Moçambique, Etiópia e Egito devem estar no roteiro da primeira viagem internacional que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer fazer este ano. A visita está sendo organizada para a segunda quinzena de fevereiro. Mas além da retomada das viagens, outros desafios deverão ser superados para efetivar a reaproximação entre o Brasil e o continente africano, apontam especialistas.
Vinicius Assis, do Cairo (Egito) para RFI Brasil
A maior expectativa é sobre a passagem do presidente pela capital etíope, onde Lula deve participar da abertura da cúpula da União Africana. Ele fará um discurso não só como chefe de Estado, mas como líder do país que ocupa a presidência rotativa do G20.
A última parada da viagem deve ser no Cairo, mas tudo sobre esta visita ao continente africano ainda está em processo de confirmação, inclusive a logística e as agendas bilaterais. A RFI conversou nas últimas semanas com diversas pessoas que acompanham o assunto e são entusiastas da reaproximação do Brasil com a África, prometida pelo presidente Lula depois do distanciamento, diplomático e comercial, causado pelo governo de Jair Bolsonaro, que não fez sequer uma visita oficial a um país africano.
“O que se espera é que o Brasil possa apresentar uma agenda concreta de iniciativas e ações, não apenas do ponto de vista governamental, mas também como incentivar a participação do setor privado” disse João Bosco Monte, fundador e presidente do Instituto Brasil África (Ibraf).
O presidente global da Fairfax Africa Fund, LLC (U.S), Zemedeneh Negatu, recomenda que o presidente priorize o continente africano em seu governo, em particular grandes países que são geopolítica e economicamente influentes, para além das suas fronteiras – com destaque para os três membros africanos do novo Brics, África do Sul, Etiópia e Egito, e a Nigéria, apontada como “a futura membro” do bloco de emergentes.
O investidor etíope-estadunidense também ressaltou que o Brasil deveria fortalecer o seu relacionamento com instituições pan-africanas, como a União Africana e o Banco Africano de Desenvolvimento. “Recentemente conheci muitas empresas brasileiras que estão interessadas em fazer negócios na África, mas que precisarão do apoio financeiro e diplomático do governo brasileiro para investir com sucesso ou mesmo para exportar os seus produtos”, disse.
Falta de estratégia
Mas nem todos os diplomatas e embaixadores que atuam em países africanos com os quais a reportagem conversou estão muito otimistas. Fala-se em falta de planejamento no Itamaraty para a África e a necessidade de mudança do discurso do presidente sobre o continente. “Essa mensagem de que ‘temos uma dívida histórica’ é ultrapassada, com todo o meu respeito às vítimas dos fatos históricos e seus descendentes, mas a África do século 21 quer ser vista de outra forma, como a China, Índia e Turquia estão olhando para ela, por exemplo”, disse um diplomata sob condição de anonimato.
O presidente do Ibraf destaca a importância de se falar em reparação, mas lembra que o momento agora é de ir além do discurso. “Precisamos apresentar um projeto mais ousado, trazer uma agenda de ideias e ações. Como empresas africanas podem se aproximar de parceiros brasileiros? Diversas nações já se aproximaram da África e muitas vezes sem qualquer ligação, como o Brasil tem, só que eles trazem uma agenda bem pragmática e o Brasil precisa apresentar isso para se reaproximar da África”, completou.
Estima-se que até 2050, um quarto da população mundial seja africana. A região é rica em minerais como coltan, que é fundamental para a produção de baterias de celulares, carros elétricos e outros equipamentos eletrônicos. A África tem hoje a população mais jovem do planeta e possui, principalmente, duas agendas em comum com o Brasil: mineração e agricultura.
O investidor Zemedeneh Negatu reforçou que o governo Lula deveria ampliar o apoio às empresas brasileiras. “A China – um membro fundador do Brics, como o Brasil – tem apoiado com sucesso empresas chinesas ao investir e comercializar na África. As principais economias europeias, como o Reino Unido e a França, também apoiaram as suas empresas para se expandirem na África. E ainda assim, o Brasil, a nona maior economia do mundo, tem uma presença muito pequena na África”, comparou.
O leste do gigantesco continente africano tem sido o foco do empresário Paulo Pan, à frente do grupo Beyond Africa, em especial por conta da importância regional crescente de Adis Abeba. “Justamente para trazer o benefício que a Etiópia tem hoje de ter uma companhia aérea fazendo voo direto, com uma infraestrutura aeroportuária importante e que sirva de conexão para levar os passageiros para Quênia, Tanzânia, Uganda”, sinalizou.
Uma das áreas de interesse do empresário é o esporte. “O Brasil e o continente africano, quase que como um todo, desfrutam da mesma paixão, que é o futebol. É a primeira base de movimento diplomático para aproximar qualquer um dos países africanos”, afirmou Paulo Pan, que já conduz um projeto com a Unesco no Camarões e pretende levá-lo para outros países africanos, aumentando, também, o intercâmbio esportivo com o Brasil.
Qualidade x quantidade de embaixadas
No fim do ano passado, o Itamaraty anunciou que o Brasil abrirá mais duas embaixadas no continente, em Serra Leoa e Ruanda, além do novo consulado-geral em Luanda. A notícia não foi muito bem recebida por todos no Itamaraty, que sabem da precariedade de alguns postos no continente africano onde os respectivos embaixadores trabalham sozinhos, como em Burkina Faso, Camarões e Togo.
Para o embaixador aposentado Paulo Roberto de Almeida, que atualmente é diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília, o Brasil realmente “voltou”, como prega Lula, e haverá novas iniciativas em diferentes países. Mas ele acredita que não é certo que isso passe pelo número de embaixadas na região.
“Lula está trocando a qualidade pela quantidade. Existem muitas embaixadas em diferentes países africanos que estão efetivamente sublotadas, sem condições, portanto, de desenvolver um trabalho diplomático de maior escopo e amplitude cultural, econômica e comercial”, ponderou.
O Ministério das Relações Exteriores (MRE) usa as letras A, B, C e D para classificar a importância dos postos nos países com os quais o Brasil se relaciona. Quase todos na África recebem as letras C ou D, o que significa que ainda são consideradas menos importantes para a política externa brasileira.
Com base da Lei da Acesso à informação, a reportagem pediu ao MRE as comunicações telegráficas das representações diplomáticas do Brasil no exterior referentes a sublotação, falta de recursos humanos, pedidos de contratação e condições dos postos C e D em 2022 e 2023. Alegando se tratar de uma solicitação muito ampla, o ministério pediu que a demanda fosse detalhada para não sobrecarregar o setor, com 8 servidores, destinado a este atendimento. Em uma pesquisa preliminar, 742 correspondências que poderiam se enquadrar no pedido foram encontradas.
A reportagem não recorreu por entender que a resposta já era suficiente para se ter uma noção sobre um problema que tem sobrecarregado alguns diplomatas que atuam na África.
Aberturas e fechamentos de representações diplomáticas
Entre 2002 e 2020, o Brasil abriu 18 embaixadas no continente africano, além do consulado-geral de Lagos, que sucedeu a embaixada brasileira na Nigéria quando esta foi transferida para Abuja. Jair Bolsonaro fechou três embaixadas na África (no Maláui, na Libéria e em Serra Leoa, que será reaberta pelo atual governo). Atualmente o Brasil tem 33 embaixadas e dois consulados-gerais em países africanos.
Ainda na opinião de Paulo Roberto de Almeida, é preciso pensar na relação custo-benefício e no quanto a abertura de novos postos custaria para o Itamaraty em termos de manutenção. “Uma embaixada não sai por menos de meio milhão de dólares por ano e o retorno às vezes não justifica”, disse.
No corpo diplomático há quem defenda que o MRE deveria designar um embaixador a mais para a Etiópia, trabalhando exclusivamente com a União Africana, função que hoje é acumulada pelo embaixador que também cuida da relação entre os governos brasileiro e etíope.
No ano passado, Lula esteve na África do Sul para a cúpula do Brics. Em seguida visitou Angola e São Tomé e Príncipe, onde participou da cúpula da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
Em Luanda, chegou a falar sobre empresas brasileiras voltarem a investir no continente africano, mas não apresentou qualquer projeto de incentivo.
“O Brasil, durante algum tempo, teve uma agenda de financiamento de projetos para empresas brasileiras em ambientes africanos. Eu me lembro da inauguração do escritório do BNDES em Joanesburgo, que foi muito bem recebido pela comunidade africana, pelos empresários do continente”, mencionou João Bosco Monte.
Este escritório, porém, foi fechado no governo de Michel Temer. “É importante que isso volte. Sem financiamento é muito difícil que empresas africanas e brasileiras possam dialogar”, ressaltou o presidente do Ibraf.
Este ano, Lula pretende fazer duas viagens para o continente africano. A segunda visita deve ser no segundo semestre, com Nigéria e Senegal provavelmente no roteiro. Ainda em 2024 o Brasil receberá representantes da União Africana e da África do Sul, membros do G20, no contexto da cúpula do bloco que este ano acontece no Brasil. Outros três países da África foram convidados pelo governo brasileiro para o evento: Angola, Nigéria e Egito.