Share Vida em França
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Olá Paris! quer ser o primeiro festival de cinema português em Paris a mostrar a nova geração de actores e realizadores lusos, preenchendo um vazio até agora existente em França. Tiago Guedes, Marco Martins ou Claúdia Varejão vão estar na capital francesa para discutir com os cinéfilos que venham até ao Club de l'Étoile, onde vai decorrer este evento.
O festival Olá Paris! vai trazer à capital francesa filmes, realizadores e actores portugueses, criando um evento da 7ª arte que quer fazer perdurar no tempo. A primeira edição deste festival decorre já de 29 de Novembro a 01 de Dezembro e Wilson Ladeiro, co-organizador e programador deste festival, explicou em entrevista à RFI as suas motivações para a criação deste certame.
"Eu gosto muito de cinema em geral, mas gosto particularmente do cinema português. Eu achava que aqui em França, em Paris, o cinema português não é que seja invisível, mas é passa pouco. Passa. E eu achava que o cinema português merecia muito mais, porque tem uma óptima qualidade. E não havia nenhum festival português de cinema em França. Pronto, então decidi que vamos íamos um festival de cinema português em França. E assim foi", indicou.
Juntamente como o irmão, Fernando Ladeiro-Marques, criaram o Olá Paris! com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da Caixa Geral de Depósitos, que vai decorrer durante três dias no Club de l'Étoile, no 17º bairro de Paris. Para a escolha dos filmes, Wilson Ladeiro, que é luso-descendente e trabalha no meio do audiovisual, viu centenas de filmes e acabou por escolher destacar quatro realizadores.
"O tema do festival é o cinema actual e da geração actual que o realiza, realizadores que estão a trabalhar agora. Está-se a escrever uma nova página página da história do cinema português, portanto, queria apresentar esta geração actual, os cineastas, os actores e as actrizes. Vamos ter "Alma Viva", da Cristèle Alves Meira, o documentário "Ama-San" de Cláudia Varejão, o filme "Restos do Vento" de Tiago Guedes e ainda “Great Yarmouth: Provisional Figures” de Marco Martins", descreveu.
Muitos destes realizadores vão estar em Paris, assim como os actores que os protagonizam como Isabel Abreu, Albano Jerónimo ou Beatriz Batarda. O festival mostrará ainda em ante-estreia o filme "Banzo" de Margarida Cardoso.
Este festival terá ainda uma mostra dedicada ao 25 de Abril, onde serão mostrados os o documentário "La Nuit du coup d'État - Lisbonne, avril 1974" de Ginette Lavigne e os "Capitães de Abril" de Maria de Medeiros. A lendária actriz portuguesa é ainda a madrinha deste evento e no quadro do festival estará com os alunos do Liceu Montaigne, também na capital francesa, para um debate sobre o 25 de abril e o cinema português.
O Olá Paris! conta ainda com outros eventos ligados às artes, como sessões de autógrafos do ilustrador Nuno Saraiva - que fez o cartaz do festival - e também de Madeleine Pereira, autora da banda desenhada "Borboleta". O street artist Glaçon vai ainda mostrar algumas das suas obras durante o festival.
Paris foi palco de uma manifestação da diáspora moçambicana, em frente à Praça da Bastilha, esta tarde. Tal como em Maputo e em outras partes do mundo, os manifestantes juntaram-se para contestar os resultados das eleições gerais de 9 de Outubro e para denunciar a repressão policial nas manifestações em Moçambique.
Nas ruas de Paris ouviram-se coros de “povo no poder”. A mensagem dos moçambicanos em protesto chegou à capital francesa, junto à simbólica Praça da Bastilha. Um grupo de mais de 20 pessoas empunhou cartazes com palavras de ordem e exibiu bandeiras de Moçambique, mas também cantou o hino moçambicano a “Pátria Amada”.
Laura Chirrime pertence ao grupo Indignados – Sociedade Civil dos Moçambicanos da Diáspora, um movimento que organizou em Paris e em várias outras cidades manifestações, esta quinta-feira, para pedir justiça eleitoral e para denunciar a violência policial nos protestos em Moçambique.
Pretendemos mostrar ao mundo o que está a acontecer em Moçambique. O mundo não sabe o que se passa. Sabemos que muitas organizações estão aqui em Paris, muita gente vai-nos ver. Estamos a gritar ao mundo ‘Socorro, por favor, ajudem-nos, Moçambique não está nada bem.
Nos cartazes dos manifestantes podia-se ler, em português e francês, "Povo no poder", “Liberdade para o povo”, “Moçambique igual para todos" e “Voto não é atestado de óbito”, mas também se liam críticas à Frelimo, partido no poder desde 1975.
Entre os manifestantes, a cantora Assa Matusse destacou que os artistas também têm o dever de se mobilizar.
É a primeira vez, na verdade, que me envolvo desta forma, sempre disse para mim mesma que jamais me iria posicionar politicamente porque a minha missão nesta terra é fazer música, mas chegam situações em que se ultrapassa a arte, ultrapassa todos os limites.
Outro artista presente era o músico Samito Tembe que empunhava o cartaz com a frase popularizada pelo rapper Azagaia, “Povo no poder”.
Eu não tenho medo. Povo no poder. Povo no poder. Povo no poder todos os dias. Eu não percebo como é tu votas, os dirigentes vivem à custa dos nossos impostos e não podemos reclamar se alguma coisa está mal. Não compreendo. Não vejo porque é que nos estão a atirar gás lacrimogéneo em Moçambique, estão a matar pessoas, não percebo...
“Alô mundo, alô Paris, alô França!”, gritou o investigador Anésio Manhiça, de passagem por Paris, que também agarrou no megafone para lembrar que os moçambicanos se reuniram nesta manifestação “por uma questão de direitos humanos e de justiça em Moçambique”.
Podemos falar e manifestar em Paris. Aqui, não corremos nenhum perigo, ao contrário dos nossos irmãos que estão em Moçambique. Estamos aqui para lançar esta voz contra a injustiça social em Moçambique, a injustiça eleitoral, os direitos humanos que estão a ser feridos em Moçambique, incluindo direito de liberdade até digital. Estamos aqui para lançar esta voz, ver se somos ouvidos e para poder ver alguma mudança política e social em Moçambique.
Entre os manifestantes havia também angolanos, como Lucas dos Santos, movido pela solidariedade com o povo moçambicano e pela luta pela justiça.
Somos todos africanos. Temos muitos laços que nos unem, começando pela língua portuguesa porque fomos colónia portuguesa. Somos a favor da liberdade. É injusto aquilo que se vive em Moçambique numa fase como esta. O poder é do povo e o povo é que deve escolher as pessoas que devem governar. Estamos aqui para dizer abaixo os assassinatos, abaixo a ditadura. Como angolanos temos que estar solidários, como sempre estivemos, com o povo moçambicano.
Além de Paris, os pedidos de justiça eleitoral e respeito pelos direitos humanos em Moçambique foram repetidos em várias outras cidades onde há diáspora moçambicana e em Maputo, o epicentro das manifestações.
Foi o candidato presidencial Venâncio Mondlane, principal rosto da oposição, que convocou, pelas redes sociais, a paralisação geral de sete dias que culminou, esta quinta-feira, com uma manifestação nacional em Maputo e acções na diáspora, naquela que ele descreveu como a “terceira etapa” da contestação aos resultados das eleições gerais de 09 de Outubro. Estes resultados, que ainda devem ser validados pelo Conselho Constitucional, dão a vitória a Daniel Chapo, candidato presidencial da Frelimo, partido no poder, com 70,67% dos votos, enquanto Venâncio Mondlane aparece em segundo lugar, com 20,32%. O candidato apoiado pelo Podemos rejeita os resultados, assim como os outros candidatos na corrida à presidência Ossufo Momade e Lutero Simango.
Dimas Tivane é um malabarista moçambicano que vive em França e as suas criações são inspiradas no quotidiano de Moçambique. É com “muita dor e com muita frustração” que tem acompanhado a espiral de violência pós-eleitoral no país e sente que esta “quase guerra interna” vai ser representada nos seus próximos espectáculos. Esta quinta-feira, ele vai estar numa manifestação em Paris, no dia em que várias cidades serão palco de acções da diáspora, em solidariedade com a mega-concentração convocada para Maputo.
Numa altura em que Moçambique vive protestos e muita violência pós-eleitoral, fomos conhecer Dimas Tivane, um artista moçambicano a viver em França. O jovem é um malabarista confirmado e tem dado espectáculos em várias cidades em França e noutras partes do mundo, com uma arte que Moçambique ainda pouco reconhece e da qual não se pode viver no país. Fomos espreitar um dos seus ensaios no Centquatre, um espaço parisiense onde tantos artistas amadores e profissionais treinam diariamente. O encontro aconteceu na véspera de uma manifestação em Paris da diáspora moçambicana.
RFI: A arte é, por ventura, geneticamente política, no sentido de imaginar utopias de um mundo melhor e de denunciar com formas poéticas os males que se vão vivendo. Por isso queria-lhe perguntar como é que tem acompanhado os protestos e a repressão das manifestações em Moçambique?
Dimas Tivane, Malabarista: Com muita dor e com muita frustração. O povo moçambicano está a sofrer consequências directas desta opressão e deste assassinato ao povo moçambicano e às pessoas que batalham no dia-a-dia. É uma marca enorme. Moçambique está a atravessar um período único, enorme e extremamente doloroso porque já há mortes. Tudo isto nós sabemos que é por conta da opressão e da não liberdade e da não democracia de que o nosso país é vítima.
A diáspora moçambicana também está a organizar manifestações. Vai participar em alguma coisa?
Claro que vou participar. É uma tristeza enorme não poder estar em Moçambique agora e, por isso, juntámo-nos entre nós, moçambicanos residentes em França, não só em Paris, e fomos fazendo uma campanha antes do dia 7, que é o grande dia em que as pessoas se vão concentrar em Maputo, a capital. Juntámo-nos entre artistas, estudantes, pessoas civis que estão residentes em França e que queriam, na verdade, manifestar a sua frustração e o seu repúdio à situação actual em Moçambique. Então, esta quinta-feira, dia 7, às 14h, na Praça da Bastilha, nós vamos estar lá a gritar o nome de Moçambique para podermos conseguir fazer chegar as nossas reclamações e a nossa voz a quem de direito.
O que é que espera para os próximos tempos em Moçambique?
Eu espero que o governo actual perceba que o povo moçambicano é um povo batalhador, mas que agora há uma espécie de cansaço e de fadiga diante das experiências últimas que nós tivemos com as fraudes eleitorais. Eu acho que é altura que o governo oiça mais o povo. Na verdade, o governo deve trabalhar para o povo, não é o caso actual. Eu espero mesmo que esta mensagem chegue às pessoas que têm o poder de mudar a situação actual e que se sintam comprometidas com o povo moçambicano, que é um povo extremamente batalhador. Moçambique é um belo país, então é muito triste estarmos a atravessar isso entre nós mesmos, estarmos quase a viver uma guerra interna, é muito doloroso.
Até que ponto é que tudo o que está a acontecer em Moçambique pode, de certa forma, ter eco naquilo que você cria, produz e apresenta em palco?
Há sensivelmente dez anos que eu trabalho focado no quotidiano, no dia-a-dia, nas minhas experiências, nas experiências das pessoas que me rodeiam, então a situação actual em Moçambique é nada mais, nada menos que um elemento que já faz parte da minha vida artística. Então, nas minhas criações, de certeza que haverá uma chamada de atenção a esta situação actual que se está a viver em Moçambique. Na minha maneira de escrever, na minha maneira de criar e não só, sendo um artista moçambicano residente em França, tenho também este dever e sinto esta responsabilidade de poder falar de Moçambique, não só das dificuldades, mas também de como é que nós podemos superar este tipo de situações.
Pode fazer-nos uma curta apresentação, contar-nos o que leva a palco e que projectos tem em curso?
Eu sou malabarista profissional há sensivelmente dez anos. A minha arte consiste em manipular objectos. Eu lanço objectos e tento não os deixar cair, o que não acontece sempre!.. Então, esta é a minha arte. A minha especialidade é o malabarismo musical: eu misturo a música, a dança e o malabarismo. Eu canto, faço malabarismo e danço ao mesmo tempo. Esta é a minha especialidade há sensivelmente 10 anos.
Quanto a projectos, eu acabo de estrear um solo que se chama “Nkama”, que significa “Tempo”. Escrevi “Nkama” numa altura extremamente complicada e perturbada da minha vida. Então foi um tempo difícil para mim. Este espectáculo é uma celebração. A vida é o que eu decidi fazer com o meu tempo, o que nós decidimos fazer, apesar das coisas que acontecem em Moçambique, no Afeganistão, no Líbano, na França, em Israel. Eu decidi fazer malabarismo. Por isso é que eu chamo ao espectáculo Tempo.
Tenho muitos projectos. Estou agora num enorme projecto em Moçambique de construção de uma escola, de um centro cultural em Moçambique, em Maputo. É um projecto auto financiado. Sempre foi meu sonho fazer este projecto, então acredito que em 2026, se tudo correr bem, teremos a inauguração deste projecto que é, para mim, a culminar destes dez anos de experiência.
O projecto é uma escola de artes de circo?
Na verdade, nós vamos estar meio divididos entre um projecto de pedagogia e um projecto de criação. Nós não temos ainda em Moçambique estruturas capacitadas para acompanhar uma formação circense. No entanto, vamos tentar instalar, no início, uma prática quotidiana em Moçambique e, claro, dando espaço aos artistas que queiram criar, tanto da dança, do teatro, da música, das marionetas e tentar, com o tempo, conseguir este distintivo de escola de circo e tornar-se na primeira escola de circo de Moçambique. Se tudo correr bem.
Se não há escola de circo em Moçambique, como é que você descobriu e desenvolveu a sua vocação?
Eu beneficiei de uma formação oferecida pelo Centro Cultural Franco-Moçambicano em 2011. Fiz parte de um grupo de 80 artistas que foram lá batalhar, bater-se para ter um lugar neste estágio que durou quatro semanas. Depois do estágio, os formadores foram-se embora, dois artistas franceses, malabaristas. E depois de eles terem ido embora, eu fiquei tão apaixonado pela prática que decidi continuar, na verdade, a praticar no meu canto.
Veio parar a Paris pouco tempo depois. Quanto tempo depois?
Eu participei num espectáculo, num espectáculo que se chama “Maputo-Moçambique”, um espectáculo que estreou em 2013. Nós fizemos várias digressões com este espectáculo.
Um espectáculo do Thomas Guérinaud...
Exacto. Participei neste espectáculo e foi este espectáculo que constituiu uma porta de entrada para a indústria criativa em França. Feito isso, continuei a ter contratos com outras companhias na Inglaterra, na Finlândia, no Brasil e em Portugal. Então, a necessidade de me instalar num lugar onde eu pudesse praticar todos os dias era mesmo urgente e decidi vir a França. Porquê? Porque tinha muitos contratos cá na altura e depois de sete anos a fazer idas e voltas entre Moçambique e França, instalei-me em Janeiro de 2020.
Quando estava a ensaiar, contou-me que também está, neste momento, a preparar projectos com o Japão e com outros países.
Eu tornei-me artista independente, criei a minha companhia actual, que se chama Companhia Nkama. Esta companhia é uma semente que eu quero lançar para poder chamar os jovens criadores e autores a poderem lutar pela sua autonomia, sendo a minha primeira obra “Nkama”, da qual eu falo com muito orgulho porque é uma obra que engloba música, dança, malabarismo, em changana, que é a minha língua materna...
Do sul de Moçambique...
Língua do sul de Moçambique, de onde eu venho, onde eu nasci e cresci. Graças a este espectáculo, eu fui actuando em alguns sítios em França. A estreia do espectáculo foi na Guadalupe, em Point-à-Pitre, e com algumas parcerias que eu tive na Suécia, em Guadalupe, em Goiânia e na França, o espectáculo ganhou tanta visibilidade que eu fui convidado a fazer alguns projectos colaborativos em Taiwan, com uma equipa de 15 artistas que vão estar lá a criar e fui convidado a fazer a direcção artística deste projecto. Recentemente, recebi um convite para fazer uma digressão de 15 espectáculos em oito cidades no Japão. É o culminar também de todo este trabalho que venho fazendo de malabarismo, música e dança. Então, abriu-me portas para poder conhecer outros universos, ir à América, à Ásia, África, à Europa e por aí adiante.
E tudo começou quase como um acaso... Tinha quantos anos quando descobriu o malabarismo nessa formação em Maputo?
Eu comecei o malabarismo muito tarde. Na altura eu tinha 19 anos.
Até que ponto acredita que a arte - seja teatro de rua, malabarismo, artes circenses, dança - consegue sacudir as mentalidades e mudar alguma coisa?
A arte tem este poder de passar não só pelos textos, mas por suportes visuais que chamam as pessoas a uma reflexão bem ousada, mas, no final das contas, acaba sendo uma porta de saída do que os livros não conseguem dizer, do que os espectáculos não conseguem dizer. Então, a arte, que é, na verdade esta mistura de música, gastronomia, maneira de vestir, pode ser bem forte para poder influenciar mentes, para poder deixar passar mensagens.
Em Outubro, foi lançado, em França, o livro “Les Portugais en France: une immigration invisible?” [“Os Portugueses em França: uma imigração invisível?”], editado pelas investigadoras Sónia Ferreira e Irene dos Santos. A obra reúne estudos de vários especialistas da emigração portuguesa e questiona o conceito de “imigração invisível” associado à comunidade portuguesa em França.
RFI: Como descreve, em poucas palavras, a obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?”
Sónia Ferreira, Co-editora da obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?”. É uma obra académica que reúne um conjunto de capítulos que são feitos por investigadores na área da antropologia, da sociologia, da história, e que são investigadores que têm trabalhado ao longo das últimas décadas sobre esta questão da imigração portuguesa em França. Mas também é um livro que visa ir para além da comunidade académica, ou seja, é um livro que também gostaria de chegar a um público mais alargado, precisamente para não se centrar apenas na discussão interna académica, mas para suscitar conversas e discussões sobre a imigração portuguesa em França, que vá para além desses círculos mais restritos.
Por isso, é uma publicação que é feita através de uma editora que tem a divulgação também de obras com outro tipo de características, mas com uma parceria com uma instituição académica. Portanto, tem esta dupla pertença, digamos assim.
Uma das perguntas que está no título é “imigração invisível?”. O sociólogo português Albano Cordeiro foi pioneiro nesse conceito, creio eu. O que significa essa noção?
Albano Cordeiro - a quem nós, aliás, dedicámos o livro devido ao seu falecimento recente e que foi uma pessoa muito importante a pensar a temática da migração portuguesa em França e foi pioneiro em muitos dos seus trabalhos sobre essa temática - tinha esse conceito do “paratonnerre maghrébin”, essa ideia de que muitas vezes os migrantes portugueses eram vistos como os bons migrantes, por oposição, à migração pós-colonial francesa, nomeadamente à migração magrebina, e portanto, havia essa ideia dos portugueses como católicos, como brancos, que estariam ao abrigo de muitas discussões sobre as questões religiosas, sobre as questões de racialização, em França.
Nós questionamos um pouco essa ideia, tentando mostrar que ela não é verdadeira e, portanto, de alguma forma há processos de invisibilização, mas também não é isso que faz com que os portugueses não tenham também, por exemplo, sofrido de processos discriminatórios no seu processo de instalação em França.
Ou seja, afinal não é uma imigração invisível como até agora se tem sustentado?
É uma imigração invisível nalguns aspectos ou uma emigração que ficou nalguns aspectos da sociedade francesa invisibilizada, mas, como sabemos, é uma imigração que tem um papel de visibilidade e destaque em muitas áreas da sociedade francesa. Muitas vezes essa questão do visível e invisível tem a ver até com aspectos negativos ou menos agradáveis e, portanto, é isso que nós questionamos. Ou seja, há processos de invisibilização da imigração portuguesa, mas até que ponto eles não devem ser também discutidos e questionados? E que repercussões é que isso tem para os próprios portugueses em França?
Todos estes processos que levam ao seu posicionamento na sociedade francesa e, portanto, há que questionar a sociedade francesa como um todo e não apenas olhar para os portugueses como um grupo isolado, mas pensar os portugueses na sua interacção com os outros grupos imigrantes em França, desde os europeus que chegam muito antes dos portugueses, como é o caso dos espanhóis ou dos italianos ou dos polacos, etc, às migrações pós-coloniais em França, principalmente aquelas que se dão nos processos de descolonização, que é quando a maior vaga de portugueses chega a França a partir dos anos 70.
Esta noção de bons imigrantes, de mão-de-obra dócil e silenciosa, não contribuiu até hoje para a instrumentalização desta imigração portuguesa por parte da extrema-direita francesa e não cultivou, de alguma forma, um certo racismo dos portugueses relativamente a outras migrações?
Sim, é verdade. Nós temos que pensar que, por um lado, se podemos dizer que os migrantes portugueses foram alvo de racismo e discriminação em determinadas situações - que o foram e esse é um processo que também está bastante invisibilizado, essa dimensão da discriminação que os portugueses sofreram em França - isso não os isenta de serem eles também, muitas vezes, agentes de discriminação.
Não nos podemos esquecer que os portugueses que chegam a França nos anos 60 e 70 vêm do regime ditatorial salazarista colonial português e migram vindos de uma sociedade onde prevalecia uma ideologia racista. Muitas vezes, o que podemos detectar é que na imigração portuguesa, na sua relação, por exemplo, até com migrações pós-coloniais portuguesas que vão para França, como é o caso de cabo-verdianos e de outras migrações que vêm dos circuitos pós-coloniais portugueses e que se encontram, em França, por exemplo, em locais como o mercado de trabalho - como o BTP [construcção civil] em que partilham associativismo -os portugueses também são, muitas vezes, agentes de discriminação com essas populações e também na relação com os próprios povos do Magrebe.
Portanto, há essa herança ideológica da sociedade onde imperava uma ideologia racista no Estado Novo e depois em França, são também confrontados, obviamente, com as ideologias racistas e de racialização que se encontravam presentes em França, nomeadamente por relação às populações africanas, da África francófona, do Magrebe, etc.
Quando diz que os portugueses foram alvo de racismo e de discriminação, estamos a falar do quê?
Podemos falar no mercado de trabalho, por exemplo. Gostaria de citar o trabalho que tem sido desenvolvido, por exemplo, no âmbito da Associação Memória Viva e também alguns exemplos que têm sido visibilizados pelo Hugo dos Santos na sua página nas redes sociais. Ele tem dado a conhecer exemplos em locais de trabalho ou em interacções com a própria sociedade francesa e com as instituições francesas, nomeadamente as instituições do Estado, não só nos processos também de realojamento, como foi com os famosos “bidonvilles”, nas fábricas, etc.
Há algumas formas de discriminação contra os migrantes portugueses desse período que estão documentadas. Aliás, o próprio Victor Pereira refere isso e houve até uma coluna assinada há uns tempos num jornal [L’Humanité] em que precisamente se chamava a atenção para a não instrumentalização dos portugueses como os “bons migrantes”, dando exemplos concretos de situações em que eles também foram alvo de discriminação.
Mas aí eu acho que é preciso ver a discriminação que vem da relação quotidiana e a discriminação estrutural que é uma discriminação que é imposta e que é através das instituições do Estado.
Outro aspecto pouco falado que vocês abordam nesta obra é o papel das mulheres portuguesas imigrantes em França na transformação do modelo familiar rural português após o contacto com famílias francesas. Quer explicar?
Sim, nós pensamos que as questões de género têm sido pouco trabalhadas. Quando tentamos olhar para trás e vemos os trabalhos que têm sido feitos sobre a imigração portuguesa, as questões de género, nomeadamente os trabalhos sobre as mulheres, não têm tido muita preponderância, digamos assim.
Até porque quando se fala das mulheres portuguesas em França ainda persiste o estereótipo da “concierge”, da porteira ou da “femme de ménage”, mulher das limpezas. Mas há outro modelo, que acaba por ser o de um certo empoderamento que já começa com a emigração portuguesa das mulheres nos anos 70?
No fundo, há um pouco de tudo. Há um modelo familiar, que vem também do Portugal do Estado Novo, que é aquele que chega também a França juntamente com estes imigrantes. Há também, é verdade, a questão da “concierge”, aliás, há um texto de Dominique Vidal, no livro, que trabalha precisamente sobre a questão das porteiras portuguesas, mas estamos a falar da região parisiense, ou seja, é uma realidade relativamente circunscrita e mesmo dentro dessa realidade é preciso distinguir as mulheres que trabalham para o sector privado e as mulheres que trabalham para o sector público porque isso também tem influência, depois, para os bairros onde vão residir e trabalhar e com os projectos de mobilidade social, por exemplo, ascendente das suas famílias.
Mas uma das coisas que nós também quisemos questionar - e aí prende-se também com as questões de género – é que muitas vezes há um olhar maior e mais concentrado na região parisiense. E é preciso compreender que é preciso olhar também para outras regiões em França onde também existem bastantes portugueses e em que as formas de organização familiar e laboral não são exactamente as mesmas e podem estar mais ligadas às zonas rurais.
No que diz respeito aos papéis de género, é preciso discutir - e esta é uma discussão que se tem na área das migrações - até que ponto os projectos migratórios são ou não projectos emancipadores. É interessante, no livro, o texto da Yasmine Siblot, que trabalha sobre migrações mais recentes de mulheres e discute esta questão de o projecto migratório ser ou não um projecto emancipador, não só pela via do trabalho, mas também pela via do conjunto ou da teia de relações sociais que se estabelece no novo contexto. E aí também, no caso em que ela está a trabalhar, estamos a falar de mulheres também ligeiramente mais novas do que as mulheres da primeira geração que chega a França em finais dos anos 60, dos anos 70.
E depois há que também ver aquela geração que vai ainda pequena com os pais e que depois vão seguir caminhos e modelos de género diferentes, muitas vezes enveredando pela via artística, pela via académica, pela via política. E é aqui também importante referir o envolvimento dos portugueses nalguns movimentos sociais franceses, nomeadamente na Convergence 84, por exemplo, em que algumas mulheres portuguesas também se envolveram.
O que é importante, acima de tudo, é mostrar que isto é muito mais heterogéneo do que se possa pensar num primeiro olhar mais essencialista sobre a mulher portuguesa dona de casa, etc.
Faz sentido ainda hoje, estudar-se, ainda, a imigração portuguesa em França, um país onde o modelo da sociedade é fundado pela tentativa de assimilação dos imigrantes?
Acho que faz, claro. Do ponto de vista histórico, sem dúvida, do ponto de vista socio-antropológico também até porque, mesmo que se possa dizer que a partir das segundas ou terceiras gerações já não estamos a falar de migrantes - no sentido formal do termo, estamos a falar de indivíduos que têm a nacionalidade francesa - mas a questão da migração e da história da migração na família é algo que não se desvanece, não é?
E, portanto, as repercussões que a emigração tem numa família é algo que conseguimos e devemos ler e estudar no tempo longo, como um processo. Do nosso ponto de vista, enquanto académicos da antropologia, da sociologia, da história, não nos interessam só as categorias formais e estatísticas de quem é ou não é imigrante, mas também perceber como é que o fenómeno da migração configurou aquela família no passado e configura no presente e muitas vezes até configura expectativas de futuro, sejam expectativas de futuro para estar em França, viver em França, mas muitas vezes também expectativas de regressar a Portugal e do tipo de relação que se estabelece com Portugal.
Para nós, independentemente dos modelos e do modelo político francês no que diz respeito às questões migratórias, a migração é muito mais do que isso e a imigração é um processo que deve ser estudado a longo prazo e em todas as dimensões que a constituem.
A obra “Les Portugais en France: une immigration invisible?” foi publicada na editora “Le Cavalier Bleu” e conta com textos dos investigadores Sónia Ferreira, Irene dos Santos, Manuel Antunes da Cunha, Cristina Clímaco, Margot Delon, Inês Espírito Santo, Guillaume Étienne, Victor Pereira, Yasmine Siblot, Filomena Silvano, Dominique Vidal e Marie-Christine Volovitch-Tavares.
A cantora e compositora moçambicana Assa Matusse canta "as dores" do seu povo e acredita que um artista não pode ficar alheio “aos irmãos que estão a morrer em Moçambique por reivindicarem os seus direitos”. A “menina do bairro”, que vive hoje em Paris, levou a língua changana a vários palcos internacionais e promete continuar a cantar Moçambique no mundo como uma forma de “resistência”. Assa Matusse não se deixa intimidar e avisa que “o medo não é antónimo de falta de coragem”.
Assa Matusse é cantora e compositora. É conhecida como a «Menina do bairro» em Moçambique, o país onde nasceu e onde absorveu ritmos tradicionais que ainda constituem o ADN da sua música, combinados com sonoridades modernas como a pop e o jazz. Assa Matusse canta em changana, a sua língua materna, em português, inglês e francês. Vive actualmente em Paris e está connosco na RFI para nos falar sobre a sua música, o que a inspira e o que a preocupa.
RFI: Sendo uma voz de Moçambique ouvida em vários palcos internacionais, eu queria mesmo começar por lhe perguntar como olha actualmente para a situação em Moçambique perante a contestação eleitoral, perante as detenções e mortes de manifestantes, o duplo homicídio de dois apoiantes da oposição, a convocação de uma semana de manifestações e de greve geral. Como é que olha para toda esta situação?
Assa Matusse, Cantora: Têm sido dias difíceis. Não tenho conseguido realmente viver como se nada estivesse a acontecer. Se calhar é o sentimento de impotência por eu estar deste lado, em Paris, enquanto existem os meus irmãos que estão a morrer em Moçambique simplesmente porque querem reivindicar os seus direitos. Isso tem tirado muito o meu sono. Não posso estar aqui a fingir o contrário, não é? Devia estar concentrada em preparar a minha tournée e tudo, mas têm sido dias muito difíceis e até pensei em sair um bocadinho das redes sociais para tentar ver se consigo economizar as minhas energias e emoções, mas não é possível.
É muito triste o que tem estado a acontecer com os moçambicanos e eu sinto-me extremamente tocada por isto porque eu sou moçambicana. Eu conheço muito bem as dificuldades que a gente tem naquele país e as dificuldades nunca são iguais. Existe uma parte que usufrui muito bem. Tudo o que a gente tem é que nós, moçambicanos, os verdadeiramente moçambicanos, de alguma forma, o povo não consegue, nem sequer os de Maputo.
Eu sou moçambicana, conheço outros países. Estou aqui em Paris, já estive na Noruega por conta dos estudos e tantos outros países a fazer alguns shows e tudo mais, mas nunca sequer cheguei no norte do país, porque o país é extremamente caro para os moçambicanos e normalmente são os que hoje em dia não aceitam que a gente reivindique, que usufruem e que conhecem o país e todas as maravilhas. A gente conhece pelas fotos, tantas outras coisas. Eu estou aqui a fazer a menção para que se possa perceber a que ponto eu, sendo artista, se calhar devia ter um bocadinho mais de possibilidade, se calhar, de chegar um bocadinho mais longe dentro do meu país e eu mesma não conheço Moçambique.
Se calhar chega mais longe graças ao canto, à sua voz e às mensagens que passa nas suas músicas. Fala na pobreza do seu país, fala na inferiorização sistémica da mulher. São músicas com um teor interventivo. Até que ponto a actual situação de Moçambique também poderá vir a inspirar a sua música?
A minha música sempre teve inspiração no povo moçambicano. As mulheres que eu falo são as mulheres de Moçambique porque são as mulheres que eu cresci a ver. Depois, coincide sempre com todo o desafio da mulher no mundo. Mas eu tenho dito que a mulher moçambicana, em qualquer lugar onde ela possa estar, vai-se dar muito bem porque as dificuldades, sendo mulher em Moçambique, também nas artes, é imensa e estrondosa. Então, em qualquer lugar, o problema vai ser menor.
É esta situação e tantas outras coisas que têm acontecido no meu país que têm sido a minha grande inspiração e, sobretudo, quando eu falo dos ritmos. Sempre fui apaixonada por tudo o que se faz em Moçambique, em termos rítmicos, sobretudo na parte do Sul, porque eu sou do Sul, da capital do país, Maputo, da zona periférica chamada Mavalane, onde eu cresci. É de lá que saem estas minhas melodias. Tanto é que eu tenho uma música no último álbum chamado “Mutchangana”, cujo título é “Som do Beco” porque são os sons do meu beco e todos esses sons que fazem parte deste álbum são sons que eu fui apanhando neste beco, quando eu estava em casa, um simples gritar de uma criança me remetia para uma melodia e eu consegui realmente trazer os sons do meu beco. O meu beco neste momento também é o meu Moçambique.
Em “No Som Beco” você canta “A malta não janta, não almoça, só come”. Depois, na música “A que preço” questiona: “Como fui germinar nesta pobreza?” Porque é que fala sobre a pobreza em Moçambique, um país que é classificado pela ONU como um dos mais pobres de África?
Eu insisto porque esta é a realidade de 90% da população moçambicana. Os 10% são aqueles que têm privilégios, são privilegiados e podem usufruir de tudo. Mas 90%, se calhar ainda mais do povo moçambicano, está na pobreza. E eu, um desses dias, estive a pensar muito sobre a música “A que preço” e nem sequer pensei nos meus pais quando eu escrevi isso, porque quando eu digo: “passa muita coisa na minha cabeça, porque é que não nasci na realeza, como é que fui germinar nesta pobreza?” Eu estou a falar simplesmente de um lugar onde as oportunidades não faltassem e as oportunidades para mim sempre foram escassas. A gente sempre teve que correr muito atrás e é assim a vida da maioria dos moçambicanos.
Mais ainda para as mulheres… A Assa Matusse fala muito das mulheres e das meninas moçambicanas, tanto em “Mutchangana” quanto no disco anterior, o “+Eu”. No “+Eu” você canta: “Eu sempre fui mais eu, poderosa, optimista, muito eu”, mas também canta: “A culpada sou eu por ter nascido mulher”. Que força é essa que quer dar às meninas e às mulheres moçambicanas?
A força que temos, muitas vezes temos medo de exteriorizá-la. Eu só estou a tentar trazer para fora o que já existe, na verdade, porque eu mesma me surpreendo a cada dia. O simples facto de ter saído do meu país, o que não é fácil... Eu saí do país não porque não amo Moçambique, é o contrário: de tanto amar o meu país, eu achei melhor ir embora para tentar ver se conseguia dar voz à música de Moçambique porque é uma música que não se conhece no mundo.
Quando eu falo das mulheres nas músicas é porque eu mesma tive que atravessar tantos obstáculos e não havia outra solução, para mim, a não ser ser forte. Então, eu falo tanto da força do “ser mais eu” porque eu preciso falar, verbalizar para que realmente eu consiga seguir e dizer “eu sou realmente mais eu”. Hoje em dia já não tenho muita opção a não ser isto mesmo porque já verbalizei que o sou.
Tenho falado, também, muitas vezes das mulheres, sobretudo dos bairros, por conta da questão das oportunidades, mas também por todas as dificuldades e desafios que a mulher tem, sendo mulher em Moçambique e tudo o que é preciso se submeter para conseguir continuar a sua carreira, seja ela na música e mesmo no trabalho. Existem tantos desafios, até as meninas do bairro nem podem se calhar ir para lá [Maputo]. Eu conheci a cidade com 15 anos, isso não é normal. Eu vivo a 15 minutos de Maputo. Porquê? Porque eu nunca tive nenhuma oportunidade para lá chegar, não é? As minhas escolas sempre foram ali no bairro, mas quando eu digo não conhecia a cidade, significa que eu não conhecia muitas coisas que a cidade nos pode proporcionar antes dos 15 anos.
Eu tenho falado muito dessa questão porque é preciso também começar a aperceber que este barulho todo que está a existir, as nossas reclamações não estão a surgir de hoje. Já há anos que as coisas são assim e que os moçambicanos, sobretudo as mulheres, têm medo de voltar para casa. Eu comecei a carreira com 15 anos. É por isso que comecei a conhecer a cidade com 15 anos porque realmente tinha que me fazer à cidade para poder ter as oportunidades. Mas tinha medo de voltar para casa porque não existia electricidade e depois tínhamos que fazer a amizade com os meninos mais perigosos, digamos, para que nos deixassem tranquilas e que quando nos vissem a chegar servissem como protecção e não achassem que éramos inimigos. É por isso que as mulheres, sobretudo as meninas do bairro, sempre vão carregar a minha voz para militar, como se diz por aí na gíria.
Tem levado a sua voz a vários palcos internacionais. Em “Mutchangana”, o álbum que lançou em 2023, a Assa canta em português, francês, inglês, mas também canta em changana. O que é que representa íntima e politicamente levar o changana por esse mundo fora e para as plataformas de escuta online?
Isto significa uma verdadeira identidade e orgulho daquilo que eu sou. Quando era mais nova, como eu já disse, falava changana, a maioria das famílias fala changana. Estou a tentar fazer uma música chamada “português do meu pai” porque ele tem uma forma de falar muito dele que era muito engraçada e eu percebo o quanto o meu pai se esforçou para conseguir dizer um “bom dia, como está?” em português porque nós falávamos a língua da minha família, o changana, não é?
Então, eu cresci a falar changana. Eu aprendi a falar português na escola. Para mim o português é como o francês e como o inglês que tive que aprender fora de casa e usar também como uma ferramenta de trabalho e meio de comunicação. Mas isso não significa que eu não tenha nenhum orgulho e que não ache que o português é uma língua minha. Também acho que a minha língua é a língua oficial de Moçambique e tenho tanto orgulho de fazer parte da lusofonia.
Mas é preciso aqui sublinhar que eu sou moçambicana e por ser moçambicana, tenho a realidade de um grupo de moçambicanos que não tiveram contacto com esta língua muito cedo. Então vou cantando em changana e deixa-me dizer que é a língua onde eu me sinto mais expressiva, mesmo ao cantar e a comunicar também é extremamente forte para mim. Esta língua, para mim, é significado de resistência porque essas línguas todas - há quem chame de dialecto, mas eu não chamo de dialecto - são línguas que em algum momento fomos proibidos de falar nas escolas. Existiu um tempo onde não se podia falar changana dentro de casa porque era preciso falar o português, o que era importante, mas também não podem marginalizar a nossa língua. Eu quis realmente realçar o orgulho que tenho desta língua que não é um dialecto, é realmente uma língua.
Essa língua e a etnia mutchangana dão origem ao álbum Mutchangana. Em 2016, lançou o “+Eu”. E agora? O que está a acontecer na sua carreira? Anda em tournée? Está já a preparar novas canções para um novo disco ou ainda é cedo?
Não, não é cedo. Nunca senti nenhuma pressão para trazer novos trabalhos, mas os trabalhos, novas melodias, acontecem quando acontecem coisas na nossa vida. E é preciso frisar que faz três anos que eu estou em Paris e neste tempo aconteceu muita coisa e o álbum foi começado em Moçambique. Ele foi feito em Moçambique, veio a ser terminado aqui na França, em Paris, mas foi começado lá.
Nestes três anos, há muita coisa que aconteceu e é preciso que eu exteriorize tudo isto. E é a partir e através da música que eu posso fazer isso. Não existe outra forma para mim de verbalizar tudo aquilo que me acontece, os desafios e, sobretudo, também a resistência. Como se sabe, os moçambicanos não estão muito no mundo porque já sofremos tanto na nossa casa que temos medo, na verdade, de sair e nos tornarmos mendigos, de alguma forma, no estrangeiro. Eu peguei esta força que os moçambicanos têm, mas têm medo, só que o medo não é antónimo de falta de coragem. Muitas vezes é simplesmente o medo de acabar dando um passo que podemos dizer, mais para a frente, que “se calhar teria ficado melhor na minha casa, que sofrendo, não sofrendo, estou com a família”. Então eu peguei e arrisquei e vim para cá. De lá para cá aconteceu tanta coisa que é preciso que eu verbalize. Então há muita música a vir por aí. Também estou a preparar a minha tournée e, aos poucos, também vou tentando conhecer novos palcos no mundo porque eu sou moçambicana, mas não pertenço só aos moçambicanos, sou artista, pertenço ao mundo.
Em Moçambique chamam-lhe “A Menina do Bairro” e é o nome de uma música do primeiro disco. Canta “Sou dos becos, lá no bairro… brincava na areia, com os meninos do meu bairro”. Para quem não a conhece, porque é que lhe chamam ainda “a menina do bairro” e quem é esta “menina do bairro” que nasceu em Maputo em 1994, cresceu a ouvir o canto e a guitarra do pai e vive em Paris actualmente? É uma resistente, já percebi…
Eu não sei exactamente em que momento comecei a ser chamada “menina do bairro”. A verdade é que eu tenho uma música chamada “A menina do bairro” e faz parte do primeiro álbum. Eu acho que esta música, tanto quanto o “+Eu” tiveram muita força. É que as pessoas começaram a apelidar-me assim. Eu recebi com muito orgulho este nome, este carinho, porque para mim vejo isso como um carinho. Quando eu tinha uns dez anos, se me chamassem “menina do bairro” eu ia ficar, se calhar, de alguma forma constrangida porque naquela altura, de certa forma, não tínhamos tanto orgulho dos nossos bairros, achávamos sempre que éramos inferiores porque éramos do bairro.
Então, com o tempo as coisas foram mudando e eu tenho tanto orgulho. E é assim que as pessoas começaram a chamar-me “a menina do bairro” porque vim com esta música intitulada “A menina do bairro”, mas também porque, de alguma forma, saí muito cedo de Moçambique, vou viajando nos países lá fora e que não conhece nem sequer o norte do país porque não teve possibilidades para lá chegar.
Mas fala dos ataques em Cabo Delgado numa das músicas…
Claro, porque Moçambique é Moçambique, não é? Não está dividido. Claro que tem o Norte, o Sul, o Centro, mas é Moçambique. E eu sou moçambicana. A dor das pessoas de Cabo Delgado é a minha dor. Foi triste. Na verdade, eu já senti a dor estando aqui e o sentimento de impotência também me atravessou, muito como nesta altura, diante de tudo o que está a acontecer.
Naquela altura era mesmo a questão de perceber que os próprios polícias não tinham, se calhar, nenhum apoio do governo para que eles tivessem mais protecção. Era o mata mata realmente. Tanto é que, em algum momento, teve pessoas com medo de ir a Cabo Delgado. Palma ficou deserta. Famílias, meninas foram sequestradas, foram decapitadas e nós recebermos esse tipo de notícia, vendo os pais na televisão a chorar, a gritar, as suas filhas levadas por pessoas desconhecidas que entraram dentro da sua residência e fizeram isto. Eu não tinha como não falar disso. Eu tenho dito que eu estou aqui para servir a comunidade porque não acredito que sendo artista me posso isolar simplesmente entre a música e a guitarra e todos os ritmos que eu amo, sem poder falar daquilo que atravessa e que o povo tem estado a sofrer tanto em Moçambique, quanto no mundo, mas sobretudo em Moçambique. Porque eu sou moçambicana e me impacta muito mais.
Ou seja, aquilo que a move, que a motiva a escrever e a cantar são as dores do seu próprio povo?
Sim. São as dores, as dores do meu povo. A dor do outro sempre tem um impacto muito grande na minha vida e os que me conhecem muito bem, a minha própria família, sempre têm dito: “às vezes, a gente acha que esqueces que também és um ser humano.” A minha família diz isto muito porque eu tenho muito esta questão de sentir a dor do outro. Eu não preciso de fazer parte do mesmo partido, não preciso de fazer parte da mesma religião para sentir a dor do outro. Para mim, alguém passar por mim doente, eu consigo sentir uma dor que não consigo explicar. Eu acho que o sofrimento no mundo é uma das coisas mais tristes e, para mim, poder alegrá-los com a minha voz, ou simplesmente, fazer as pessoas sentirem uma certa emoção através da minha voz e das melodias - até podem ser tristes porque estamos a falar de uma coisa triste - mas vai dar um sentimento de “aconteceu, mas estamos a viver, precisamos seguir em frente”.
Eu acho que é uma das minhas missões também no mundo. Os artistas também deveriam, realmente, neste momento, serem mais conscientes e perceberem que não é sobre fazer parte de um certo grupo, é sobre ser artista. E sendo artista, nós somos a voz do povo.
A 9ª edição da feira de arte e design africanos AKAA - Also Know as Africa - decorreu entre os dias 18 e 20 de Outubro no Carreau du Temple, em Paris. Esta é a primeira e principal feira de arte contemporânea centrada em África que conta com artistas da diáspora, afro-descendentes, africanos do continente que contam África no presente.
Como reinscrever a representação africana na história da arte? Esta é uma questão que muitos artistas exploram, combinando cores vivas dos têxteis com o preto da pele, como é o caso do nigeriano Sanjo Lawal. O trabalho do nigeriano foi apresentado na feira pela galeria portuguesa THIS IS NOT A WHITE CUBE.
Este ano temos dois artistas revelação: o Ibrahim Kébé, do Mali, e o Sanjo Lawal, da Nigéria, que é a figura central da imagem da própria feira. São duas novas revelações de países que também não são muito habituais nestas feiras internacionais. A verdade é que o encontro com estes artistas vem de múltiplas formas através da pesquisa. Um deles estava em exposição com um outro artista representado por nós. A certa altura, e através dessa pesquisa do cruzamento de plasticidade noutros projectos curatoriais, acabamos por encontrar novas revelações com quem vamos trabalhando do ponto de vista da direcção artística e da curadoria.
Graça Rodrigues, da THIS IS NOT A WHITE CUBE, explica-nos que foi criado um projecto para esta feira, procurando entrar em diálogo entre países com afinidades coloniais e históricas, reflectindo sobre o conceito de descolonização.
A feira transforma-se consoante as mudanças que se operaram na própria cidade, com a presença de outras grandes feiras. [No fim-de-semana 19 e 20 de Outubro] existiu um programa muitíssimo activo e, portanto, por um lado, a feira beneficia disso e, por outro lado, talvez também seja algo prejudicada. Esta é uma feira satélite, mas efectivamente permite destacar estes jovens que depois terão o seu percurso e, eventualmente, estarão noutras posições num momento mais à frente.
A Perve Galeria voltou a marcar presença na mais importante feira de arte contemporânea africana europeia, AKAA - Also Know as Africa. A galeria portuguesa apresentou obras de Ernesto Shikhani (1934 - 2010, Moçambique), João Donato (n. 1953, Moçambique), Malangatana Ngwenya (1936-2011, Mocambique), Manuel Figueira (1938-2023, Cabo-Verde), Reinata Sadimba (1945, Moçambique) e Teresa Roza d'Oliveira (1945-2019, Moçambique)
Este ano, a Perve galeria presta homenagem ao legado do artista cabo-verdiano, Manuel Figueira, explicou-nos o galerista português, Carlos Cabral Nunes.
Quisemos fazer uma homenagem ao mestre cabo-verdiano Manuel Figueira, que faleceu há um ano. Quer aqui em Paris, quer em Londres, na semana passada, quisemos destacar a obra dele e depois estamos a apresentar pela primeira vez em Paris, a obra de dois artistas com quem trabalhamos: a Manuela Jardim, da Guiné-Bissau, com quem já começámos a trabalhar há uma série de anos e que levámos também a Londres. E o João Donato de Moçambique, ceramista. Depois temos os repetentes, chamemos-lhe assim, que nós já apresentámos noutros contextos, aqui em Paris, mas com obras que não tínhamos mostrado antes. No caso do Malangatana, temos uma obra dele que estamos a mostrar e que que é uma obra paradigmática daquilo que foi o chamado período feliz dele depois da independência e de ter passado no campo de reeducação. Depois de Moçambique se tornar independente, foi criado um campo de reeducação à moda soviética. O Malangatana era considerado burguês porque vendia as obras. Portanto, o novo governo achou que ele tinha que ser reeducado para trabalhar para o povo.
Malangatana foi forçado a ensinar pintura neste campo de reeducação, vivendo afastado da família durante vários anos. Em 1981, deixa de ser forçado a fazer este trabalho e começa a produziu obras que celebram momentos felizes, incluindo um auto-retrato com a sua esposa, símbolo de amor e devoção.
Ele foi obrigado a fazer trabalho comunitário para as populações e ensinar as pessoas a pintar. O que é certo é que aquilo era forçado porque ele foi afastado da família. Depois houve uma altura em que o deixavam ir a casa durante um período, mas tinha que voltar para o campo de reeducação. As pessoas que eu conheço em Moçambique e que eram amigas de Malangatana, achavam que aquilo tinha durado uns meses, mas não, aquilo durou anos.
O mercado da arte está a viver um processo de transformação, especialmente devido às novas tecnologias e das novas gerações. Carlos Cabral Nunes acredita que as feiras de arte precisam ser repensadas, destacando que Portugal pode desempenhar um papel interessante nesse contexto.
O mercado da arte é um mercado que sofre muito com as oscilações geopolíticas e com o que se passa no mundo e, portanto, não é alheio à questão das guerras. O mercado da arte é quase como uma bolha, porque o mundo em si está em crises profundas; a eleição norte-americana, a guerra no Médio Oriente, a guerra na Ucrânia. Portanto, há uma série de situações que afectam, obviamente, a questão do mercado. O mercado está a viver um tempo de mudanças; há a questão das próprias tecnologias, das novas gerações. A nós, tem corrido bem. Não tenho razão para me queixar. As coisas têm estado a correr bem.
A feira de arte africana AKAA contou com mais de quarenta expositores, 36 galerias, entre elas a galeria Movart, que ofereceram durante quatro dias uma mostra da criação contemporânea ligada, de uma forma ou de outra, a África.
Esta feira tem levantado cada vez mais interesse pela arte africana, especialmente para a arte dos países lusófonos, com ligações importantes, com entidades como a Fundação Calouste Gulbenkian. Há uma crescente valorização da arte africana, que começa a ser reconhecida pelas suas histórias, incluindo experiências de guerra e descolonização, explicou-nos Janire Bilbao responsável pela galeria Movart.
Os franceses adoram a arte africana e também começam a conhecer a arte africana dos países lusófonos, que é um pouco o nosso foco. Temos algumas ligações com a delegação da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris. Estamos a construir pontes entre a África lusófona e a arte africana.
Durante muitos anos estivemos focados na arte europeia e agora, de repente reparamos que há histórias a contar, histórias muito legítimas, como nos conta o artista Márcio Carvalho, que nos está a representar com obras sobre a descolonização das memórias e são histórias que preciso de contar. Chegou o momento de contar histórias que ficaram muitos anos em silêncio. Haverá um momento em que chegaremos a um equilíbrio, mas agora é preciso cobrir 500 anos de ausência.
O pianista português João Costa Ferreira lança o seu mais recente disco, José Vianna da Motta, Poemas Pianísticos, vol 2, no próximo dia 26 de Outubro, em Portugal. Nos nossos estúdios, João Costa Ferreira destacou a importância de reabilitar o património musical português e partilha o "meticuloso processo de edição inerente à gravação" deste disco. O álbum é composto por 12 obras inéditas de José Vianna da Motta que o compositor escreveu entre os seus 5 e os 14 anos.
RFI: Antes de falarmos da relação que tem com a obra de José Vianna da Motta, vamos falar da peça"Resignação", uma peça escrita para ser tocada com a mão esquerda. Apesar de existir um vasto repertório clássico de obras para a mão esquerda, continua a ser curioso ver um pianista a tocar apenas com a mão esquerda. De onde é que vem esta tradição ?
João Costa Ferreira: Há toda uma tradição, sobretudo no século XX, quando vários compositores célebres como Ravel ou Prokofiev compuseram obras para o pianista Paul Wittgenstein. A partir daí começou a surgir mais reportório. Mas antes da primeira metade do século do século XX, já havia este repertório composto apenas para a mão esquerda e as razões são diversas: podia estar relacionado com alguma lesão física no braço direito, podia estar apenas relacionado como um desafio composicional. No caso do Vianna da Motta, não conheço a razão que o levou a compor esta obra "Resignação". O título em si carrega algo de negativo, portanto, é possível, e é apenas uma hipótese, que possa estar associado a algum problema que ele teve com o braço direito. O que, por exemplo, é possível de notar quando lemos os diários dele. Embora ele só tenha começado a escrever os diários depois de compor esta peça.
Durante muitos anos, durante quatro ou cinco anos, ele refere-se - por mais de 30 vezes - a dores nos dedos e por uma dessas vezes refere-se ao dedo mindinho da mão direita. Pode ser apenas uma hipótese, que ele possa de facto ter tido um problema no braço direito, mas não é de descartar essa possibilidade, até porque nos diários que eu estava a referir, escritos entre 1884 e 1890, ele escreve sobre sobre essa lesão na mão direita. Em 1907 e 1908 encontramos também cartas que ele escreveu a Margarethe Lemke, onde ele continua a insistir sobre problemas que ele tem nas mãos. Portanto, esse problema era recorrente.
Há desafios técnicos para tocar esta peça? Normalmente, a melodia é tocada pela mão direita e o acompanhamento pela mão esquerda. Há uma complexidade técnica quando se toca apenas com uma mão?
Sim, há uma complexidade associada a isso. O repertório para piano é composto no sentido de conferir à mão esquerda a melodia e o acompanhamento à mão direita. Isto é uma regra geral. Obviamente que há muitas excepções e no caso do repertório para a mão esquerda, acaba por ser muitas vezes o polegar que tem a função de produzir a melodia, uma vez que é ele que está próximo dos agudos, embora muitas vezes a melodia esteja nos graves, nem que seja para imitar um instrumento grave, como o violoncelo, por exemplo. Isso, de facto, traz um desafio que é diferente, uma vez que é confiada a uma mão apenas duas funções diferentes, isto é, o acompanhamento e a melodia.
Isso muda a dinâmica da interpretação?
Sim, de certeza. Quando temos que tocar um baixo muito grave e a seguir uma melodia é diferente de tocar com as duas mãos porque podíamos tocar ao mesmo tempo. Quando se trata de tocar com uma mão apenas, temos que fazer aquilo que nós chamamos arpejos, isto é, tocar primeiro baixo e depois tocar o agudo. E isso acaba até por ter repercussões na expressão musical, acaba por ser diferente do ponto de vista estritamente técnico, mas também do ponto de vista musical. Acaba por ter consequências que muitas vezes são consequências, aliás, que eu diria automaticamente positivas porque num arpejado há uma conotação da expressão associada.
Lança o seu mais recente disco, José Vianna da Motta, Poemas Pianísticos, vol 2. O que é que o motiva a continuar a aprofundar a obra de José Viana da Motta e a publicar este segundo volume?
Já tinha publicado um primeiro volume e não podia deixar de publicar um segundo. Este foi um receio que tive durante muito tempo. Será que um dia vai haver um segundo volume? É estranho haver apenas um primeiro volume. Era para mim uma vontade muito grande de publicar este segundo volume. O que é interessante no meu ponto de vista, do ponto de vista da reabilitação do património musical português, que é o trabalho que eu tenho vindo a fazer em torno da obra de Vianna da Motta e não só, mas sobretudo de Vianna da Motta. O interessante na publicação deste volume é que dá a conhecer mais 12 obras inéditas, que eram inéditas até há bem pouco tempo. Comecei primeiro por uma fase de revisão dos manuscritos e edição musical porque as obras nem sequer estavam publicadas e nenhuma delas estava gravada. Há a edição musical e depois a edição discográfica que é, aliás, feita para também dar a ouvir esta música a um público mais alargado porque nem toda a gente sabe ler música e pode ler uma música e tocá-la ao piano. Vejo isto como uma missão e estas 12 obras vêm também mostrar até que ponto Vianna da Motta era uma criança prodígio, fora de série, porque são obras compostas entre os seus cinco e os 14 anos, mas que não parecem nada terem sido compostas em tão tenra idade. É um trabalho do qual eu me orgulho muito, na verdade, e que espero que venha a mostrar uma faceta de Viana da Motta. Uma faceta estonteante, inacreditável. Mais uma faceta de Viana da Motta que valoriza o pianista que ele foi, mas também o compositor.
O critério para a escolha destas 12 peças foi o facto de terem sido escritas neste período entre os cinco anos e os 14 anos. Hoje parece difícil perceber como é que uma criança de cinco anos consegue compor uma obra como algumas destas que integram este álbum...
Sim, isso explica a razão pela qual, quando o pai do Vianna da Motta o levou à corte para tocar perante o Dom Fernando II e a condessa d'Edla, a família real não hesitou em financiar os estudos de Vianna da Motta no antigo Conservatório Real de Lisboa e depois até mais tarde, quando ele partiu para Berlim, em 1882, também no Conservatório ele continua a beneficiar do mecenato e foi sempre muito acompanhado pela família real. Era de facto uma criança excepcional, mesmo no seu tempo, muito embora talvez na altura as crianças chegassem a um grau de maturidade mais cedo. Mas mesmo assim, para ter tido tanta atenção por parte da família real, durante tantos anos, é porque de facto se tratava, apesar de tudo, de uma criança excepcional, mesmo no seu tempo.
Quando procura o repertório de Vianna da Motta, onde é que se encontram as partituras?
O espólio de Vianna da Motta encontra-se na Biblioteca Nacional de Portugal. Foi lá que eu trabalhei a maior parte do tempo na realização do meu doutoramento em Musicologia na Sorbonne Université. O trabalho que apresento agora é fruto de cerca de dez anos de investigação, embora já tenha havida outros discos, editado partituras. Foi na Biblioteca Nacional de Portugal, onde a maior parte das coisas de Vianna da Motta estão, que eu encontrei estas obras. Foi uma descoberta no sentido musical porque eram obras que estavam lá, às quais as pessoas tinham acesso e podiam abrir o livro, mas se calhar o interesse não foi despertado para que elas experimentassem ao piano e vissem qual era o interesse musical. Foi o que eu descobri. Foi compreender o interesse musical e trazê-las à luz do dia.
E qual é então, portanto, o interesse musical? O facto destas obras serem inéditas, a complexidade ou até mesmo imagino, os desafios da interpretação?
Eu não posso nunca deixar de ficar deslumbrado pelo facto de serem obras que exigem uma grande capacidade técnica e musical, tendo em conta a idade que ele tinha quando compôs. Do ponto de vista da revolução ou de algo que ele tenha trazido à música: ele compôs já tarde no seu tempo, num estilo romântico que era um estilo muito próprio da primeira metade do século XIX; a música de Vianna da Motta, mas, como aliás, a maior parte da música dos compositores da época, não foi uma música que permitiu uma revolução na história da música. Mesmo no final do século XIX, já havia compositores que estavam a experimentar outras linguagens musicais, enquanto Viana da Motta ficou sempre muito agarrado ao romantismo do início do século. Talvez isso explique uma porque é que a sua obra tem vindo a ser esquecida ou praticamente ignorada.
Porque é tardia?
Sim, exactamente. Mas se nós formos a pensar noutros compositores românticos que até no século XX compuseram, embora com traços impressionistas, traços mais modernos e que acabaram por ficar muito célebres. O próprio amigo dele, o Ferruccio Busoni, é pianista e compositor italiano. Viana da Motta tem três fases criativas. Esta série discográfica é dedicada à primeira fase criativa, que é as obras de infância. A terceira e última fase criativa de Vianna da Motta é a fase nacionalista, isto é, da música de carácter nacional.
A fase mais conhecida...
Sim, é mais conhecida e nesse sentido Vianna da Motta terá tido um papel importante para aquilo que foi a evolução da história da música em Portugal. Embora já nos outros países em toda a Europa já se fizesse isso, isto e os compositores inspiravam-se imenso, sobretudo na música popular portuguesa, introduziam nas suas obras. Vianna da Motta foi, nesse aspecto, um pioneiro em Portugal e ele foi importante para abrir portas para que se desenvolvessem escolas de composição em Portugal. Escolas no sentido estético que abriram portas a Luís Freitas Branco ou Fernando Lopes Graça, Francisco Lacerda. Para a composição de obras inspiradas no folclore ou na música popular portuguesa. Tendo em conta o conjunto geral da obra de Vianna da Motta, é inegável a importância que ele teve para a história da música em Portugal.
As obras de infância são mais uma espécie de reprodução daquilo que já se fazia em termos de danças; danças de salão, valsas, polacas, mazurcas, mas também muitas marchas. O primeiro disco, tinha sobretudo polacas, mazurcas que este disco já não tem e esses géneros musicais foram substituídos aqui por marchas, mas também tem valsas e músicas inspiradas em temas de óperas, por exemplo, que era algo que se fazia muito na época e obras que reflectem, aliás, o quotidiano de Vianna da Motta na vida lisbonense. Temos duas obras, por exemplo, neste disco, inspiradas no universo hípico, nas primeiras corridas de cavalos que tiveram lugar no antigo Jockey Club de Lisboa, que é onde hoje se encontra o Hipódromo do Campo Grande, por exemplo. Mesmo a própria gaité que é um galop, um galope, uma dança também frenética, também é inspirada nesse universo hípico dos cavalos.
Estas obras são importantes porque, por um lado, embora não sejam revolucionárias, e eu insisto, houve muito poucas obras a serem revolucionárias na época. Para além de serem estonteantes, tendo em conta a idade dele, reflectem aquilo que ele era capaz de fazer e o quotidiano lisbonense que ele frequentava.
De que forma é que este segundo volume se diferencia do primeiro?
Para além do facto de já não ter as danças, as polcas, mazurcas, a marcha é mais a música de rua. Tem também uma fantasia inspirada numa ópera que o primeiro volume não tinha. Tinha, sim, uma obra dramática também nesse sentido, mas que era inspirada numa catástrofe que aconteceu na região de Múrcia, no sul de Espanha. E tem uma obra também incrível que é a última faixa As Variações sobre um tema original - ele compôs um tema e a partir dele escreveu várias variações. Isto é o mesmo tema, mas com outra decoração, com outra decoração que revela muitas capacidades, não apenas do ponto de vista composicional, mas pianístico, uma vez que ele tocava as obras que compunha, é por isso que eu falo da questão pianística. Ele compunha as obras ao piano. Essa obra, por exemplo, revela várias capacidades, uma vez que cada uma das 13 variações exige algo do ponto de vista técnico muito, muito diferente. Seja arpejos, seja acordes, seja oitavas. É como se ele ali explorasse as diferentes dificuldades técnicas que ele acharia que seriam necessárias a desenvolver. Até pode ser visto quase como aquilo que nós chamamos um estudo para piano, isto é, uma obra composta para desenvolver um determinado tipo de jogo, de forma de tocar.
Há também uma faixa que se chama Praia das Conchas, Praia das Conchas e uma praia que se situa no distrito de Lobata, na ilha de São Tomé em São Tomé e Príncipe, onde Viana da Motta nasce e vive há alguns anos. Viana da Motta vai guardar memórias que consegue depois transpor na sua música.
A Praia das Conchas é a única obra que o Viana da Motta compôs, inspirado no local do nascimento que é São Tomé. É uma obra que é uma quadrilha de contradanças, portanto origem popular da dança, em que ele escreve cinco danças e cada uma delas tem o nome de uma outra praia: a praia Mutamba. Há duas praias que eu não encontrei o nome que é Praia Soares, Praia do Sal. Sei que há muitas salinas no norte, mas são tudo praias ali perto da praia, porque há a praia, Mutamba, a praia do mouro também, acho que hoje é a praia dos Tamarindos. E depois há duas praias que eu não consegui encontrar. Andei à procura nos mapas e não consegui encontrar. Pode acontecer que estes nomes não existissem na época, que eram falados pela população local apenas e que nunca tinham sido registados. Vianna da Motta terá não lembrado das praias, uma vez que ele saiu de São Tomé muito cedo, mas penso que terá sido o pai. Na minha opinião, terá sido o pai a falar daquelas praias que ele provavelmente frequentava quando morava em São Tomé e Príncipe. E foi a partir daí que o Viana da Motta compôs estas cinco danças, inspiradas nas praias que eu acredito que sejam todas as praias no norte temos que encontrar a Praia Soares e a Praia do Sal.
Como é que correu o processo de gravação deste disco; a elaboração, a escolha das peças, o estudo das obras seleccionadas e depois a gravação?
Este é um objecto pequeníssimo e por trás dele está todo um trabalho absolutamente estonteante. Foram três anos de trabalho, sem contar, obviamente, com os dez anos que eu falei há bocadinho de investigação do doutoramento, os outros discos que eu gravei antes disto. Obviamente que isto também é um bocado fruto desse trabalho. Não foi tudo feito em três anos, mas entre o lançamento do primeiro volume desta série discográfica e este agora, passaram-se praticamente três ou quatro anos. Durante esse tempo houve tanta edição musical, a tal revisão dos manuscritos, que foi essencial porque há manuscritos que estão num estado muito difícil de descodificar, partes que estão rasgadas, um pedaço que está aqui, outro pedaço que está ali.
E o que é que se faz nessas situações?
É preciso compreender e conhecendo a linguagem da composição de Vianna da Motta. É importante para saber também avaliar e tentar perceber aquilo que ele queria. Conhecer a própria linguagem de Vianna da Motta, a linguagem romântica e trabalhar a partir daí, encontrando a forma como o Vianna da Motta imaginou e concebeu a sua obra. Não há assim tantos pedaços rasgados e perdidos. Apesar de tudo são desafios porque antes de tomar uma decisão é preciso ter mesmo a certeza daquilo que se está a fazer. Muitas vezes não se tratava de pedaços perdidos, mas, por exemplo, numa mesma página, várias versões escritas uma por cima das outras. Era preciso perceber cronologicamente aquilo que aconteceu. E muitas vezes havia indícios. Havia uma coisa feita a caneta, outra coisa feita a lápis, por exemplo, coisas feitas com canetas diferentes ou, aliás, com pontas de canetas diferentes. Houve esse trabalho quase de detective que faz parte do meu trabalho como investigador que foi a edição musical e a publicação. Depois a gravação em estúdio, foram cerca de 20 horas em estúdio. Foi um mês a fazer uma pré montagem de 8 horas todos os dias, a trabalhar numa pré-montagem apenas. Depois foram mais uns cinco ou seis dias de montagem. E depois as ilustrações que também não posso esquecer, uma ilustração para cada uma das faixas feitas pela artista portuguesa Mariana Miserável, que é o nome artístico de Mariana Santos e pôs todo o trabalho também do design gráfico e a produção, encontrar financiamentos junto de várias entidades. Tudo isto é um trabalho colossal, de facto, e que explica a razão pela qual só quatro anos depois de ter lançado o primeiro volume, é que lança agora este segundo.
Talvez um próximo volume dedicado à fase mais conhecida de Vianna da Motta, a música mais nacionalista?
Já lancei um dedicado às cinco rapsódias portuguesas, que se inspiram em 17 temas populares portugueses. Creio que dessa fase, como disse há pouco e muito bem, é a fase mais conhecida do Viana da Motta, ou já muitas coisas foram gravadas, aliás praticamente tudo. Tenho mais interesse para já em acabar as obras desta fase. E a haver um próximo disco, será um terceiro volume dedicado também à obra de infância, mas o qual terá não apenas obras para piano solo, mas também música de câmara.
Nesta fase criativa, portanto, até aos 14 anos, até 1882, que é o período em que ele vai para Berlim e depois muda completamente a sua estética. Nesta fase criativa existe ainda todo um vasto repertório para piano solo, mas obras bastante grandes e exigentes do ponto de vista técnico e físico, mas também música de câmara. Tem piano para seis mãos, ou seja, três pessoas ao piano a tocar uma mesma obra, inspirada numa obra do compositor Meyerbeer, Robert le Diable. Tem também uma grande sonata para piano e flauta. Tenho a partitura a descobrir uma vez mais no sentido musical: abrir a partitura, tocar e tentar perceber porque é muitas vezes aí que se encontra e que reside a descoberta. A haver um terceiro volume, será um volume com uma ou duas obras ainda de piano solo e o resto é música de câmara.
Aprofundar as relações bilaterais entre Portugal e França na área da defesa, fomentar a partilha de informação, as cadeias de fornecimento e até a construção de consórcios para futuras candidaturas ao Fundo Europeu de Defesa, foram alguns dos objectivos da 1ª Jornada Luso-Francesa de Indústrias de Defesa, que decorreu na Embaixada de Portugal em Paris, no início deste mês de Outubro.
A marcar presença no evento estiveram cerca de 50 empresas, 25 de cada país. Numa apresentação geral, tiveram a possibilidade de apresentar os produtos e evidenciar potenciais parcerias, negócios e necessidades para posteriormente procederem às reuniões B2B encontros bilaterais entre empresas, de forma a saírem possíveis contactos para futuras parcerias.
Ao microfone da RFI, Sérgio da Silva Pinto, adido de Defesa junto da Embaixada de Portugal em Paris, sublinhou que “não há boas forças Armadas, não há Forças Armadas fortes e interoperáveis na Europa se não houver uma indústria de defesa também forte e integrada”. O capitão-de-mar-e-guerra aproveitou, ainda, para anunciar sessões similares noutros países europeus.
Sérgio da Silva Pinto avançou que a iniciativa resulta “uma reflexão estratégica que fizemos em Portugal, em que este novo contexto geopolítico que a Europa está a enfrentar, uma muito maior conflitualidade, leva a que a própria Europa tenha que investir mais em defesa para que as suas Forças Armadas sejam capazes de defender o território e a população europeia. Ora, isso só é possível se houver uma forte indústria de defesa”.
Segundo o comunicado da Embaixada Portuguesa em França, o evento foi organizado por uma parceria bilateral entre Portugal e França, integrando, do lado português, a Embaixada de Portugal em Paris, a Direcção-Geral de Política de Defesa Nacional, a Direcção-Geral de Recursos da Defesa Nacional, o Estado-Maior-General das Forças Armadas, a aicep Portugal Global, a idD Portugal Defence e a AED Cluster Portugal, e do lado francês a Direction Générale de l’Armement (DGA), o Groupement des Industries Françaises Aéronautiques et Spatiales (GIFAS), o Groupement des Industries de Construction et Activités Navales (GICAN) e o Groupement des Industries Françaises de Défense et de Sécurité Terrestres et Aéroterrestres (GICAT).
O primeiro-ministro francês pronunciou esta semana a declaração política na Assembleia Nacional. Michel Barnier disse que a receita para reduzir as dívidas passa pela diminuição da despesa e pelo aumento dos impostos. Em entrevista à RFI, o economista e professor na Universidade Paris Dauphine. Carlos Vinhas Pereira, refere que "os maiores cortes vão ser feitos nas ajudas sociais".
RFI: O primeiro-ministro francês, Michel Barnier, disse que a receita para reduzir as dívidas passa pela diminuição da despesa e pelo aumento dos impostos. Quais serão os sectores mais penalizados com estes cortes?
Carlos Vinhas Pereira, economista e professor na Universidade Paris Dauphine: Os maiores cortes vão ser feitos nas ajudas sociais. As ajuda passarão a ser feitas tendo em conta a antiguidade e a estabilidade da pessoa que solicitar apoio. Relativamente aos clandestinos, a França é dos únicos paises que mais apoia as pessoas que estão no território em situação irregular. Essa situação também deverá mudar, as autoridades deverão limitar o acesso destes cidadãos aos cuidados de saúde e às ajudas financeiras.
Vários especialistas já vieram dizer que essa medida representa um valor ínfimo na despesa pública francesa. Não se está sempre a fazer pagar as mesmas pessoas?
Estamos a falar de 1000 milhões de euros. É verdade que- relativamente à dívida- é uma gota de água no oceano. Mas aqui a ideia é prolongar o tempo de trabalho para que essas pessoas tenham direito aos cuidados de saúde e ao subsídio de desemprego.
Todavia, quando se fala no sector da Saúde, ouvimos que o sector já não aguenta com mais cortes. Onde é que o primeiro-ministro pensa cortar?
Vai cortar na parte administrativa, não na parte operacional. Ele quer aumentar o número de médicos, passando de 7500 para 15.000 estudantes para que estes possam- no futuro- substituir os médicos que vão para a reforma. Nos hospitais podem ser feitos cortes na parte administrativa, considerada como muito pesada
O sector da Educação, da Defesa e da Justiça também sentirão os cortes?
A ideia era poupar, nomeadamente o sector da Defesa. Acredito que os grandes cortes serão feitos nas prestações sociais. A França é campeã do mundo na redistribuição das ajudas sociais- foi sistema que escolheu, mas esse modelo tournou-se demasiado pesado para a realidade do país.
O primeiro-ministro francês anunciou que quer que os mais ricos ajudem o país a equilibrar as contas públicas, sublinhando que será um esforço limitado no tempo. Qual será o formato desse esforço financeiro?
O formato será o de passar de uma taxa de imposto que vai aumentar 6% relativamente à taxa normal e estou a referir-me às empresas com um volume de negócios superior a 1000 milhões.. A ideia é j passar a taxa do IVA, do IRC a uma taxa que vai atingir uns 33%, relativamente à taxa que vigora actualmente.
Michel Barnier disse que este imposto será feito de forma a evitar as estratégias de desfiscalização dos grandes contribuintes. Ele vai ser capaz de por esta medida em prática?
É simples e fácil de fazer. Ele tem apenas de eliminar certos nichos fiscais, em França há dezenas, que permitem uma exoneração de impostos. Penso que os franceses, em termos gerais, estão a favor da eliminação deste tipo de privilégios que certas pessoas benificiam.
Não está em cima da mesa o regresso do imposto sobre as grandes fortunas?
Não, isso não! Podemos dizer que era um esforço que toda a gente devia fazer, ou seja, aqueles que têm mais meios para contribuirem para equilibrar as contas, mas será um esforço limitado no tempo. O facto de Michel Barnier ter anunciado que o objectico é atingir-em 2025- os 5% de défice e depois-até 2029-restabelecer os 3% -que é norma europeia- demonstra que que se trata de uma medida que será aplicada até que seja diminuída a dívida francesa.
O chefe do Executivo afirmou ainda que quer fazer pagar impostos às empresas com grandes lucros, mas sem colocar em causa a competitividade. Esta equação é possível?
Sim, é possível. Michel Barnier apoia-se nos 50 mil milhões de euros que que foram distribuídos em dividendos e que resultaram dos lucros realizados pelas grandes empresas francesas. O primeiro-ministro francês considera que o facto de baixar os dividendos não vai prejudicar a competitividade das empresas. Só vai impactar o montante que os acionistas deverão receber.
Foi ainda anunciada a revalorização do SMIC- salário mínimo em 2%, a partir de 1 de Novembro. Este aumento é suficiente para fazer face à inflação que se vive?
Já houve aumentos ligados à inflação. Este aumento é um dos primeiros a ser feito sem se ter conta a inflação. Michel Barnier quer aumentar o poder de compra e também agradar os partidos de esquerda. Claro que não aumentou como a esquerda queria, mas trata-se de um gesto como, de resto, fez com a extrema direita na questão da imigração.
Relativamente à política de imigração, considera que todas as políticas devem ter em conta que o país precisa de mão-de-obra estrangeira?
Sim, a França precisa de mão de obra estrangeira. No entanto, as autoridades querem uma mão de obra regular, que não chegue de forma clandestina. Se pensarmos nos últimos acontecimentos- a morte da jovem Philippine- vieram revelar que há um problema. Que se não existirem os meios adequados, os abusos podem acontecer
Foi ainda anunciado um fundo que será utilizado para desenvolver a competitividade das empresas. Há aqui a intenção do executivo de Michel Barnier querer fomentar a competitividade das empresas em França?
É uma medida que vai ajudar certas pequenas e médias empresas-PME- que trabalham com o mercado de exportação, para poderem receber ajuda mais facilmente.
O LusoJornal, diário que se dedica à cobertura de jornalística ligada à comunidade lusófona em França, comemora neste mês de Setembro 20 anos de existência. Em entrevista à RFI, o fundador e director do LusoJornal, Carlos Pereira, fala das transformações do jornal, ao longo das duas décadas, e sublinha que o jornalismo de proximidade tem sido a chave para o sucesso.
RFI: Como surge a ideia de lançar um jornal dedicado à comunidade portuguesa em França?
Carlos Pereira, fundador e director do LusoJornal: O que nós tínhamos- há 20 anos- eram jornais mensais que falavam essencialmente do movimento associativo português em França. Jornais que iam buscar informação às associações e onde era depois distribuído. Todavia, [quando avançamos com o projecto] achamos que havia lugar para passar a um ritmo semanal, com informação que iria para além do movimento associativo. Lançamos este desafio, o de ir buscar os portugueses ou outros lusófonos ligados a Portugal, ou aos outros países de língua portuguesa, com uma história interessante e que os pudéssemos entrevistar.
Nessa altura, tínhamos a informação de que havia à volta de 10% dos portugueses que frequentavam as associações e o nosso desafio era ir buscar os outros 90%. Ou seja, aqueles que não frequentavam as associações.
Como foi chegar a essas outras pessoas? O jornal teve de se adaptar?
É um trabalho de formiga. Ir buscar um português que está na área do teatro e ele vai partilhar a informação, fazendo com que cheguemos até outros portugueses. Muitas vezes, o que acontece, são as pessoas que entrevistamos que nos sugerem outras entrevistas, outro português que está ligado ao cinema, à pintura ou à política. Hoje mostramos que há portugueses em todas as áreas e que há também portugueses em todas as áreas geográficas da França.
Há 20 anos não havia as ferramentas que existem hoje. Considera que é mais fácil trabalhar hoje?
O mundo mudou muito e nós temos uma concorrência muito grande nas redes sociais. Quando começamos era uma evidência passar a semanário, mas mais tarde decidimos que o LusoJornal passaria a diário. Tínhamos consciência que a informação circulava muito mais rápido. Hoje, o Lusojornal é um diário, mas deixamos de ter um jornal em papel , optando pela versão online. Quando fizemos essa escolha devíamos ter mais ou menos uns 40 mil leitores. Neste momento, devemos ter uns cerca de 210 mil…
Conseguem chegar a um público maior?
Sim e a um público muito mais diverso. Sabemos que temos um público muito heterogéneo. Há muita gente da primeira geração –sabemos porque nos chegam muitas vezes informações de pessoas que nos questionam sobre o facto de falarmos de determinados assuntos, como grupo de folclore, de um determinado grupo político e não falamos de outros- [mas também chegamos a outros portugueses].
Como é feita a escolha editorial?
A escolha editorial é a mesma desde o primeiro dia. A nossa missão é falar da vida dos portugueses, dos lusófonos que vivem em França e da relação entre a França e os países lusófonos. Essa é a nossa linha editorial e não mudamos um só centímetro. No fundo, falamos do que não falam os outros jornais. Um jornal francês não vai falar especificamente dos portugueses porque são portugueses. Ou um jornal em Portugal não vai falar dos portugueses de França.
Muitas vezes até passa despercebido e nós falamos desta comunidade que não é uma comunidade, mas sim um conjunto de muitas comunidades. É isso que faz, se puder falar em sucesso, o nosso sucesso. É isto que faz com que as pessoas partilhem a nossa informação, uma vez que não a encontram noutros sítios. A primeira entrevista, a descoberta, digamos assim, passa muitas vezes por nós. Andamos à procura deles e falar deles e de falar do pulsar da comunidade. Essa é uma missão que nós nos auto atribuímos.
Ao longo dos anos, foram muitos os jornais que tiveram de se adaptar. Falou aqui na questão de ter deixado de haver LusoJornal em papel e passar a haver online. Que outras mudanças tiveram de ser feitas ao longo destes 20 anos?
Infelizmente, o COVID veio trazer-nos alguns problemas financeiros. Hoje, o nosso grande desafio é retomar uma actividade normal. No jornal temos a particularidade de ter-ao mesmo tempo-uma equipa profissional muito pequena, que reduziu bastante com o Covid, e uma equipa amadora, pessoas que não são profissionais, que não são jornalistas, não têm carteira profissional, mas que escrevem bem.
Este misto -entre uma equipa profissional e uma equipa amadora- sempre nos caracterizou. Todavia, devido às dificuldades financeiras, a parte profissional tem vindo a ser reduzida, mantendo uma grande parte da equipa amadora, que espero ainda guardar. O nosso desafio agora é de desenvolver uma área comercial-que não temos sabido desenvolver ao longo dos anos e que é que vai ser preciso pô-la aí a trabalhar. Isto porque sem a área comercial o jornal não pode viver. Trata-se de um jornal gratuito e que vive unicamente da publicidade. Se não vender publicidade, o jornal não existe.
Lembra-se da notícia que mais o marcou ao longo destes 20 anos?
Essa é uma pergunta muito difícil… Quando, nas últimas eleições autárquicas, aqui em França, demos a notícia de que havia cerca de 8 mil luso-eleitos, não se sabe muito bem quantos são, mas andará por aí. Eu achei que nós demos um contributo muito grande, já que a nossa primeira notícia sobre os luso-eleitos era de que havia 320 ou 330. Considero que, ao longo dos anos, contribuímos para que esse número crescesse. Evidentemente que ainda poderia haver ainda muito mais; esse é outro debate. Mas o facto de passar de 300 a 8000 em poucos anos, em 20 anos, foi também um pouco resultado do nosso trabalho. Na altura, essa notícia fez-nos, pelo menos, falar bastante numa reunião de redacção sobre esse assunto, pensar que a nossa contribuição foi importante nesta matéria.
Os atentados de Paris-13 de Novembro de 2015 ficam para a história da França como um período sombrio. Como foi feita a cobertura deste episódio?
Quando foi anunciado o primeiro morto, em frente ao Stade de France, nós conhecíamos a filha do senhor que morreu. Naquela altura “pusemos a máquina a funcionar” e fomos directamente falar com a pessoa que sofria mais naquela altura, porque tinha perdido o pai. E isto também é um pouco resultado de um jornal de proximidade.
O LusoJornal comemora 20 anos de existência. Que balanço faz deste projecto?
Faço um balanço positivo. Isto tem sido uma aventura. Se fosse recomeçar agora, talvez pensasse duas vezes, mas altura não tive muito tempo para pensar. Era novo demais para isso.
Quando começamos, muito pouca gente acreditava neste projecto. Diziam que não existiam assim tantas notícias, que não se faziam um trabalho jornalístico num jornal gratuito. Defendiam que o jornal tinha que ser pago, vendido, senão não tinha qualidade. E isto tudo foi por água abaixo. Hoje ninguém pensa nisso.
Sei que continuamos a ser um jornal pequeno, mas na nossa dimensão, na nossa área, queremos ser bons e, sonhamos com isso. Temo-nos batido para isso-numa área muito específica que é a das comunidades portuguesas em França e só em França, porque não actuamos nos outros países. Achamos que já há matéria suficiente e é aqui que nós queremos fazer jornalismo.
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