Germano Almeida tem um novo romance. Crime nas Correntes d’Escritas é a mais recente obra do autor cabo-verdiano a ser publicada e o primeiro trabalho cuja história se desenrola fora de Cabo Verde.
Em Crime nas Correntes d’Escritas, a agilidade da pena do vencedor do Prémio Camões transporta-nos para o festival literário que anualmente acontece na cidade portuguesa de Póvoa do Varzim. No romance, é com um ritmo envolvente, e sempre com um perfume de humor no ar, que Germano Almeida nos abre a porta para um universo onde se reúnem protagonistas do mundo literário de língua portuguesa, e também hispânica.
A presença do “contador de histórias” em Portugal foi a oportunidade para uma entrevista à RFI. Germano Almeida revela as primeiras influências e as primeiras leituras, fala das obras escritas que nunca foram publicadas porque “desapareceram”, como começou a publicar por “razões muito circunstanciais, de futuros trabalhos a serem publicados, da independência de Cabo Verde, da política cabo-verdiana e do como Amílcar Cabral é uma referência máxima.
RFI: Já li que se identifica mais como contador do que como escritor. Esse contador é inspirado nos contos que ouvia ao fim do dia, ao cair da noite, em Cabo Verde?
Germano Almeida: Exactamente, acertou em pleno. Quando eu digo que não sou escritor, que sou contador de histórias, é porque eu aprendi a contar histórias com os nossos contadores de histórias que nos contavam a história à noite, à porta de casa.
Não havia luz eléctrica, não ouvia televisão, não havia nada. O divertimento era ouvir histórias.
Quando eu escrevo, tem sempre alguém a quem estou a contar uma história.
Tem sempre um interlocutor, ainda que invisível. Daí que eu digo sempre que sou contador de histórias.
Porque, também, a ideia que eu tenho é que os escritores têm que ter regras e princípios que eu não quero ter. Por exemplo, o rigor na linguagem. Eu não quero ter esse rigor na linguagem. Não que eu escreva mal o português, obviamente. Mas não quero empregar aquilo que a gente chama de palavras difíceis. Quero empregar palavras do dia-a-dia. Por isso é que a minha escrita é coloquial. Exactamente porque eu estou a falar com as pessoas.
E como é que começou o seu hábito de leitura? Quais foram os primeiros livros? Como é que conseguiu acesso aos primeiros livros em Cabo Verde?
É uma coisa curiosa, porque na Boa Vista... Na Boa Vista não, na minha casa. Não havia muito hábito de leitura. Havia muito poucos livros lá em casa. Eu não sei como me cruzei com os livros. Mas, os meus primeiros livros eram aqueles que chamavam de romancinhos de cowboy, que agora acho que desapareceram. Mas eu lia milhares. Depois, romancinhos de amor, li também centenas. Depois descobri a ficção científica. Mas, eu sabia de gente, na Boa Vista, que tinha livros e ia pedir emprestado. Eu lembro ainda, com prazer, de ter lido o Volta-Mundo de Dois Aventureiros. São doze volumes deliciosos. Quando acabaram, fiquei triste, porque não havia mais continuação. Mas lia tudo o que encontrava para ler.
Eu acho que, digamos, a gente gostar de ler quase que leva, por outro lado, também à tendência para escrever. Foi o que descobri em mim. De repente, as histórias que eu lia devem ter-se transformado em alguma coisa que eu senti a necessidade de dizer, de escrever. Sobretudo de dizer, porque no contar histórias a gente precisa de ter um interlocutor. Mas eu nem sempre tinha interlocutores. Nem sempre as pessoas apreciavam estarem a suportar-me com as minhas histórias. Então, resolvi escrever. Escrevia pelo prazer de contar histórias a mim próprio.
Lembra-se, certamente, em que contexto é que escreveu o primeiro livro?
O primeiro livro, que eu nunca publiquei... Não, que desapareceu, que nunca soube … . Escrevi-o a contar um acidente que tinha havido na Boa Vista. Digamos, de um barco que naufragou. Matou dez ou doze homens da ilha, que todos nós conhecíamos. Uns eram parentes, outros eram amigos. Um barco, saiu numa noite de mau tempo, saiu para ir da Boa Vista para o Sal, naufragou no canal que a gente chama de Pedrona. Morreram todos. Excepção de um rapazinho, o Roque. Era um jovem, talvez de 14 ou 15 anos, que era pescador também, como o pai. O pai morreu, estava a bordo, mas ele escapou, foi o único. Essa foi a primeira história que eu escrevi. Mas perdi-a, não sei o que foi feito dela.
E depois?
Bom, depois eu fui para a tropa. Eu, em Cabo Verde, tinha sempre a mania de escrever. Aliás, escrevia parvoíces também. Mas quando fui para a tropa, resolvi escrever sobre a Boa Vista. Porque em Angola dei conta que eu tinha perdido o meu paraíso, que era a Boa Vista. O deserto verde de Angola fez-me lembrar o deserto branco da Boa Vista, que na minha zona era cheio de areia, montes de areia branca. Resultado, comecei a escrever. Foi o primeiro livro que escrevi. Também perdi muitas daquelas histórias. O primeiro livro que eu vim a publicar, efectivamente, como livro, foi O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo.
E desses tempos de Angola, no exército português, houve algo que o inspirou? Algumas memórias que lhe serviram para aplicar noutros livros?
Eu fui para a tropa contrariado, não era o que eu queria. Naquela altura já queria fugir para ir para a luta do PAICV. Não consegui, então tive que ir para a tropa portuguesa.
Encarei a tropa sempre como um episódio na minha vida. Preocupei-me muito mais em conhecer pessoas. Por isso é que eu escrevi muito pouco sobre a tropa. Escrevi algumas espécies de histórias sobre pessoas, soldados que eu conhecia, com quem me dava e que me inspiraram. Algumas histórias que ainda não publiquei, mas que hei-de publicar. Mas um trabalho efectivo sobre a tropa em si, nunca me ocorreu escrever, não creio que vá fazê-lo.
Estávamos em que ano?
Eu fui para a tropa, em Cabo Verde, em 67. Fui para Angola, creio que em 68. E fiquei lá até 70.
Mesmo nesse período que estava em Angola, escrevia sobre Cabo Verde?
Sim, sim! Escrevi sobretudo sobre Cabo Verde. Em Angola, mesmo nesse período. Aliás, (material) que vim depois a reunir, juntando outras coisas. Porque escrevi muito. Mas também perdi muito. Não ligava muito de importância a isto.
Depois, quando resolvi publicar em livros, escrevi mais histórias e publiquei com o título, o livro que eu tenho que se chama Ilha Fantástica. É grande parte da recolha dessas histórias que eu escrevi durante o tempo de Angola.
Mas, entretanto, parte dessas histórias perdeu-se. Não valorizava aquilo que produzia?
Não. O meu prazer era produzir. Nunca tinha pensado em publicar. Aliás, vim a publicar por razões muito circunstanciais.
Eu e mais dois amigos resolvemos fundar uma revista e convidámos as pessoas que a gente achava que tinham material para escrever. Convidámos-as para nos mandarem material. Recebemos pouco e, então, houve necessidade de preencher páginas. E eu disse-lhes: olha, eu tenho umas histórias. Vocês podem vê-las e verem se servem ou não. Leram, acharam que serviam e publicámos com o pseudónimo, o tal pseudónimo de Romualdo Cruz, que aparece como personagem neste livro aqui da Póvoa do Varzim. Só que, em Cabo Verde, ninguém aceita não conhecer pessoas. Como é que há um escritor chamado Romualdo Cruz que ninguém conhece? De maneira que as pessoas não descansaram enquanto não souberam quem era Romualdo Cruz. A partir daí, isso é inútil, digamos, estar a escrever sob pseudónimo. As pessoas não ligam.
Que revista era essa para a qual escrevia e qual o tipo de trabalho que acabou por publicar aí?
Foi uma revista que nós fundámos nos anos 80. Eu, o Leão Lopes, deve-se saber quem é, o Rui Figueiredo também, que entrou no MPD e foi governante até pouco tempo. A última coisa que desempenhou foi ministro dos Negócios Estrangeiros.
Encontrávamo-nos à tarde, num espaço cultural que o Leão tinha criado, e, um dia em que estávamos a conversar, de repente: Espera, porque é que não fundamos uma revista? Falamos dessa história de não haver nada.
Então, eu lembro-me de ter-lhes sugerido, vamos fundar uma revista. E foi isto. Daí que eu me tenha sentido na obrigação de levar as minhas histórias para a revista.
Qual é o livro de escritores cabo-verdianos que considera que era bom que todos os políticos cabo-verdianos lessem?
(Risos) Não me surpreende, nem me apanha desprevenido com esta pergunta, porque eu tenho sempre insistido que todos os políticos cabo-verdianos deviam-se fazer prova de leitura do livro Chiquinho, de Baltasar Lopes. Eu costumo dizer que o Chiquinho não é um romance, é a história de Cabo Verde, escrita e escarrada. De maneira que, quem lê Chiquinho conhece a história de Cabo Verde, não faz, não comete os erros que os nossos governantes têm vindo a cometer. Porque é um facto que ao longo de 50 anos tivemos coisas muito boas, mas também tivemos muitas asneiras, muitas coisas más. Por isso é que eu digo que os governantes deviam ler obrigatoriamente e fazer prova de leitura de Chiquinho antes de assumirem governar Cabo Verde.
Este ano, Cabo Verde comemora os 50 anos de independência. Olhando para estes 50 anos, qual é o ideal que ficou por cumprir?
Eu acho que seria injusto dizer que ficaram ideais por cumprir.
Eu considero que os 50 anos de independência foram vastamente positivos para nós. Eu considero que a independência foi uma revolução. Uma revolução, como todas revoluções, teve altos, tem baixos. Neste momento considero que está a ter um baixo. Portanto, eu considero que a política que o MPD está a seguir neste Cabo Verde é péssima para Cabo Verde. Mas eu considero que isto é um momento de contra-revolução. Digamos que haverá outros momentos que retomam outra vez a revolução.
A independência foi a melhor coisa que nos aconteceu, incontestavelmente. Todo o homem cabo-verdiano, eu não creio que haja cabo-verdianos que não se sintam orgulhosos da independência.
A independência foi a melhor coisa que nos aconteceu, incontestavelmente. Todo o homem cabo-verdiano, eu não creio que haja cabo-verdianos que não se sintam orgulhosos da independência. Não há nenhuma data maior para Cabo Verde do que a data de independência, por mais voltas que a gente queira dar e trocar por outras e apresentar outras. A independência, digamos, é o marco fundacional da nossa nacionalidade, e contra isso não há nada a fazer.
Claro que fizeram-se imensas coisas boas. Fizeram algumas coisas más. Agora, a questão que se põe, que na minha opinião deve-se pôr, é: a gente pode deitar fora a água do banho, mas não deita o bebé, tem que conservá-lo.
De alguma forma, já há alguma gente em Cabo Verde que quer deitar fora quer a água, quer o bebé. Por exemplo. A contestação que se vem fazendo à figura de Amílcar Cabral na sua importância para a Guiné e para Cabo Verde é uma coisa completamente absurda. Não há ninguém para nós tão importante como Cabral.
É evidente que é uma luta absurda, uma luta inútil, também inglória, tentar retirar Cabral da nossa história, diminuir Cabral na nossa história. Mas incomoda ver gente que tinha a obrigação especial de defender esse legado a pôr em causa (o legado de Cabral).
Será que este momento que coloca em causa o legado de Cabral poderá servir para o inspirar num futuro livro?
Não creio que exactamente isto, não. Pode ser, digo, uma outra referência.
Eu, por exemplo, escrevi um livro a que chamei de O Meu Poeta, mas escrevi O Meu Poeta ainda antes da abertura política de 1990 para tentar denunciar os oportunismos ligados, exactamente, ao Partido do poder. Mas os oportunistas que andaram à volta do PAICV são os mesmos que estão a andar à volta do MPD. De maneira que isso é capaz de ser um mal, digamos, nacional. Os oportunistas precisarem sempre de saber de que lado escorre a água e escorrerem por ali.
Depois de uma extensa obra onde os seus livros são Cabo Verde, a mais recente publicação, Crime nas Correntes Escritas é o primeiro livro que se passa inteiramente fora de Cabo Verde, neste caso, na Póvoa de Varzim. Como é que surgiu este livro?
Este livro surgiu como uma brincadeira. Eu sou frequentador das Correntes Escritas desde a primeira edição, que foi no ano 2000. Convidaram-me, eu aceitei, fui sendo convidado. Todas as vezes que me convidaram eu aceitei. Uma ou outra vez que eu não pude ir. Mas eu diria que num conjunto de 26 edições, participei pelo menos em 20. Porque eu gosto muito da festa das Correntes Escritas. Aliás, às vezes eu costumo dizer que aquilo é um piquenique que dura 4 dias. Gosto de estar naquele ambiente, conversar com as pessoas, discutir, rir, brincar, beber. Tudo isso, digamos, nesse período das Correntes Escritas. E isto faz com que a gente conheça pessoas e troque impressões com elas e converse. E é exactamente isto que aconteceu para a feitura deste livro.
Achei que era importante homenagear as Correntes de Escritas. E a forma que achei para fazer a homenagem foi, exactamente, inventando a história do desaparecimento do manuscrito que um escritor ia apresentar lá. E a partir desse invento, dar a conhecer mais ou menos o que é as Correntes de Escritas.
As Correntes Escritas é um festival dedicado à literatura, ao mundo literário, não só em língua portuguesa, pois também vai um pouco à América do Sul, à América Latina. Também acontece trazer-se autores, escritores dessa parte do globo. Neste Crime nas Correntes Escritas, onde desaparece o manuscrito do escritor e jornalista Mário Zambujal, são referidas dezenas de escritores. Mas depois toma a liberdade de enganar, entre aspas, o leitor, colocando uma personagem, que é uma personagem fictícia. O que é que o levou a colocar esta personagem no meio de tanta realidade?
Houve um momento em que eu acreditei que essa personagem fictícia podia ter sido ela a roubar o manuscrito. E porquê? Porque ele tinha publicado, ao longo da vida dele, tinha publicado um livrinho com seis contos. Ele era convidado para ir para muitas actividades literárias à custa dessa pequena produção. Ele também se sentia envergonhado, porque não estava a conseguir produzir mais, mas não queria também dispensar os convites que aceitava. Então, daí ele ser um personagem, digamos, quase indicado para furtar o manuscrito do Zambujal. E, de certa maneira, houve uma altura em que os investigadores estiveram convencidos de que tinha sido ele. E, quando se preparavam para o denunciar, descobrem que ele foi-se embora. Ele já tinha ido embora. Portanto, se ele já foi embora, não se vê razão para o denunciar como que ele já não está cá.
De maneira que o próprio personagem tomou o seu destino. Se bem me lembro, ele foi para Santiago de Compostela. Portanto, deixou de ser útil.
Neste livro, logo nas primeiras páginas, há um jornalista da Rádio França Internacional (RFI) que está no encontro de escritores, o Veríssimo, e ele coloca uma pergunta cuja resposta no livro não me é muito clara. Agora, coloco-lhe a mesma pergunta: de que é que falam os escritores quando estão reunidos?
(risos) De que é que falam os escritores? O João Ubaldo, que é um personagem também deste livro, diz que falam de direitos de autor. Porque, enquanto o jornalista lançou a pergunta, os escritores começam a inventar, porque o escritor tem que ter a resposta para alguma coisa, então começam a inventar as respostas. O João Ubaldo diz: não, não, não! Não fala nada disso. Falam é de dinheiro. Querem receber de direitos de autor.
No fundo, é a ideia de que os escritores estão sempre tesos. Estão sempre com problemas de dinheiro. Todos os direitos que nos pagam, e, de facto, os direitos que nos pagam são miseráveis. Viver da escrita, pode haver algum escritor que viva da escrita mas devem ser muito poucos. E os que insistem em viver, eu acredito que vivem muito mal. Porque eu, por exemplo, trabalhei toda a minha vida como advogado e nunca pensei nos direitos de autor para sobreviver. Não poderia tomar um pequeno almoço com isto.