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"Traducteur de pluies", a primeira coletânea de poemas de Mia Couto em francês


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A editora Éditions Chandeigne apresentou a livro Tradutor de Chuvas ao público francês. Traducteur de pluies é a primeira versão francesa de um livro de poesia do escrito moçambicano Mia Couto. A tradutora Elisabeth Monteiro Rodrigues reflecte sobre os desafios da adaptação, destacando o processo criativo e lembra que traduzir a poesia de Mia Couto exige recriar a experiência poética na língua, lidando com palavras inventadas.

RFI: O que a levou a traduzir a obra de Mia Couto, especialmente esta primeira coletânea poética publicada em francês?

Elisabeth Monteiro Rodrigues: Esta é a continuação do meu trabalho iniciado em 2005, quando comecei a traduzir a obra de Mia Couto para o francês. Para mim, foi uma forma de perceber como o poema constitui o núcleo dos romances e dos contos do Mia, como, na verdade, da poesia nasce a prosa.

Imagino que traduzir Mia Couto seja fascinante. Quais são os desafios dessa tradução? 

É uma continuidade, porque até na prosa a escrita do Mia é imensamente poética. Neste livro, Tradutor de Chuvas, o principal desafio foi encontrar uma forma de simplicidade e delicadeza – algo sempre difícil quando se trata de poesia –, sem perder as imagens e os sons. Além disso, há também algumas criações, como no poema A Casa, que termina assim:

E tanto em mim demoraram as esperas

Que me fui trocando por soalho

E me converti em sonolenta da janela.

Aqui temos a palavra "sonolenta", uma fusão de "sonho" e "sonolento". Para a tradução em francês, recorri ao mesmo processo criativo. Assim, essa palavra foi traduzida como rêvenolante, mantendo a ideia original.

O seu trabalho passa também por um exercício de criação?

Sim, eu tento. Todo o trabalho de tradução é também um trabalho de criação, porque é necessário recriar, na língua de chegada, aquilo que o autor fez na língua original – neste caso, o português. No caso de Mia Couto, esse processo de invenção de palavras é muito presente, mas não se trata apenas das palavras. Sobretudo em Tradutor de Chuvas, o desafio maior foi encontrar a palavra justa, aquela que surge no momento adequado.

Imagino que isso traga dificuldades, mas também deve ser desafiador tentar encontrar a palavra correcta para cada estrofe, respeitando o sentido imaginado pelo autor – neste caso, Mia Couto.

Sim, e às vezes temos que esperar que a palavra certa apareça.

E ela pode demorar a chegar?

Sim, pode demorar meses.

Como é o dia a dia de um tradutor?

Começo de manhã lendo alguns livros que me acompanham durante o processo de tradução. Depois, começo a trabalhar nas páginas do texto que estou a traduzir. Se não encontro a palavra certa, deixo de lado e faço outra coisa – até tarefas domésticas. E muitas vezes, ao realizar outras actividades, as palavras surgem naturalmente.

Foi mais fácil traduzir a coletânea poética Tradutor de Chuvas por já conhecer a escrita de Mia Couto e já ter traduzido a sua prosa?

Sim. Mas, na verdade, cada livro é diferente. Mesmo conhecendo bem a obra do Mia – já traduzi cerca de 15 livros –, tento sempre abordá-la como se fosse a primeira vez. Cada texto exige um trabalho diferente, uma disponibilidade própria. O livro impõe a sua forma de escrita e, consequentemente, a sua forma de tradução.

Como é que conseguiu manter-se fiel ao texto original e, ao mesmo tempo, torná-lo compreensível para o público francófono?

No caso de Tradutor de Chuvas, o desafio foi ainda maior porque se trata de um livro muito pessoal, que aborda a infância de Mia Couto e a memória do seu pai.

A memória, a saudade...

Sim, exactamente. O próprio Mia Couto dá, neste livro, uma definição muito poética de saudade:

Saudade é o que ficou do que nunca fomos

E como se traduz saudade para o francês?

Diz-se sempre que "saudade" não tem tradução. Depende do contexto. Mas, neste caso específico, mantive a palavra original. Em francês, ficou algo como: "la saudade c est ce qui reste de ce que nous n'avons jamais été".

Esse trabalho de mediação entre a língua portuguesa e a francesa é algo presente na sua carreira. Como é para si, que trabalha com vários autores lusófonos, como Lídia Jorge, por exemplo, lidar com estilos tão diferentes? Suponho que precise entrar no universo de cada escritor?

Sim, e é isso que torna a tradução tão fascinante. Cada livro é um mergulho no mundo particular do autor. No caso da mediação cultural, um bom exemplo foi a tradução de Terra Sonâmbula, que traz toda a história de Moçambique. A língua portuguesa, tal como falada em Moçambique, tem as suas particularidades. Além disso, Mia Couto faz empréstimos de palavras de línguas africanas, e muitas delas não são traduzidas. Ele costuma incluir glossários nos seus livros, e eu mantive essa abordagem na tradução para o francês. É uma forma de levar outra cultura para o leitor francófono.

Em algum momento, entra em contacto com o autor para esclarecer dúvidas sobre passagens específicas?

Sim, mantemos contacto por e-mail. Costumo enviar-lhe perguntas sobre certos trechos, às vezes sobre aspectos históricos de Moçambique que não encontrei nas minhas leituras. O diálogo é frequente.

Tem expectativas em relação à receção desta primeira coletânea poética de Mia Couto pelo público francês?

Sim. Gostaria que os leitores francófonos descobrissem essa vertente poética da obra de Mia Couto, que ainda não tinha sido publicada em França. E que pudessem, através dela, entrar em contacto com essa outra definição de saudade – um conceito tão importante na literatura e na cultura de língua portuguesa.

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