Na semana passada, a ONU divulgou um relatório pouco auspicioso sobre a qualidade da água a nível mundial. De acordo com este documento, "a metade mais pobre do mundo contribui com menos de 3% dos dados mundiais sobre a qualidade da água". Ou seja, quase 4 mil milhões de pessoas repartidas nomeadamente pela Ásia e a África têm falta de dados sobre a água que consomem.
Para termos uma noção, sobre as cerca de 250.000 análises feitas em fontes de água doce a nível mundial, apenas 4.500 fornecem informações sobre a qualidade da água das regiões mais desfavorecidas.
Neste sentido, a ONU refere que a falta de dados e os "fracos níveis de vigilância" podem ter uma incidência sobre o cumprimento dos objectivos de desenvolvimento sustentável até 2030. Até lá, segundo o relatório, "mais de metade da Humanidade vai viver em países que não dispõem de dados suficientes para tomar decisões esclarecidas quanto à luta contra a seca, as inundações, os impactos dos caudais de águas usadas e da actividade agrícola".
Efectivamente, as Nações Unidas apontam as mudanças climáticas, as actividades industriais, mineiras e agrícolas, como alguns dos factores para a degradação da qualidade de água, que se estabelece em 50% a nível mundial. Daí que os autores do documento recomendem que se desenvolvam programas de vigilância no sentido de estancar a falta de informações em determinadas regiões do mundo.
Foi neste contexto que a RFI evocou o caso de Moçambique. No passado mês de Agosto, o Presidente Nyusi constatou melhorias neste aspecto, referindo que neste momento cerca de 60% da população moçambicana tem acesso à água potável.
O activista ambiental moçambicano Rui Silva também dá conta de progressos, referindo que determinadas zonas, como Maputo, beneficiam de uma vigilância constante da qualidade da sua água, sendo que noutras zonas do país, isto já não é tão sistemático.
"No caso particular de Moçambique, obviamente que existem problemas em determinadas zonas. Em Maputo, especificamente, as águas da região de Maputo têm um controlo muito apertado, pelo que não tem havido problemas em termos da qualidade da água. Nesse aspecto têm feito um bom trabalho e o controlo é feito diariamente, várias vezes ao dia. Agora, a qualidade de água neste momento, não só em termos de Moçambique, mas em termos de África, passa muito, primeiro, pelas más condições com que as pessoas têm estado. Se formos pensar nos meios mais recônditos, em qualquer país da África, uma boa parte das pessoas tem os seus furos de água. O que é que acontece, não só com as questões das mudanças climáticas, mas também com o desmatamento das florestas, as queimadas, tudo isso está intervir na qualidade da própria água", começa por esclarecer o especialista.
Questionado sobre os diversos desafios enfrentados por Moçambique no que tange à qualidade da sua água, Rui Silva cita o impacto da actividade mineira e também a falta de latrinas apropriadas.
"Tem sido muito discutido neste momento aqui em Moçambique, a questão da zona de Tete, mais precisamente em Moatize, onde a exploração de minas de carvão a céu aberto, em que de facto a água é completamente impossível de ser consumida, completamente impossível não só água como até o ar que as pessoas vão respirando. Isto, na minha modesta opinião, tem a ver muito com a falta de alguma fiscalização por parte das entidades centrais. Porque esta mina, por exemplo, quando esteve na posse de outra empresa (a brasileira Vale), os efeitos não eram tão graves como estão a ser neste momento (a mina passou a ser explorada pela empresa de capitais indianos Vulcan em 2022). A questão de haver água contaminada por causa das fezes, etc, passa também pela falta de condições que as pessoas têm, nomeadamente nos meios mais pequenos, em que têm as suas próprias latrinas que vão directamente para os solos e que nomeadamente em termos de urina, depois com as chuvas, etc, vão se infiltrando nos solos e podem eventualmente criar problemas, se calham em apanhar linhas de água que depois são enviadas para as habitações", refere o militante ecologista.
Relativamente à actividade agrícola que é um dos factores apontados pela ONU para a degradação da qualidade da água, no caso de serem usados produtos como pesticidas e fertilizantes, ou ainda no caso de se efectuarem queimadas, Rui Silva refere que tem havido um esforço de sensibilização para estas problemáticas.
"Sei que em vários pontos do país tem havido essa consciencialização no sentido de se fazer a compostagem, para evitar também a utilização de fertilizantes químicos, que também pode vir a afectar a água. Por outro lado, as próprias queimadas e o desmatamento feito pelos agricultores que, por uma questão de quererem mais espaço, etc, sem a plena consciência que estão também a criar outros problemas ambientais, isso tem sido um pouco uma realidade, embora tenho consciência que muita coisa está a ser feita no sentido não só de tentarem consciencializar os moçambicanos, os agricultores, mas também tem sido uma aposta, o plantio de árvores nestas zonas. Claro que ainda há muito por fazer, principalmente em termos de consciencialização por parte das populações que muitas vezes, ou na esmagadora maioria das vezes, não têm consciência daquilo que estão a fazer", diz o estudioso.
Ao referir que são entidades privadas ou público-privadas que asseguram o controlo da qualidade da água, sob a supervisão do Estado, o activista considera que "há empresas que, cada vez mais, estão empenhadas em termos de responsabilidade social, em termos da qualidade de vida das comunidades, etc. Cada vez há mais. Mas tudo depende sempre de empresa para empresa. Obviamente que há empresas que pensam mais na parte financeira do que na parte ambiental. Aliás, isso é o maior problema do mundo em termos globais. E é principalmente os países mais industrializados em que não conseguem fazer esse equilíbrio entre a parte financeira e a parte ambiental."
Por outro lado, embora constate esforços e melhorias no controlo da qualidade da água, Rui Silva não deixa de apontar os desafios que subsistem e que se prendem muito com a falta de capacidade financeira.
"Moçambique, sendo um país em desenvolvimento, obviamente que tem as suas limitações financeiras e o próprio Estado não consegue chegar a todas as necessidades. E obviamente que pode muita gente começar a pensar 'lá estão em África a estender a mão', mas não tem nada a ver com isso. Passa um pouco por haver também um certo apoio por parte de países mais industrializados, também mais desenvolvidos, até porque Moçambique, como se sabe, é dos países até que menos polui, mas dos mais vulneráveis às mudanças climáticas. E na última COP, já ficou acordado de haver determinadas verbas para ajudarem estes países que estão em desenvolvimento. Dentro das capacidades financeiras que Moçambique tem, que são muito baixas, muito tem sido feito. Na questão do acesso à água potável, muito tem sido concretizado. Claro que não se consegue tudo ao mesmo tempo, como é óbvio. A água de facto é uma prioridade para as populações, mas há outros aspectos que acabam por não ajudar, que é a falta de capacidade financeira por parte do país. Não é a falta de sensibilidade do Estado, mas é mesmo falta de capacidade financeira para poder atingir a totalidade das pessoas a terem acesso a água potável", diz o activista ambiental para quem o país tem poucas hipóteses de responder aos imperativos de sustentabilidade estabelecidos no horizonte 2030.
"Tudo vai depender de como os apoios que foram também 'prometidos', possam aparecer ou não aparecer. Nós sabemos que, por exemplo, nesta última conferência foi decidido já com a assinatura de todos os países ou praticamente da esmagadora maioria dos países. O apoio aos países em desenvolvimento, no entanto, já é uma questão que tem vindo a ser falada já em várias conferências e só nesta última é que as coisas parecem estar a começar a avançar. Portanto, não vai depender apenas exclusivamente de Moçambique, obviamente. Sinceramente, a mim, pessoalmente, se eu acredito que se vai atingir até 2030, muito sinceramente não acredito", conclui Rui Silva.