com ele, a minha ideia era convidá-lo a trabalhar sobre o Fernando Pessoa. Eu sabia que ele não tinha uma relação pessoal com o Fernando Pessoa, mas para mim, a questão da poesia do Fernando Pessoa era muito importante. Queria criar este encontro e escolhi o Robert Wilson para mostrar a diferença ao público francês também noutros países do mundo, através desta nova forma de olhar e descobrir que Pessoa. Não estamos aqui a fazer uma exportação cultural. Estamos a fazer um encontro profundo com dois grandes poetas do século XX o Robert Wilson e o Fernando Pessoa.
Esta é outra visão de Fernando Pessoa por Robert Wilson. Pessoa aparece aqui através de luzes, de espelhos, de movimentos mais lentos, da música e das línguas. É um espectáculo falado em quatro línguas diferentes.
Esse ponto das línguas é uma questão fundamental. A pluralidade linguística é fundamental. A língua é cultura, a cultura não é só arte e a arte não é só cultura e é também a pluralidade das línguas. Há língua italiana dentro deste espectáculo, a língua francesa, a língua portuguesa e a língua inglesa. Vamos levar um espectáculo de dois países, por exemplo, a Roménia. Gostaria que também se pudesse ouvir textos de Fernando Pessoa noutras línguas, como uma língua romena, que é muito importante também porque tem familiaridade com a língua portuguesa e a língua francesa, por exemplo. E essas proximidades dos sons da língua: uma língua e um som, uma língua e um espaço estrangeiro dentro de si próprio. Essa poética dentro do espaço teatral é fundamental porque isto é um poema em cena, com as línguas, com as culturas também dos actores. Porque aqui são actores que vêm alguns do Brasil ou Portugal, dessa lusofonia que conhecemos bem, mas também franceses que tiveram raízes nos Camarões.
Este texto tem que ver com o encontro entre Robert Wilson, que é americano que tem uma visão também da comédia musical do Buster Keaton, do que chamamos o burlesco, o Chaplin. E de repente, há um encontro dentro desse espectáculo, me parece, entre o Chaplin e o Pessoa, o Buster Keaton, que é fundamental dentro dos burlescos americanos, onde não há palavras. A poesia está numa cara, num olhar, num movimento. É o que diz o Pessoa tendo a poesia dele.
É tempo de Pessoa ser conhecido em França?
Sim, o trabalho é fundamental e para mim, é por isso que eu estava à espera deste momento, porque com o Bob Wilson eu fiz uma proposta que ele ensaiou, que ele encenou num espectáculo, o Jungle Book, que continua a viajar no mundo, que ainda não apresentámos em Portugal, mas também com a Isabelle Huppert, Mary Said, que apresentámos no CCB e no Festival de Almada, em Lisboa, e que continua a circular, que está neste momento em Tóquio, onde a Isabelle Huppert está a fazer o espectáculo.
Foi importante escolher este poeta português para essa sensação do mundo, num mundo que vai tão mal; com a eleição de Trump nos Estados Unidos, com a extrema-direita em França que obtem 42%, com Portugal que está também à procura de um caminho. Há um momento em que vamos acabar com os Estados Unidos, que são os Estados Desunidos. Não há nenhuma união nos Estados Unidos, que é tristeza absoluta. Precisamos de poesia, de um olhar sobre o mundo interior e exterior, onde a responsabilidade cultural de fazer conhecer Pessoa. Este espectáculo representa muito tempo de pensamento, de trabalho, de opções que têm que ser decididas para uma sala de 1000 lugares no centro de Paris. Não estamos a falar da pessoa numa sala de 80 lugares, estamos a falar num teatro central, uma das maiores salas parisienses.