Quando as portas da catedral mais famosa do mundo, a Notre-Dame de Paris, forem oficialmente reabertas no sábado (7) na presença do presidente francês Emmanuel Macron, além de outros 50 chefes de Estado, os brasileiros terão do que se orgulhar. Duas brasileiras, Luciana Lemes e Juliana Cavalheiro Rodrighiero, ajudaram a restaurar respectivamente o órgão, suas capelas e sacristia. Em entrevista à RFI, elas contam como foi a emoção de retocar um dos templos religiosos mais antigos do mundo.
Márcia Bechara, da RFI
"Trabalhei na restauração da Catedral de Notre-Dame de Paris, especificamente na parte de pinturas murais decorativas. Minha atuação se concentrou na capela Porte Rouge e na capela Saint-Germain, além da finalização da restauração dos móveis da sacristia", conta Juliana Cavalheiro Rodrighiero, que tem experiência como restauradora de pintura decorativa e mural no Atelier Mériguet-Carrère, em Paris.
"Na capela Porte Rouge, acompanhei o trabalho desde o início, participando de todas as etapas: higienização, fixação, aplicação de massa niveladora, verniz e reintegração cromática. Essa capela, particularmente afetada pelo incêndio e pela umidade, exigiu esforços intensos para recuperar suas cores e ornamentos, como os tons vibrantes e as estrelas douradas", detalha a profissional brasileira, que acumula também os títulos de doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), e doutora em Antropologia pelo Laboratoire Interdisciplinaire de Recherches Sociétés, Sensibilités, Soin (LIR3S) junto à Université de Bourgogne Franche-Comté, na França.
Três banhos por dia para eliminar resíduos tóxicos
Rodrighiero relata como era o ritmo do trabalho dentro da catedral mais famosa do mundo. "O dia começava às 8h30 e terminava às 17h, com uma pausa de uma hora para o almoço. Por questões de segurança, devido à contaminação por chumbo, seguimos um protocolo rigoroso: trocávamos de roupa ao entrar e sair da área contaminada e tomávamos banhos obrigatórios, às vezes até três por dia, para eliminar qualquer resíduo tóxico. O almoço era oferecido no próprio canteiro, o que facilitava a rotina", diz.
Desafios e momentos marcantes
"O maior desafio", conta a restauradora, foi a "responsabilidade envolvida". "Restaurar um patrimônio da humanidade, como a Catedral de Notre-Dame, é um trabalho que exige extremo cuidado técnico e científico. Além disso, havia uma constante supervisão por parte de profissionais e arquitetos do patrimônio, reforçando a importância e o peso dessa tarefa histórica", avalia.
"Dois momentos me marcaram profundamente. O primeiro foi minha chegada à catedral. Eu acompanhei o incêndio de 2019 ainda no Brasil, com o temor de nunca conhecer Notre-Dame. Entrar na capela pela primeira vez e vê-la danificada foi uma experiência emotiva, misturando orgulho e responsabilidade. O segundo momento foi a retirada dos andaimes, que revelou o resultado completo do trabalho, mostrando a beleza das capelas restauradas com suas cores vibrantes e ornamentos originais. Foi emocionante ver nosso esforço reconhecido pelas pessoas que visitaram o local durante o processo", sublinha Rodrighiero .
A beleza das "cores originais"
"Para reconstituir as cores originais, utilizamos principalmente nossa expertise técnica, analisando visualmente e ajustando as misturas até chegar ao tom mais próximo possível. Era um trabalho minucioso, especialmente devido à diversidade e intensidade das cores da catedral", conta a restauradora, natural de Pelotas, no interior do Rio Grande do Sul.
"Embora minha vida pessoal muitas vezes se misture com a profissional, considero a conservação e a restauração uma paixão. Esse envolvimento integral com o trabalho torna a experiência mais gratificante, pois sinto que contribuo diretamente para preservar a história e a cultura para as futuras gerações", diz a brasileira.
"Infelizmente, não estarei presente na reabertura oficial da catedral, pois retornei ao Brasil para desenvolver novos projetos profissionais. No entanto, planejo visitá-la no próximo ano para contemplar o resultado final e rever o trabalho realizado por mim e meus colegas", espera Rodrighiero.
Órgão de Notre-Dame afinado por uma brasileira
"O momento mais emocionante foi a primeira vez que entrei na catedral com a equipe e subi as escadas. Aquela atmosfera grandiosa me transportou para emoções e memórias que nem vivenciei, mas que pareciam ecoar na minha mente", conta Luciana Lemes, que integrou a equipe de restauração e afinação do órgão de Notre-Dame, construído pelo francês Aristide Cavaillé-Coll (1811-1899), o mais famoso artesão deste tipo de instrumento do século 19. "Era como se cada passo fosse carregado de história e significado. Pensei no quanto minha trajetória foi difícil, mas, ao mesmo tempo, senti uma imensa honra por estar ali", relata com emoção a brasileira.
"Esse trabalho foi especialmente significativo para mim, pois venho de Lorena [interior de São Paulo], onde existe um órgão menor construído pelo mesmo artesão responsável pelo órgão de Notre-Dame", revela Lemes, que, na época, trabalhava para a empresa Quoirin, especializada no setor. "Desde pequena, eu sonhava em ter contato com órgãos franceses, mas nunca imaginei que teria a honra de trabalhar diretamente em Notre-Dame. Meu objetivo inicial ao vir para a França era aprender a profissão e, um dia, retornar ao Brasil para contribuir com os órgãos de lá. Ser convocada para um projeto dessa magnitude foi um privilégio indescritível", afirma a profissional.
Desafio foi "o barulho" durante a reforma
"O maior desafio durante esse processo foi trabalhar em meio à movimentação de outras equipes na catedral", relata Luciana Lemes. "Havia pintores, operadores de andaimes e outras máquinas, o que gerava muito barulho e dificultava nosso trabalho, que exige silêncio e concentração. Apesar disso, conseguimos concluir com sucesso a restauração da fachada e a afinação do instrumento", diz.
"A harmonização é uma etapa crucial, pois define o timbre e a entonação de cada tubo, caracterizando o som único do órgão. Já a afinação é a última etapa, responsável por ajustar a precisão sonora. É um trabalho extremamente delicado e detalhista, e cada um dos 8 mil tubos foi harmonizado e afinado individualmente", detalha Lemes.
Risco da contaminação pelo chumbo
Luciana Lemes conta que "a fachada do órgão, que funciona como um verdadeiro cartão postal, é composta tanto por tubos funcionais quanto por tubos decorativos [fakes]. Eles são a parte visível do instrumento, criando uma apresentação imponente. Apesar de o órgão não ter sido gravemente danificado pelo incêndio, ele foi contaminado por poeira de chumbo, o que exigiu um processo de descontaminação minucioso. As empresas envolvidas desmontaram cerca de mil tubos para limpeza e restauração", relata.
"Cada componente foi enviado para ateliês especializados, onde passaram por avaliação e descontaminação. Após a conclusão desse trabalho, iniciou-se a remontagem do órgão. Essa etapa foi realizada por diferentes equipes que, com cuidado extremo, reposicionaram os tubos. Em seguida, coube a nós realizar o trabalho final: a harmonização e a afinação dos tubos", detalha Lemes.
Ela confessa que "será um momento de grande emoção ouvir o órgão soar novamente". "Cada nota que ele emitir será fruto do nosso trabalho duro, da dedicação de toda a equipe. Contribuir para a música de Notre-Dame e para a preservação desse instrumento tão especial é algo que me enche de orgulho e gratidão", conclui a brasileira, que mora com o marido francês, ele também restaurador, em Malemort-du-Comtat, um pequeno vilarejo de no sul da França, que tem apenas dois mil habitantes.
Catedral histórica
A catedral de Notre-Dame é um dos templos religiosos mais antigos do mundo, com mais de 860 anos. Alguns relatos históricos dão conta de que ela nasceu como um antigo templo galo-romano dedicado à deusa Atenas, passou por diversas versões antes de se consagrar como uma joia da arquitetura gótica, verdadeiro símbolo de Paris.
Entre as histórias contadas pelos guias oficiais da catedral, duas se sobressaem: a coroa de Cristo, que teria sido trazida pelo rei São Louis de Jerusalém para o local, e a história real dos franceses que, durante a Revolução, arrancaram com machadinhas as cabeças coroadas das estátuas.
Agora, o mundo inteiro poderá rever as relíquias e lendas de Notre-Dame de Paris, restauradas com a ajuda de duas brasileiras.